Uma das coisas
em que tenho vindo a reparar desde que sou mãe, é em quão pouco nós – adultos –
confiamos nas crianças. Por vezes parece-me que a maioria dos pais olha para os
filhos como um ser incapaz, incompetente, com má vontade e instintos selvagens que
é preciso domar. Como mãe já ouvi muitas frases do tipo: não podes pegar sempre ao colo porque senão ele nunca mais te vai
deixar fazer nada, não podes dar-lhe de mamar sempre que quer ou até quando ele
quiser porque senão nunca vai querer deixar e isso pode fazer-lhe mal, não
podes deixá-lo fazer tudo o que quer, tens que mostrar quem manda, tens que o
ensinar a dormir sozinho senão nunca vai aprender, tens que o habituar a comer
sozinho, etc. Todas estas frases traduzem essa visão de que a natureza das crianças
é essencialmente de incompetência e de maus instintos que precisam de ser
controlados.
Então, em
primeiro lugar, a psicologia do desenvolvimento tem vindo a descobrir que,
afinal, os bebés são muito mais competentes do que se pensava: um bebé recém
nascido já é capaz de reconher a voz da sua mãe e o cheiro do seu leite, por
exemplo. Há observações que mostram de que bebés com apenas 36 horas de vida,
já são capazes de reconhecer a cara das suas mães e preferem olhar para estas
do que para a cara de estranhas. Desde
que nascem que os bebés também se mostram capazes de imitar alguns gestos ou
expressões como deitar a língua de fora quando um adulto faz o mesmo. Isto
mostra que os bebés nascem já com alguma capacidade de estabelecer relações e
que - mesmo que ainda se mantenham totalmente dependentes dos adultos durante os
seus primeiros tempos de vida - são bastante mais competentes do que aquilo que
muitas vezes temos tendência para achar. Quando estamos a olhar para alguém de
quem gostamos muito as nossas pupilas dilatam e há também observações que
mostram que, mesmo os bebés muito pequenos, já são capazes de responder à
dilatação das pupilas no olhar da sua mãe. Tudo isto mostra que os bebés,
apesar de dependentes, já nascem bastante preparados para estabelecer as
relações de afecto que serão essenciais a todo o seu desenvolvimento. Por isso,
o nosso papel, nesta fase é simplesmente o de reconhecer essa competência e
dar-lhes tudo aquilo de que necessitam para que essas relações se possam
estabelecer o mais harmoniosamente possível.
Esta
desconfiança começa, muitas vezes, logo nos primeiros dias de vida quando o
bebé chora porque precisa de colo e de estar em contacto com a mãe e a mãe se
recusar a dar-lho por medo que fique dependente ou, como já ouvi dizer, viciado
no colo. A questão é que os bebés quando nascem já sabem muito bem daquilo que
precisam: precisam de mamar, de não ter frio nem calor, de estar confortáveis e
de estar em contacto com a mãe para que possam estabelecer uma relação de apego
segura com esta. Uma mãe que confia no seu filho sabe que se ele chora porque
precisa de colo, ela deve dar-lhe esse colo. E assim ensina ao seu filho que as
suas necessidades importam e que está disponível para atendê-las e ensina
também ao seu filho algo que fará uma diferença fundamental em todo o seu
futuro: ensina-o a confiar em si mesmo, ensina-o que quando precisa de algo
pode demonstrá-lo e que as suas necessidades são válidas e importantes. Quando
esta criança crescer e for ela mesma pai ou mãe, será com certeza alguém que
confiará muito mais nos seus filhos, porque só podemos confiar nos outros
quando aprendemos a confiar em nós.
Em relação à
natureza das crianças, que muitas pessoas entendem, que é algo que tem de ser
domado, ou controlado também há muitos exemplos que nos mostram que, mais do
que alguém que as controle, as crianças precisam é de ser amadas, respeitadas e
reconhecidas. Os adolescentes ou mesmo adultos com mais problemas de
comportamento e mais dificuldades no relacionamento com os outros ou com a sua
inserção social são justamente aqueles que não tiveram oportunidade de
estabelecer relações de apego seguras com os seus pais. O psiquiatra Bruce
Terry, autor do livro “The Boy who Was raised as a Dog” conta neste livro
algumas histórias impressionantes de casos que testemunhou de pessoas que eram
criadas sem a possibilidade de estabelecer esses laços e de todas as
consequências devastadoras que isto tinha no seu futuro. Um dos casos descritos
nesse livro é o de um adolescente que matou duas raparigas a sangue frio. Bruce
Terry descreve este adolescente como uma pessoa fria e que não apresentava
nenhum tipo de remorsos por aquilo que tinha feito. Este psiquiatra falou com
os pais e com o irmão do adolescente que se mostravam em choque com o que ele
tinha feito e pareciam pessoas perfeitamente normais, carinhosas,
trabalhadoras, bem inseridas na sociedade e que nunca tinham inflingido nenhum
tipo de maus tratos aos filhos. O irmão mais velho também parecia uma pessoa
bem integrada e sensível e estava também em choque com o acto do irmão que não
conseguia compreender. Falando com esta família os pais diziam que este filho
sempre tinha sido diferente do mais velho e que sempre tinha tido problemas de
comportamento na escola, que não percebiam de onde vinham e que por mais que o
castigassem e repreendessem ele parecia totalmente imune a estas repreensões.
Começavam a acreditar que o filho era simplesmente mau que, por algum motivo,
tinha nascido diferente. E, nos primeiros tempos em que falou com estes pais,
genuinamente preocupadas e chocados com que o que tinha acontecido, Bruce Terry
também não encontrava grandes justificações para o sucedido. Mas, com a
continuação da conversa, começou a perceber o que tinha acontecido. A mãe (que
ele diz que deveria ter um ligeiro atraso mental) e o pai destes dois rapazes
viviam numa cidade junto da família alargada que lhe dava muito apoio na
criação dos dois filhos. Mas, quando o mais novo não tinha ainda um mês, precisaram de mudar de cidade para um sítio onde não conheciam ninguém. Nesta
nova cidade, o pai trabalhava umas doze horas por dia e a mãe ficava com os
dois filhos, sozinha todo o dia, sem ter ninguém que a apoiasse. Começou a
criar o hábito de ir com o filho mais velho passear para um parque, deixando o
mais pequeno, bebé de poucas semanas, sozinho em casa. Voltava apenas o tempo
suficiente para lhe dar biberão e saía novamente deixando-o sozinho durante a
maior parte do dia e isto manteve-se durante uma boa parte da sua infância.
Então este foi um rapaz que não aprendeu a obter nenhum tipo de conforto dos
relacionamentos humanos. Foi uma criança que nunca teve oportunidade de
aprender a ver os outros como uma fonte de conforto e bem-estar e, por isso,
mesmo os castigos e as repreensões dos pais não o afectavam nada porque para
ele estes eram apenas um meio para atingir um fim que, neste caso, seria a
comida, a casa, o conforto material. As outras pessoas eram apenas meros
objectos para a sua gratificação pessoal e, por isso, quando não conseguiu
obter essa gratificação das duas raparigas e, uma vez que já tinha bebido algum
alcoól que contribuiu para desinibição dos impulsos, não hesitou em matá-las.
Esta história,
apesar de um pouco extrema, mostra, tal como muitas outras que o autor conta
neste livro impressionante, como os comportamentos que tantas vezes os
pais querem resolver com a imposição da disciplina não são mais que apenas falta
de amor, de segurança e de confiança que a criança sente e que expressa, por
vezes, com alguns comportamentos mais inconvenientes. Tal como o autor defende,
depois de ter contactado com muitas crianças e adolescentes que passaram por
situações extremas, não existe ninguém que nasça mau, mas existem muitas
crianças que nascem em situações que não permitem aplicar as suas competências
relacionais e que, para não serem constantemente magoadas, não têm outra
solução senão criarem defesas que as afastam das outras pessoas e que limitam a
sua capacidade de sentir empatia: uma emoção essencial para vivermos em harmonia
na sociedade.
Isto não quer
dizer que não tenhamos que impor alguns limites, de vez em quando e que não
seja importante fazê-lo. Acredito que, o nosso papel enquanto pais é o de
orientar e apontar alguns caminhos mas, esta orientação é muito diferente de
uma imposição. Alguém que orienta é simplesmente alguém que está um pouco mais
à frente no caminho a percorrer e que pode mostrar mais facilmente o caminho
mas isso não significa que a criança não deva ter liberdade de escolher o seu
próprio caminho sempre que for necessário. É preciso não confundirmos o
estabelecimento de limites com o a imposição de regras e de normas que se
sobrepoem à confiança que devemos ter nos nossos filhos. Por exemplo, muitas
crianças pequenas passam pela fase de bater quando estão frustradas ou
zangadas, podem bater nos pais, ou nos irmãos mais novos, por exemplo.
Geralmente as crianças batem nas pessoas com têm uma relação, não é muito
natural que o façam com pessoas que não conhecem o suficiente ou quem não
tenham ainda estabelecido uma relação de confiança. Esta fase costuma acontecer
por volta dos 12, 18 meses, em que a criança ainda não consegue falar para
explicar as suas frustrações que acabam por ser frequentes uma vez que está em
plena fase de descobertas – descoberta do mundo, do espaço, do próprio corpo,
visto que começa a controlá-lo muito melhor – e essas descobertas muitas vezes
chocam com comportamentos ou acções que os pais não aprovam. O que acontece
nesta altura é que, muitos pais vêem neste comportamento os indícios de que a
natureza selvagem da criança está a tomar conta dela e precisa de ser
controlada e, imediatamente, iniciam uma luta, uma cruzada contra aquele
comportamento que não costuma ter grande resultado e, muitas vezes, só piora a
situação. Então é aqui que entra a questão da confiança, um pai ou mãe que
confiem no seu filho não veêm este gesto como uma expressão da sua maldade ou
da sua má natureza mas sim como uma incapacidade de se expressarem de outra
forma, e como uma fase que há-de passar. Claro que isto não significa que se
adopte uma atitude passiva e se espera simplesmente que passe. Mas significa
que não vale a pena entrar em luta com a criança, significa que podemos
simplesmente expressar o nosso desagrado com aquele comportamento mas sem
julgar a criança, sem lhe transmitirmos a ideia de que ela precisa urgentemente
de ser controlada e educada para se tornar uma pessoa aceite e digna do nosso
amor. É muito importante que a criança não se sinta envergonhada por ter tido
aquele comportamento. É fundamental que a criança perceba que os pais podem não
gostar que ela lhes bata, ou a outras pessoas, mas que isto não afeta a forma
como a veêm nem o que sentem por si. Uma criança a quem os pais ralham porque
bateu em alguém e com quem os pais se zangam, fica a sentir-se envergonhada com
o seu comportamento. A vergonha é das emoções mais nocivas que se podem sentir
e, ao contrário do que se pensa, não leva a que nenhum comportamento seja
corrigido. Antes pelo contrário, o sentimento de vergonha desperta sensações
fisiológicas muito parecidas com as do medo, ou da ansiedade mas com uma
diferença importante: a criança sente-se totalmente incapaz de lidar melhor com
a situação. Uma pessoa que tem medo, ou se sente ansiosa, ainda pode procurar
encontrar formas alternativas de lidar com a situação mas a vergonha paralisa.
Quando uma criança sente vergonha sente que não é digna de estar no mundo, que
não é digna do amor dos seus pais e isto é algo tão difícil de enfrentar que só
lhe resta tentar anular essa sensação. E esse anulamento só se consegue à custa
de um endurecimento, a criança precisa de construir uma espécie de carapaça
emocional, uma armadura que a protega desses ataques, que a impeça de sentir
essa dor de não se saber amada, aceite e reconhecida.
Todos nascemos
com uma necessidade fundamental de sermos amados, reconhecidos e aceites.
Porque nascemos tão dependentes dos outros para a nossa sobrevivência, nascemos
também programados para estabelecer laços e criar relações. As relações de
apego que estabelecemos desde as primeiras horas de vida são essenciais para o
crescimento e para a saúde mental de todos nós
e se algum comportamento dos nossos pais nos mostra que essas relações
podem estar em perigo, o sofrimento é tão grande que a criança não consegue
aguentá-lo e, por isso, precisa de se proteger tentando desligar-se dessa
relação o que quer dizer que terá cada vez menos vontade de fazer o que lhe
pedimos, porque a única coisa que pode motivar uma criança a fazer o que lhe
pedem é justamente essa relação de apego e de amor com os seus pais.
O facto de não
confiarmos nos nossos filhos faz com que, de algum modo, lhes transmitamos a
mensagem de que eles próprios também não podem confiar em si mesmos. Faz com
que cresçam com a sensação de que há algo terrível em si que precisa de ser
escondido, ou controlado.
Confiar numa
criança é confiar na sua natureza e dar-lhe tempo e espaço para que possa
exprimir-se. Muitas vezes pensamos que precisamos de ensinar os nossos filhos a
comer, a dormir, a andar, a falar mas, a verdade, é que as crianças já vêm
programadas para fazer tudo isto. Só precisamos de lhes dar espaço para que
manifestem a vontade de o fazerem no seu devido tempo, cada uma no ritmo que
for mais certo para si. A confiança é um
dos aspectos mais importantes na nossa relação com os filhos e, quando
confiamos tudo se torna mais fácil, porque quando confiamos podemos descansar,
não precisamos de lutar contra a natureza da criança e ela não precisa de lutar
connosco. E quando abandonamos a luta tudo se torna mais fácil e sobra muito
mais espaço para podermos aproveitar a maravilha e o enorme privilégio de vermos os nossos filhos crescer.
Boa tarde
ResponderEliminarSerá que teria algum pensamento sobre o tema masturbação infantil?A minha pequenina de 4/5 anos Matilde está a pasaar por essa fase e parece ser um tema pouco debatido... tudo fala de amamentação e afins... mas destas fases mais "assustadoras" ou não, não há grande debate.
Obrigada
Teresa Lima Pires