quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Podemos confiar nos nossos filhos


Uma das coisas em que tenho vindo a reparar desde que sou mãe, é em quão pouco nós – adultos – confiamos nas crianças. Por vezes parece-me que a maioria dos pais olha para os filhos como um ser incapaz, incompetente, com má vontade e instintos selvagens que é preciso domar. Como mãe já ouvi muitas frases do tipo: não podes pegar sempre ao colo porque senão ele nunca mais te vai deixar fazer nada, não podes dar-lhe de mamar sempre que quer ou até quando ele quiser porque senão nunca vai querer deixar e isso pode fazer-lhe mal, não podes deixá-lo fazer tudo o que quer, tens que mostrar quem manda, tens que o ensinar a dormir sozinho senão nunca vai aprender, tens que o habituar a comer sozinho, etc. Todas estas frases traduzem essa visão de que a natureza das crianças é essencialmente de incompetência e de maus instintos que precisam de ser controlados.
Então, em primeiro lugar, a psicologia do desenvolvimento tem vindo a descobrir que, afinal, os bebés são muito mais competentes do que se pensava: um bebé recém nascido já é capaz de reconher a voz da sua mãe e o cheiro do seu leite, por exemplo. Há observações que mostram de que bebés com apenas 36 horas de vida, já são capazes de reconhecer a cara das suas mães e preferem olhar para estas do que para  a cara de estranhas. Desde que nascem que os bebés também se mostram capazes de imitar alguns gestos ou expressões como deitar a língua de fora quando um adulto faz o mesmo. Isto mostra que os bebés nascem já com alguma capacidade de estabelecer relações e que - mesmo que ainda se mantenham totalmente dependentes dos adultos durante os seus primeiros tempos de vida - são bastante mais competentes do que aquilo que muitas vezes temos tendência para achar. Quando estamos a olhar para alguém de quem gostamos muito as nossas pupilas dilatam e há também observações que mostram que, mesmo os bebés muito pequenos, já são capazes de responder à dilatação das pupilas no olhar da sua mãe. Tudo isto mostra que os bebés, apesar de dependentes, já nascem bastante preparados para estabelecer as relações de afecto que serão essenciais a todo o seu desenvolvimento. Por isso, o nosso papel, nesta fase é simplesmente o de reconhecer essa competência e dar-lhes tudo aquilo de que necessitam para que essas relações se possam estabelecer o mais harmoniosamente possível.
Esta desconfiança começa, muitas vezes, logo nos primeiros dias de vida quando o bebé chora porque precisa de colo e de estar em contacto com a mãe e a mãe se recusar a dar-lho por medo que fique dependente ou, como já ouvi dizer, viciado no colo. A questão é que os bebés quando nascem já sabem muito bem daquilo que precisam: precisam de mamar, de não ter frio nem calor, de estar confortáveis e de estar em contacto com a mãe para que possam estabelecer uma relação de apego segura com esta. Uma mãe que confia no seu filho sabe que se ele chora porque precisa de colo, ela deve dar-lhe esse colo. E assim ensina ao seu filho que as suas necessidades importam e que está disponível para atendê-las e ensina também ao seu filho algo que fará uma diferença fundamental em todo o seu futuro: ensina-o a confiar em si mesmo, ensina-o que quando precisa de algo pode demonstrá-lo e que as suas necessidades são válidas e importantes. Quando esta criança crescer e for ela mesma pai ou mãe, será com certeza alguém que confiará muito mais nos seus filhos, porque só podemos confiar nos outros quando aprendemos a confiar em nós.
Em relação à natureza das crianças, que muitas pessoas entendem, que é algo que tem de ser domado, ou controlado também há muitos exemplos que nos mostram que, mais do que alguém que as controle, as crianças precisam é de ser amadas, respeitadas e reconhecidas. Os adolescentes ou mesmo adultos com mais problemas de comportamento e mais dificuldades no relacionamento com os outros ou com a sua inserção social são justamente aqueles que não tiveram oportunidade de estabelecer relações de apego seguras com os seus pais. O psiquiatra Bruce Terry, autor do livro “The Boy who Was raised as a Dog” conta neste livro algumas histórias impressionantes de casos que testemunhou de pessoas que eram criadas sem a possibilidade de estabelecer esses laços e de todas as consequências devastadoras que isto tinha no seu futuro. Um dos casos descritos nesse livro é o de um adolescente que matou duas raparigas a sangue frio. Bruce Terry descreve este adolescente como uma pessoa fria e que não apresentava nenhum tipo de remorsos por aquilo que tinha feito. Este psiquiatra falou com os pais e com o irmão do adolescente que se mostravam em choque com o que ele tinha feito e pareciam pessoas perfeitamente normais, carinhosas, trabalhadoras, bem inseridas na sociedade e que nunca tinham inflingido nenhum tipo de maus tratos aos filhos. O irmão mais velho também parecia uma pessoa bem integrada e sensível e estava também em choque com o acto do irmão que não conseguia compreender. Falando com esta família os pais diziam que este filho sempre tinha sido diferente do mais velho e que sempre tinha tido problemas de comportamento na escola, que não percebiam de onde vinham e que por mais que o castigassem e repreendessem ele parecia totalmente imune a estas repreensões. Começavam a acreditar que o filho era simplesmente mau que, por algum motivo, tinha nascido diferente. E, nos primeiros tempos em que falou com estes pais, genuinamente preocupadas e chocados com que o que tinha acontecido, Bruce Terry também não encontrava grandes justificações para o sucedido. Mas, com a continuação da conversa, começou a perceber o que tinha acontecido. A mãe (que ele diz que deveria ter um ligeiro atraso mental) e o pai destes dois rapazes viviam numa cidade junto da família alargada que lhe dava muito apoio na criação dos dois filhos. Mas, quando o mais novo não tinha ainda um mês, precisaram de mudar de cidade para um sítio onde não conheciam ninguém. Nesta nova cidade, o pai trabalhava umas doze horas por dia e a mãe ficava com os dois filhos, sozinha todo o dia, sem ter ninguém que a apoiasse. Começou a criar o hábito de ir com o filho mais velho passear para um parque, deixando o mais pequeno, bebé de poucas semanas, sozinho em casa. Voltava apenas o tempo suficiente para lhe dar biberão e saía novamente deixando-o sozinho durante a maior parte do dia e isto manteve-se durante uma boa parte da sua infância. Então este foi um rapaz que não aprendeu a obter nenhum tipo de conforto dos relacionamentos humanos. Foi uma criança que nunca teve oportunidade de aprender a ver os outros como uma fonte de conforto e bem-estar e, por isso, mesmo os castigos e as repreensões dos pais não o afectavam nada porque para ele estes eram apenas um meio para atingir um fim que, neste caso, seria a comida, a casa, o conforto material. As outras pessoas eram apenas meros objectos para a sua gratificação pessoal e, por isso, quando não conseguiu obter essa gratificação das duas raparigas e, uma vez que já tinha bebido algum alcoól que contribuiu para desinibição dos impulsos, não hesitou em matá-las. 
Esta história, apesar de um pouco extrema, mostra, tal como muitas outras que o autor conta neste livro impressionante,  como os comportamentos que tantas vezes os pais querem resolver com a imposição da disciplina não são mais que apenas falta de amor, de segurança e de confiança que a criança sente e que expressa, por vezes, com alguns comportamentos mais inconvenientes. Tal como o autor defende, depois de ter contactado com muitas crianças e adolescentes que passaram por situações extremas, não existe ninguém que nasça mau, mas existem muitas crianças que nascem em situações que não permitem aplicar as suas competências relacionais e que, para não serem constantemente magoadas, não têm outra solução senão criarem defesas que as afastam das outras pessoas e que limitam a sua capacidade de sentir empatia: uma emoção essencial para vivermos em harmonia na sociedade.
Isto não quer dizer que não tenhamos que impor alguns limites, de vez em quando e que não seja importante fazê-lo. Acredito que, o nosso papel enquanto pais é o de orientar e apontar alguns caminhos mas, esta orientação é muito diferente de uma imposição. Alguém que orienta é simplesmente alguém que está um pouco mais à frente no caminho a percorrer e que pode mostrar mais facilmente o caminho mas isso não significa que a criança não deva ter liberdade de escolher o seu próprio caminho sempre que for necessário. É preciso não confundirmos o estabelecimento de limites com o a imposição de regras e de normas que se sobrepoem à confiança que devemos ter nos nossos filhos. Por exemplo, muitas crianças pequenas passam pela fase de bater quando estão frustradas ou zangadas, podem bater nos pais, ou nos irmãos mais novos, por exemplo. Geralmente as crianças batem nas pessoas com têm uma relação, não é muito natural que o façam com pessoas que não conhecem o suficiente ou quem não tenham ainda estabelecido uma relação de confiança. Esta fase costuma acontecer por volta dos 12, 18 meses, em que a criança ainda não consegue falar para explicar as suas frustrações que acabam por ser frequentes uma vez que está em plena fase de descobertas – descoberta do mundo, do espaço, do próprio corpo, visto que começa a controlá-lo muito melhor – e essas descobertas muitas vezes chocam com comportamentos ou acções que os pais não aprovam. O que acontece nesta altura é que, muitos pais vêem neste comportamento os indícios de que a natureza selvagem da criança está a tomar conta dela e precisa de ser controlada e, imediatamente, iniciam uma luta, uma cruzada contra aquele comportamento que não costuma ter grande resultado e, muitas vezes, só piora a situação. Então é aqui que entra a questão da confiança, um pai ou mãe que confiem no seu filho não veêm este gesto como uma expressão da sua maldade ou da sua má natureza mas sim como uma incapacidade de se expressarem de outra forma, e como uma fase que há-de passar. Claro que isto não significa que se adopte uma atitude passiva e se espera simplesmente que passe. Mas significa que não vale a pena entrar em luta com a criança, significa que podemos simplesmente expressar o nosso desagrado com aquele comportamento mas sem julgar a criança, sem lhe transmitirmos a ideia de que ela precisa urgentemente de ser controlada e educada para se tornar uma pessoa aceite e digna do nosso amor. É muito importante que a criança não se sinta envergonhada por ter tido aquele comportamento. É fundamental que a criança perceba que os pais podem não gostar que ela lhes bata, ou a outras pessoas, mas que isto não afeta a forma como a veêm nem o que sentem por si. Uma criança a quem os pais ralham porque bateu em alguém e com quem os pais se zangam, fica a sentir-se envergonhada com o seu comportamento. A vergonha é das emoções mais nocivas que se podem sentir e, ao contrário do que se pensa, não leva a que nenhum comportamento seja corrigido. Antes pelo contrário, o sentimento de vergonha desperta sensações fisiológicas muito parecidas com as do medo, ou da ansiedade mas com uma diferença importante: a criança sente-se totalmente incapaz de lidar melhor com a situação. Uma pessoa que tem medo, ou se sente ansiosa, ainda pode procurar encontrar formas alternativas de lidar com a situação mas a vergonha paralisa. Quando uma criança sente vergonha sente que não é digna de estar no mundo, que não é digna do amor dos seus pais e isto é algo tão difícil de enfrentar que só lhe resta tentar anular essa sensação. E esse anulamento só se consegue à custa de um endurecimento, a criança precisa de construir uma espécie de carapaça emocional, uma armadura que a protega desses ataques, que a impeça de sentir essa dor de não se saber amada, aceite e reconhecida.
Todos nascemos com uma necessidade fundamental de sermos amados, reconhecidos e aceites. Porque nascemos tão dependentes dos outros para a nossa sobrevivência, nascemos também programados para estabelecer laços e criar relações. As relações de apego que estabelecemos desde as primeiras horas de vida são essenciais para o crescimento e para a saúde mental de todos nós  e se algum comportamento dos nossos pais nos mostra que essas relações podem estar em perigo, o sofrimento é tão grande que a criança não consegue aguentá-lo e, por isso, precisa de se proteger tentando desligar-se dessa relação o que quer dizer que terá cada vez menos vontade de fazer o que lhe pedimos, porque a única coisa que pode motivar uma criança a fazer o que lhe pedem é justamente essa relação de apego e de amor com os seus pais.
O facto de não confiarmos nos nossos filhos faz com que, de algum modo, lhes transmitamos a mensagem de que eles próprios também não podem confiar em si mesmos. Faz com que cresçam com a sensação de que há algo terrível em si que precisa de ser escondido, ou controlado.
Confiar numa criança é confiar na sua natureza e dar-lhe tempo e espaço para que possa exprimir-se. Muitas vezes pensamos que precisamos de ensinar os nossos filhos a comer, a dormir, a andar, a falar mas, a verdade, é que as crianças já vêm programadas para fazer tudo isto. Só precisamos de lhes dar espaço para que manifestem a vontade de o fazerem no seu devido tempo, cada uma no ritmo que for  mais certo para si. A confiança é um dos aspectos mais importantes na nossa relação com os filhos e, quando confiamos tudo se torna mais fácil, porque quando confiamos podemos descansar, não precisamos de lutar contra a natureza da criança e ela não precisa de lutar connosco. E quando abandonamos a luta tudo se torna mais fácil e sobra muito mais espaço para podermos aproveitar a maravilha e o enorme privilégio de vermos os nossos filhos crescer. 

1 comentário:

  1. Boa tarde
    Será que teria algum pensamento sobre o tema masturbação infantil?A minha pequenina de 4/5 anos Matilde está a pasaar por essa fase e parece ser um tema pouco debatido... tudo fala de amamentação e afins... mas destas fases mais "assustadoras" ou não, não há grande debate.
    Obrigada
    Teresa Lima Pires

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