Há dias vi uma
cena que me deixou de lágrimas nos olhos: uma criança, que não teria mais de 3
ou 4 anos, gritava pela rua fora - alto e bom som e com várias lágrimas à
mistura - que não queria ir para a escola enquanto o pai o puxava pelos braços
forçando-o a continuar a andar. Alguns metros depois o pai pára, larga os
braços do filho, baixa-se ficando da altura da criança e olha fixamente para
ele durante alguns instantes. Durante alguns segundos pensei que ia falar com
ele, dizer-lhe qualquer coisa. Mas limitou-se a olhá-lo fixamente alguns
instantes para depois lhe dar uma palmada no rabo e continuar a puxá-lo pela
rua fora com a criança retomando o choro, repetindo ainda mais alto e com maior
desespero que não queria ir para a escola.
Vi tudo isto
pela janela de um rés-do-chão à frente da qual o pai parou e deu a tal palmada
na criança. A minha primeira vontade foi abrir a janela e chamar nomes ao pai.
Depois lembrei-me de um texto que li há pouco tempo e que dizia que por trás de
cada pai ou mãe que maltrata uma criança, está um adulto que sofre. Mas, a
verdade é que, olhando para aquele pai não foi o seu sofrimento – que acredito
que exista – que me marcou mais, mas sim a sua insensibilidade ao sofrimento do
filho. Acredito que essa insensibilidade venha do sofrimento porque já passou,
sim. Sofrimento que há-de ter sido tão intenso em determinada altura da vida
que aquela pessoa foi obrigada a fechar-se ao mundo exterior, a fechar-se aos
afectos e às outras pessoas. Foi obrigada a construir um muro à sua volta onde
só muito pouco entrará, provavelmente. Mas, o que me entristece mais é saber que
esse ciclo de sofrimento, muito provavelmente, está agora a ser repetido com aquela criança. O que me entristeceu
em tudo isto é saber que existem tantos pais que também sofreram por nunca terem sido ouvidos e que hoje, adultos, também se recusam a ouvir os filhos.
A ouvir de verdade, com o coração, porque ouvir até ouvimos mas, com demasiada frequência, desvalorizamos os sentimentos
das crianças só porque são crianças.
Há dias também
li que é importante não termos medo das lágrimas nos nossos filhos. É verdade
sim. É importante sermos capazes de os deixar chorar quando é preciso. É
importante sermos capazes de lhes permitir lidar com a tristeza, com a zanga,
com a frustração. É muito importante que aprendam que todos os sentimentos são
válidos e que podem lidar com todos, que podem passar por todos. Mas para o
fazerem precisam de ser escutados, verdadeiramente escutados. Quando dizemos
que as crianças precisam de aprender a lidar com a frustração isso não significa
que as vamos deixar sozinhas nessa frustração, ou que devemos criar
oportunidades para que se sintam frustradas. Significa que devemos
valorizar os seus sentimentos. Se a criança expressa uma determinada frustração,
ou zanga ou tristeza devemos dar-lhe ouvidos. Estar presentes, ouvir e espelhar
essa emoção, mostrando empatia e mostrando que podemos aceitar, até acolher
essa emoção da criança. Só assim os nossos filhos podem aprender que todos os
sentimentos são válidos e só assim podem aprender a lidar com eles da melhor
forma. E, neste processo aprendem também outra coisa muito importante: que os
amamos independentemente dos sentimentos que têm ou que mostram e que estamos
presentes para os ajudar a dar-lhes significado. E é só através desse amor
incondicional que eles podem aprender a amar-se também a si próprios e a viver
a vida de uma forma plena, com todo o seu potencial, sem precisarem de sentir
que há partes de si que devem ser escondidas, ou modificadas.
Mas, validar
os sentimentos dos nossos filhos e deixá-los lidar com eles não significa
ignorar os seus pedidos. Também já li textos que defendem que, como é bom as
crianças aprenderem a lidar com a frustração ou com a zanga ou tristeza então
podemos deixá-los chorar um pouco, mostrando que compreendemos mas sem ceder
aos seus pedidos. É certo que, muitas vezes, mesmo que quiséssemos fazê-lo, não podemos aceder aos pedidos dos nossos filhos. E aí sim, é importante dar-lhes essa escuta e ficarmos presentes na sua tristeza, na sua frustração. Mas, a verdade é que também precisamos de saber distinguir os pedidos que são verdadeiramente importantes.
Podemos usar o exemplo deste caso, em que a criança não queria mesmo ir
para a escola, ou o de de tantas outras crianças que ficam diariamente a
chorar quando os pais os deixam na escola. Há quem pense que não faz mal
deixá-los lá a chorar desde que mostremos que compreendemos os seus
sentimentos, desde que falemos com eles e lhes digamos que sabemos que estão
tristes e lhes demos espaço para sentir essa tristeza. Mas, sejamos realistas,
pensemos num exemplo em que, em vez de ser o nosso filho que chora porque não
quer ir para a escola é o nosso marido que está muito triste e que nos diz que
precisa de passar o dia connosco. De que é quer serve dizermos-lhe que sabemos
que ele está triste e que gostaria de ficar connosco se não fizermos absolutamente
nada para aceder a esse pedido. Se formos nós a precisar de estar com alguém e
a pessoa nos diz simplesmente: olha eu sei que querias muito estar comigo mas
eu não vou estar contigo, por isso chora um pouco, eu sei que estás triste,
faz-te bem chorar, eu oiço o teu choro um bocadinho mas daqui a pouco tenho de
ir trabalhar. O que diríamos a essa pessoa? Pela minha parte, pelo menos, sei
que não ficaria lá muito satisfeita. Neste caso, porque somos adultos, poderíamos até compreender que a pessoa tinha mesmo de ir trabalhar desde que ela se mostrasse minimamente disponível para não o fazer, ou seja, se percebêssemos que a pessoa queria mesmo ficar connosco mas não tinha como fazê-lo sem um prejuízo demasiado grande para si, continuaríamos tristes mas poderíamos não ficar tão sentidos. Acontece que uma criança tem muito mais dificuldade em perceber isto que um adulto. Para uma criança pequena, o acto de ser deixada na escola contrariada é sentido como um abandono e, mesmo que a mãe ou o pai lhe digam que compreendem o seu sentimento, continuam a mostrar-lhe com as suas acções que, apesar de compreenderem, não valorizam esse sentimento porque se vão embora na mesma. Uma criança pequena não percebe que o pai ou a mãe têm de ir trabalhar, só percebe que está a ser deixada sozinha num sítio onde não quer ficar, por muito que lhe digam que compreendem a sua frustração, isto não a elimina. E, mesmo que depois dos pais se irem embora a criança pareça bem disposta o resto do dia, não quer dizer que não ficou lá a ferida. A ferida de não se sentir ouvida, de não se sentir valorizada, de não se sentir respeitada nas suas vontades e sentimentos.
Então o que é podemos fazer?
Nestes casos sermos empáticos sim, é importante.
Mas uma boa parte dessa empatia, por vezes, também é aceder aos pedidos da
criança. E se a criança nos diz que não quer mesmo ir para a escola, se a
escola é uma fonte de sofrimento e angústia para ela então porque não tentarmos
procurar alternativas para essa criança passar o dia? Sei que, enquanto
sociedade, as coisas não estão organizadas para podermos aceder aos pedidos das
crianças, pelo menos não aos deste tipo. Sei que os pais precisam de ir
trabalhar e não podem simplesmente dizer ao patrão que vão tirar o dia para o
passar com os filhos. Mas então é isto que está errado e não o pedido da
criança. Porque a criança sabe que o natural seria passar muito mais tempo com
os pais do que a maioria passa hoje em dia. Então o que precisamos de mudar,
com urgência, é a forma como as coisas estão estruturadas nossa sociedade e,
para isso, precisamos mesmo de começar a ouvir os nossos filhos.
Ouvir de
verdade e aceder aos seus pedidos. Porque é que tantas vezes temos medo de
ceder aos pedidos que nos fazem os filhos? Muitos pais pensam que, se deixarem o filho ficar em
casa um dia quando ele não quis ir para a escola estarão a criar-lhe um mau
hábito que dificilmente vencerão. Mas a verdade é que, em primeiro lugar, uma
criança pequena (antes dos 5, 6 anos) não precisa verdadeiramente de ir para a
escola, nós é que precisamos que vá. E, em segundo lugar, não será muito mais
prejudicial o hábito de desvalorizar os sentimentos da criança? Não será muito
mais grave o facto de ignorarmos os seus pedidos, de lhe mostrarmos que tem de
ignorar os seus sentimentos, que tem de ir contra as suas vontades? Tudo
depende de que como queremos criar os nossos filhos: se queremos que não sejam
capazes de se escutar, que não aprendam a valorizar as suas emoções, os seus
sentimentos, se queremos que não sejam verdadeiramente autónomos mas aprendam
apenas a respeitar as convenções sociais, então sim é mais grave cedermos aos
seus pedidos. Mas, se queremos adultos conscientes, livres, responsáveis,
empáticos, felizes, capazes de estar em harmonia com as suas emoções e com as
dos outros então é melhor começarmos a dar-lhes ouvidos logo desde crianças. E
mostrarmos-lhes que a sua voz conta, que é importante, que tem poder. Sim,
poder. Muitas vezes pensamos que as crianças não podem pensar que são poderosas
porque quererão dominar os pais e nunca aprenderão a lidar com frustração: mas
o verdadeiro poder vem de sermos capazes de nos escutar, de sermos capazes de
respeitar as nossas emoções, sentimentos e de sermos capazes de agir de acordo com o que nos mostram. E, a lidar com a frustração,
aprendemos sempre que nos permitem estar em contacto com esses sentimentos e agir de acordo com eles.
Quando uma criança chora porque não quer ir à escola e lhe permitimos que não
vá, não estamos a fugir da sua frustração: antes pelo contrário, estamos a
dizer-lhe que é válida, que a vimos, que a aceitamos e que queremos
respeitá-la. Isto não é o mesmo que deixar a criança fazer tudo o que quer. É
claro que existem limites na vida e determinadas situações de que não se pode
mesmo fugir. Mas, neste caso, trata-se de sabermos que o instinto da criança
está certo: é natural uma criança querer ficar com os pais o máximo de tempo
possível, é natural que resista a ser deixada ao cuidado de estranhos durante a
maior parte do dia. Na verdade até é bom que assim seja. Então quando os nossos
filhos nos dizem que não querem ir para a escola, devemos questionar-nos porque
é que queremos tanto que vão. É certo que lhe pode fazer algum bem conviver com
outras crianças – principalmente a partir dos três anos, já que antes disso as
crianças não brincam verdadeiramente em conjunto – mas ainda mais certo é que
uma criança com menos de seis anos ainda precisa de passar a maior parte do
tempo com os pais. Muito mais importante que aprender a ler ou escrever é
aprendermos a ser seres humanos inteiros, completos e capazes de estabelecer
relações interpessoais satisfatórias e é com os pais, nos primeiros seis anos
de vida, que as crianças aprendem isso. Então essa é a escola mais importante
onde devem estar as crianças. A outra, aquela em que os deixamos tantas vezes
todos os dias, é apenas para passar o tempo e só se torna necessária porque a
sociedade não deixa que nos organizemos de outro modo, infelizmente.
Para nos
convencermos de que é importante os nossos filhos irem para a escola começamos
a pensar que precisam de aprender muitas coisas logo desde pequeninos e a maioria
das escolas vende-nos essa ideia criando coisas tão ridículas como aulas de
filosofia para bebés que existem mesmo, pelo menos numa escola que conheço,
dirigidas a crianças com menos de 2 anos! Porque não queremos admitir que os
nossos filhos só vão para a escola porque não temos outra solução. Num mundo
ideal as crianças teriam tempo de crescer perto dos pais, pelo menos durante os
seus primeiros anos de vida e também com outras crianças à volta de vez em
quando. Num mundo ideal as crianças nunca precisariam de aprender nada, de um
ponto de vista intelectual, antes dos seis ou sete anos de idade, altura em que
começam a ter alguma maturidade para as primeiras aprendizagens. E, num mundo
ideal, mesmo com essa idade as crianças teriam algum tempo para aprender e
muito tempo para brincar e para estar perto dos pais. E ainda, nesse mundo ideal, os pais e mães poderiam trabalhar, o tempo que lhes fosse possível, sem terem que perder quase por completo a infância dos seus filhos.
Mas, como este mundo ideal não existe, precisamos de nos convencer que a escola lhes faz bem, que as prepara para o mundo competitivo em que vivemos, que as pode ajudar a ser bem sucedidas. Quando na verdade o que lhes faz mesmo bem é estarem perto de nós, é crescerem a serem escutadas, vistas verdadeiramente, a serem acompanhadas de uma forma que na escola nunca será possível por muito boa que seja. Então a escola pode ser uma solução para os pais que precisam de trabalhar e, se for uma boa escola com pessoas dedicadas e que gostam de crianças – porque isto é o mais importante que pode haver numa escola e, infelizmente, nem todas as escolas têm só trabalhadores que gostam verdadeiramente de crianças – e que as respeitam, pode ser um sítio onde as crianças também crescem e aprendem a estar juntas. Mas, a verdade é que a escola, com crianças pequenas, será sempre uma solução para um problema que esta sociedade criou. E, apesar de cada criança ser diferente, nenhuma criança com menos de três anos deveria ser obrigada a passar todos os seus dias numa escola, por muito boa que seja. E mesmo com mais de três anos, as crianças não são todas iguais e, se nos dizem que não querem estar na escola, então precisamos de as ouvir porque é a sua forma de dizer que precisam de estar connosco e precisamos que saibam que está certo esse querer e que é importante escutá-lo, de verdade.
E se não temos opção e precisamos mesmo de as deixar na escola para podermos trabalhar?
Se não há como fugir a isto e, infelizmente, muitas vezes não há mesmo, então precisamos de encontrar formas de mostrar aos nossos filhos que eles estão certos, que os seus pedidos são legítimos e que gostaríamos muito de os satisfazer. Precisamos de encontrar formas de estar juntos o máximo de tempo possível e precisamos de não ter medo de lhes mostrar o coração: de os deixar saber que também sentimos muito a falta deles durante o tempo que não podemos estar juntos, que também gostaríamos muito de poder passar o dia com eles. Com uma criança que já compreenda bem a linguagem podemos falar, perguntar-lhe coisas sobre o dia dela, mostrar que queremos saber tudo, dizer-lhe que tivemos saudades, que gostávamos muito de estar mais tempo com ela. Com uma criança mais pequena, que ainda não fale, precisamos de encontrar formas de compensar essa ausência com muito contacto físico, muita presença e total disponibilidade durante todo o tempo que podermos estar com ela.
Sem comentários:
Enviar um comentário