No fim de
semana passado fizeram-me um convite simpático para apresentar uma palestra num
seminário organizado pela associação de pais da escola Gomes Freire de Andrade,
em Oeiras. No final da apresentação, estava presente uma jornalista que deveria ter moderado uma mesa redonda entre os
intervenientes mas, como houve alguns atrasos, esse debate acabou por ter de ser
encurtado e fiquei sem possibilidades de responder a um tema que essa
jornalista trouxe e acerca do qual gostaria de ter dito algumas coisas. Esta
jornalista falou naquilo que considerou ser algo muito presente na maioria dos
pais da nossa cultura e sociedade: a culpa. Culpa por não terem tempo para
estar com os filhos ou por se sentirem responsáveis pelos problemas dos filhos
ou por não serem os pais que gostariam de ser. E, de acordo com esta
jornalista, esta culpa era responsável por um mal-estar grande e que, na
verdade, se eu bem percebi, não teria grande razão nem necessidade de existir.
Para
compreendermos melhor o que está aqui em jogo, é preciso primeiro distinguir
dois tipos de culpa: a culpa que vem misturada com a vergonha, que nos faz
sentir infelizes, indignos e incapazes e que tem um efeito paralisante porque
nos faz sentir totalmente incompetentes e incapazes nas nossas funções e a
culpa que é apenas um sinal da nossa consciência de que não estamos a agir de
acordo com o nossos valores.
Então, no
primeiro caso, esta é uma emoção que, realmente, traz mais prejuízos do que
benefícios. Esta culpa paralisante que nos faz sentir vergonha de quem somos, a
maior parte das vezes, tem a sua origem justamente na nossa infância. Quando os
nossos pais nos fazem sentir totalmente desadequados no nosso comportamento
surge uma resposta de vergonha, potenciada pela libertação de uma grande
quantidade de hormonas, como o cortisol – associado à resposta de luta ou fuga –
e que nos dá uma sensação de não sermos dignos de amor, de não sermos dignos
de existir. Porque, quando não nos sentimos dignos do amor dos nossos pais a
sensação é mesmo de que não somos dignos de existir. E, se isto se repetir muitas vezes na nossa infância, acabam por ficar gravadas estas sensações
de não sermos capazes, de não sermos competentes, de não sermos dignos. E,
muitas vezes, transferimos isto para os nossos relacionamentos mas também para
o trabalho ou outro tipo de tarefas que temos de desempenhar. Então numa
relação tão importante como a que temos com os nossos filhos, é natural que, nestes casos, possam também surgir esse tipo de sentimentos de incapacidade e incompetência. A única
forma de lidarmos com estes sentimentos sem que eles se tornem verdadeiramente
paralisantes é reconhecermos que têm provavelmente mais a ver com os nossos pais e com o que aprendemos com eles do que propriamente com os nossos filhos. E que estamos apenas a projectar ou a
reavivar com eles essas aprendizagens da infância porque, quando não tomamos consciência destes padrões que fomos estabelecendo ao longo da vida, o mais provável é que continuem a influenciar a forma como nos relacionamos ao longo da vida e são grandes as probabilidades de que venhamos a reproduzi-los com os nossos filhos.
No segundo
tipo de culpa aquilo que está em causa é o facto de sentirmos que não estamos a
viver de acordo com os nossos valores. E, infelizmente, isto é cada vez mais
comum nos dias de hoje. Porque todos sentimos que é importante passarmos tempo
com os nossos filhos e temos cada vez menos possibilidades de o fazer, porque
todos sentimos que é importante cuidarmos da nossa relação com os nossos filhos
e também temos cada vez menos possibilidades de o fazer. Uma mãe que tem um
filho de meses e precisa de trabalhar o dia todo longe do filho sente-se
naturalmente culpada. Mas esta culpa é apenas fruto da sua consciência que lhe
diz que não está poder seguir o seu instinto de mãe. Uma mãe que quer pegar no
filho ao colo sempre que chora ou dar-lhe mama, ou que quer pô-lo na cama
consigo mas que resiste à ideia de o fazer por medo que se torne dependente ou
por outros receios que lhe são incutidos muitas vezes pelos especialistas e
sociedade em geral, é natural que se sinta culpada porque, em alguma parte de si, sabe que não está a seguir os seus instintos e a ser fiel aos seus valores.
E, na minha
opinião o problema é este: é que cada vez mais somos obrigados a passar por
cima dos nossos instintos mais básicos e a separarmos-nos cada vez mais dos
nossos filhos. E, nestes casos, a culpa não só é inevitável como até acredito
que seja desejável porque é ela que nos pode lembrar de que podemos fazer mais
pelos nossos filhos, porque é ela que nos pode fazer lembrar que ao esquecer os
nossos filhos estamos a esquecer-nos também de nós e a deixar de lado os nossos
valores, os nossos instintos, e a nossa consciência que sabe e que quer fazer
melhor.
Então aqui o
importante não é eliminar a culpa mas sim perceber de onde é que ela vem e
tentar eliminar não o sentimento mas as circunstâncias que o provocam. Nem
sempre podemos eliminar directamente essas circunstâncias mas podemos arranjar
formas de as contornar para que se torne possível estarmos mais alinhados com
os nossos valores. Por exemplo, se não podemos deixar de trabalhar para estar
com os nossos filhos, podemos, pelo menos, tentar aproveitar ao máximo todo o
tempo que temos com eles.
Por vezes
também me sinto culpada quando não tenho toda a paciência que gostaria de ter
sempre com o meu filho, ou quando me zango em situações em que acho que não me
deveria zangar, ou quando lhe falo alto e sei que não o deveria fazer. Mas,
cada vez que sinto esta culpa não acho que ela é que está errada ou que deveria
desaparecer. Quando esta culpa aparece sei que ela está presente porque me
comportei de uma forma que não condiz com os meus valores, que não está de
acordo com os meus instintos nem com aquilo em que acredito. Então a solução não
será eliminar esta culpa mas sim pensar que, da próxima vez, espero conseguir
estar mais alinhada com esses valores. E, se sinto que fiz mesmo algo que não
gostei de fazer, então posso tentar reparar aquilo que fiz, por exemplo,
explicando ao meu filho que estava cansada, sem paciência mas que, por baixo de
todo esse cansaço e falta de paciência continuava a estar presente todo o amor
que tenho por ele. Que, mesmo que fale alto e faça cara feia em alguns
momentos, continuo a gostar sempre dele. Porque, para mim, isso é o mais
importante: que o meu filho saiba que, por muito pouca paciência que eu tenha
ou por muito grande que seja a asneira que ele fez, o amor que sinto por ele
não foi minimamente afectado. Porque é quando duvidamos desse amor dos nossos
pais, especialmente nos momentos em que se zangam connosco, que surgem os tais
sentimentos de vergonha e de incapacidade que podem levar também justamente a
essa culpa paralisante e tão nociva quanto desagradável.
Poderia pensar simplesmente que não vale a pena sentir-me culpada porque as minhas acções não são assim tão importantes, porque zangar-me uma vez ou outra ou gritar de vez em quando não faz mal nenhum. Mas faz mal, sim. Faz mal, em primeiro lugar, porque não é quem gosto de ser e faz mal, em segundo lugar, porque não é isso que o meu filho merece. E se o nosso marido ou mulher nos tratassem mal de vez em quando e nos dissessem simplesmente que temos de aguentar porque a vida é assim mesmo e não estamos sempre bem-dispostos? É verdade que é natural perdermos a paciência uns com os outros de vez em quando, é verdade que uma zanga de vez em quando não prejudica assim tanto uma relação. Mas também é verdade que, depois dessa zanga, precisamos sempre de saber que há qualquer coisa que tem de se reparada na relação. Porque quando outro adulto se zanga connosco também precisamos de saber que ele ainda gosta de nós. Porque quando um adulto de quem gostamos se zanga connosco e nos trata mal, esperamos, no mínimo, uma atitude de quem está disposto a fazer alguma reparação para que as coisas possam voltar ao normal. Então é verdade que não é grave zangarmos-nos com os nossos filhos mas, também é verdade que, por uma questão de respeito e de consideração, é importante estarmos dispostos a reparar a relação depois dessa zanga. E a culpa é a forma da nossa consciência nos dizer que essa reparação é precisa, é necessária e importante.
Outro aspecto
desta culpa, segundo esta jornalista, seria o facto dos pais nem sempre terem
culpa dos problemas dos filhos, ou seja, se um filho tem problemas, se se porta
mal na escola, se escolhe uma vida de delinquência, por exemplo, a culpa nem
sempre seria dos pais. Aqui é importante não falarmos em culpa mas sim em
responsabilidade e, para mim, a responsabilidade é sempre dos pais, sim. Mas é
diferente ser responsável ou ser culpado. Porque ser culpado, neste contexto, implicaria que não quiséssemos fazer melhor e, é claro que cada pai faz o melhor que sabe
pelos seus filhos. É verdade que as crianças nascem com temperamentos
diferentes e também é verdade que têm algum papel na forma como interagimos com
elas mas também é verdade que somos os nós os adultos quem tem verdadeiramente
escolha nessas interacções. Por isso, somos nós, verdadeiramente os
responsáveis pela forma como elas correm. E somos nós também os responsáveis
pelas primeiras experiências mais marcantes dos nossos filhos que ajudarão a
moldar todas as outras experiências importantes das suas vidas. Então, somos
nós, em grande parte, sim, os responsáveis por todo o seu futuro. Mas isto só é
um peso se não sentirmos que fazemos o melhor que podemos. Se sentirmos que
todos os dias estamos alinhados com os nossos valores e fazemos o melhor que
podemos e sabemos pelos nossos filhos então essa responsabilidade não tem nada
a ver com culpa e não se torna nada pesada porque, mesmo que alguma coisa corra
mal pelo caminho, sabemos que demos o melhor de nós aos nossos filhos e sabemos
que tudo o fizemos foi feito com a consciência de que lhes demos tudo o que
podíamos ter dado. E quando damos tudo o que temos não há lugar para culpas
paralisantes nem daquelas que nos pesam e incomodam porque, quando damos tudo o
que temos, os nossos filhos podem crescer com a consciência de que podem
cometer todos os erros do mundo que continuam a ser dignos do nosso amor e, só
isso, por si só, acredito que é suficiente para criar um ser humano digno, com
valores e respeito e uma relação feliz e harmoniosa com os nossos filhos para
toda a vida. E, quando fazemos tudo o que podemos fazer alinhados com os nossos valores e com a nossa consciência, mais do que algo que precisa de ser eliminado, a culpa pode ser mesmo uma boa ajuda e algo que precisamos de ouvir para saber o que é que precisa de ser mudado.
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