Hoje em dia, nas sociedades ocidentais, acho que vivemos um bocado obcecados com a ideia de que as crianças
devem ser independentes e muitas vezes parece que a meta de todos os métodos
educativos deve ser esta independência que, muitas vezes, se defende que quanto mais
cedo acontecer melhor será.
Primeiro acho que é importante lembrar que
nas sociedades orientais –menos individualistas e em que as crianças são
educadas mais para fazerem parte do todo – esta preocupação não existe ou, pelo
menos, não estará tão presente.
Será essa talvez uma das razões pelas
quais no Japão, por exemplo, é perfeitamente natural e normal que um bebé durma
no quarto dos pais e, mais tarde, até no quarto dos avós que muitas vezes
também moram com os filhos e netos. Apesar de não ser este o tema deste artigo
vale a pena mencionar que alguns investigadores apontam justamente esta
normalidade de os bebés dormirem acompanhados como um dos factores de protecção
contra o síndroma da morte súbita que é praticamente inexistente no Japão,
sendo que este termo nem sequer existe em japonês.
É importante perceber que é a criança deve
ser educada para ter alguma autonomia, no sentido de ter espaço para se
descobrir a si mesma enquanto pessoa e enquanto indivíduo com gostos,
motivações e emoções próprias mas também é importante que sejamos capazes de
distinguir esta autonomia ou este auto-conhecimento desta questão da independência.
Porque ninguém é verdadeiramente independente e é bom que o saibamos e que não
tenhamos medo de o reconhecer. Todos precisamos dos outros e as crianças,
sobretudo nos seus primeiros anos de vida, precisam mesmo de se sentir parte de
um todo e de se sentirem dependentes dos seus pais para que possam fazer com
toda a segurança esse caminho de auto-descoberta que acontece com toda a naturalidade
se lhe dermos a segurança necessária para tal.
A criança precisa de não ter medo de si
própria, dos seus sentimentos para que se possa descobrir. Também precisa de
saber que será aceite mesmo que descubra e demonstre partes de si mais assustadoras
ou menos positivas. Precisa de sentir que tem o apoio total e o amor
incondicional dos pais para não ter medo de confiar nos seus sentimentos, nas
suas emoções e para não ter medo de expor aquilo que sente e aquilo que vai
descobrindo ao logo de todo esse processo de crescimento.
Mas, para que este apoio aconteça e para
que a criança se sinta incondicionalmente amada a sua dependência inicial
precisa de ser respeitada e acolhida. E precisamos de compreender que um bebé e
uma criança pequena são seres fusionais por natureza e isso está certo, porque
quando essa fusão deixar de ser necessária a natureza da criança irá
encarregar-se de o mostrar.
Em muitos casos hoje em dia vive-se uma
verdadeira ambivalência no que concerne ao desenvolvimento desta independência
e acredito que ela surge por causa de um desconhecimento profundo daquilo que
são as necessidades primárias de uma criança: ainda há dias observava o pai de
uma criança com cerca de 3 anos que não a deixava brincar fora de um tapete
almofadado; a criança estava a brincar com outra a empurrar um carro para trás
e para a frente e, cada vez que punha literalmente um pé fora do tapete, o pai
começava a dizer-lhe que não podia, que tinha de brincar no tapete. Fazia-o com
ternura e paciência mas não lhe dava espaço para descobrir que o mundo não é
todo almofadado e que podemos cair e magoar-nos muitas vezes mas que tudo isso
faz parte do crescimento e que os nossos pais vão estar cá não para nos impedir
de cair mas para nos darem um lugar seguro onde chorar depois disso acontecer.
Muitas vezes vejo crianças que querem correr, ou querem saltar a quem os pais
agarram imediatamente a mão e dizem que não podem fazê-lo porque se podem
magoar. Algumas dessas crianças são precisamente as mesmas que foram ensinadas
a dormir sozinhas no quarto desde poucos meses de idade porque tinham se
aprender a dormir sem ajudas para se tornarem independentes. Será que não vemos
aqui as enormes contradições que existem?
Se por um lado queremos crianças
independentes desde cedo, com coisas em que é muito natural que elas não sejam
capazes de fazer – como dormir sozinho em bebé, ou regular as suas próprias
emoções com crianças pequenas – por outro lado não lhes damos espaço para
explorar essa independência justamente onde ela deve mais naturalmente
acontecer: na exploração corporal e espacial, que é tão importante para o
desenvolvimento da motricidade mas não só; porque é nestas brincadeiras em que
a criança se afasta um pouco dos pais e em que experimenta correr ou fazer algo
mais arriscado que nunca tinha feito que ela tem espaço para descobrir os seus
limites, as suas capacidades, as suas motivações e até a sua coragem ou a sua
possibilidade de existir afastada dos pais e por si própria naqueles momentos.
Mas precisamos também de começar por
reconhecer que as crianças são seres dependentes por natureza. Precisamos de
saber que as crianças nascem com um instinto básico: o de se apegarem aos seus
principais cuidadores e esse apego implica dependência. E isso significa que
uma criança que se estabelece esta relação de apego tem que sentir que essa
dependência é aceite, compreendida e acolhida. Cito muitas vezes o Gordon Neufeld,
psicólogo canadiano, porque ele construiu o modelo de desenvolvimento infantil
mais completo que conheço e que gira sempre em torno deste conceito de apego.
E, para Neufeld, é essencial que a criança saiba que pode depender dos pais
assim como é fundamental que os pais saibam que podem cuidar dela para que esta
relação aconteça da forma mais harmoniosa e para que a criança tenha verdadeiramente
espaço para crescer e para se desenvolver com toda a maturidade em cada fase da
sua vida.
Mas, para isso acontecer os pais não podem
ter medo de alimentar essa dependência nos seus aspectos saudáveis, ao mesmo tempo
que não podem ter medo de saber que são eles os responsáveis por guiar e
orientar os filhos.
Hoje em dia também temos algum receio da
noção de hierarquia e parece haver uma certa tendência para pensar que, quanto
queremos respeitar os nossos filhos e dar-lhe espaço para se descobrirem enquanto
pessoas e indivíduos precisamos de deixar de lado a hierarquia e de os aceitar
como iguais. Mas os filhos não são iguais a nós, uma criança não é um adulto em
miniatura, apesar de muito adultos serem crianças grandes. As crianças têm
necessidades diferentes das dos adultos e uma necessidade fundamental é a de se
sentirem guiadas, cuidadas, orientadas. Porque só assim podem manter o seu
instinto de apego que é justamente o que lhes permite sentirem-se seguras. Ao
mesmo tempo que também facilita muito a tarefa dos pais porque as torna mais
fáceis de orientar.
Para Neufeld o grande propósito da
educação é permitir que a criança cresça sem precisar de se defender demasiado,
mantendo um coração aberto. As crianças são seres frágeis, justamente por causa
dessa sua necessidade de se sentirem seguras e protegidas pelos pais, as
palavras e o comportamento destes têm um impacto enorme sobre os seus
sentimentos. É mais fácil ferir uma criança do que um adulto e quando uma
criança é ferida isto também tem mais peso do que num adulto.
Porque a criança nasce totalmente
predisposta a estabelecer esta relação de apego e porque precisa de preservar
esse instinto que lhe diz que são os adultos que cuidam de si as pessoas mais
indicadas para a proteger e manter segura, ela irá usar tudo aquilo que for
preciso para se defender e proteger esse instinto, mesmo que isso implique
ignorar os seus próprios sentimentos. E assim o coração começa a fechar-se aos
poucos, porque quando ignoramos os nossos sentimentos também não podemos ligar
aos dos outros. E podemos mesmo afirmar que esta será a razão principal para tantos
problemas que acontecem no mundo hoje em dia: a incapacidade de ter em conta os
sentimentos dos outros, a falta de empatia que acontece quando o nosso coração
já se fechou demasiado.
Acontece que este instinto de apego também
torna a criança vulnerável porque a faz querer ligar às outras pessoas e faz
com que precise de se sentir importante para aqueles que são importantes para
si. E se essa vulnerabilidade for demasiado grande para que a criança a possa
suportar então este instinto terá mesmo que ser ignorado e desligado. E aí
temos uma criança com o coração completamente fechado e a quem já muito dificilmente
conseguiremos chegar.
E só uma criança com o coração aberto é
que pode ser facilmente orientada. Só uma criança com o coração aberto é que
não tem medo de se explorar e de reconhecer e de aceitar os seus próprios sentimentos
e de aprender a lidar também com os dos outros.
E o mundo precisa de mais crianças com o
coração aberto porque só essas é que se podem tornar em adultos verdadeiramente
maduros e capazes de levar uma vida preenchida e feliz mas também em harmonia
com os outros.

Não precisamos de ensinar nenhuma criança
a bater porque isso elas até já sabem por instinto, precisamos é de lhes dar
espaço para não terem medo de ser feridas, para não terem medo de sentir e de
manter o seu coração aberto mesmo depois de terem sido magoadas. Precisamos de
lhe as ensinar que podem ser vulneráveis porque estaremos cá para as ajudar a
lidar com essa vulnerabilidade. E isso só se consegue se estivermos também de
coração aberto na nossa relação com elas, se também não tivermos medo de ser
vulneráveis e se assumirmos que ter um filho nos coloca na posição mais
vulnerável do mundo, porque ser pai ou mãe de alguém tem tanto de maravilhoso
como de perigoso. Numa entrevista ouvi uma vez dizer o Ricardo Araújo Pereira
que um dia olhou para as filhas e percebeu o enorme potencial de sofrimento que
havia ali, porque ser pai ou mãe é mesmo isso: quanto tudo corre bem é
maravilhoso, quando corre mal pode ser muito doloroso. Então precisamos também
de aceitar essa vulnerabilidade em nós e de, mesmo com ela, não termos medo de
assumir a liderança porque aquilo que mais facilmente fecha o coração de uma
criança é não se sentir segura, protegida por quem deveria cuidar de si e isto
tanto acontece quando as forçamos a fazer aquilo que ainda não conseguem fazer
sozinhas como quando nos demitimos do papel de líderes e orientadores e as
deixamos totalmente entregues a si mesmas nessa auto-descoberta que, só por si,
já pode ser tão assustadora.