quinta-feira, 21 de maio de 2020

Saúde e relacionamentos

Aquilo que nos torna pessoas são as nossas relações. Aquilo que nos define enquanto espécie é a grande necessidade que temos de estabelecer ligações desde o primeiro momento de vida e a forma como precisamos delas para nos desenvolvermos. 

Estudos feitos com crianças que viveram em situações trágicas como os conhecidos orfanatos da Roménia mostraram bem como, sem a possibilidade de estabelecer ligações as crianças ficavam com problemas de desenvolvimento em todos os níveis: cognitivos, motores e emocionais e até uma estatura abaixo da média. E havia um grande número delas que, mesmo com alimento suficiente e boas condições materiais e de higiene nem sequer chegava a sobreviver. Faillure to thrive foi o nome dado pelos investigadores a esse fenómeno muito observado nessas instituições em que o organismo das crianças simplesmente não conseguia sobreviver ao stress de não ter alguém com quem pudesse construir uma ligação. No caso daquelas a quem era permitido contactar com outras crianças verificou-se que algumas chegaram a criar uma língua própria que só elas entendiam, preenchendo essa necessidade desesperada que tinham de se ligar alguém mesmo que fosse apenas outra criança. 

A conhecida experiência da cara parada ou Still face experiment no seu nome original e todas as investigações tão importantes do seu autor, Ed. Tronick, também demonstram muito bem como é fundamental responder aos bebés e crianças para o seu bom desenvolvimento e como eles o esperam e dependem disso desde os seus primeiros dias. 


Estudos com macaquinhos sacrificados nos anos 50 também mostraram bem a importância do toque e a forma como ele é prioritário até em relação ao próprio alimento. 


Uma investigação da Sue Jonhson, terapeuta de casal, também mostra como o simples facto de termos uma pessoa que amamos a segurar-nos a mão durante um procedimento doloroso diminui bastante o stress e até a própria sensação de dor. 

Ainda há dias comecei a ler um livro de um médico que na sua introdução diz que a solidão é uma causa de morte tão grande como a obesidade e os diabetes. E sabe-se que o sentimento de solidão aumenta em cerca de cinquenta por cento a probabilidade de se sofrer um ataque cardíaco, dando um significado mais literal à expressão de coração partido. Sabe-se também que depois de um episódio de enfarte um dos aspectos mais determinantes para a sobrevivência é a qualidade dos relacionamentos da pessoa. 

Também já foi demonstrado que o sentimento de rejeição activa no cérebro exactamente as mesmas zonas que a dor física, mostrando como este sentimento tem também um papel importante na nossa sobrevivência. Porque evoluímos enquanto espécie com base nessa mesma dependência. Foi o facto de sermos capazes de colaborar que nos permitiu dividir o cuidado com as crias, construir abrigos melhores, armazenar alimentos e tudo o resto que teve um papel fundamental para a nossa sobrevivência. 

Descrevo isto tudo apenas para que nos lembremos daquilo que nos torna pessoas e nos faz crescer e viver bem e com saúde: os relacionamentos. 

Então não podemos esquecer-nos disto nos momentos de crise como o que estamos a viver. É verdade que podemos manter boas relações com algum distanciamento das pessoas que não estão no nosso círculo mais íntimo, também é verdade que podemos usar os ecrãs de vez em quando para as alimentar e também é verdade que, enquanto adultos ou crianças mais crescidas conseguimos criar boas ligações mesmo com uma parte do rosto tapada pelas máscaras porque já conseguimos relacionar-nos mais com base nas palavras e outro tipo de gestos. 

Mas precisamos de nos lembrar que não podemos alimentar ligações apenas e sempre com ecrãs pelo meio, muito menos nas crianças. O ensino à distância não faz sentido para uma criança e faz muito pouco para um jovem. As crianças aprendem quando conseguem sentir-se ligadas aos adultos que ensinam e é muito mais difícil fazer isso através de um ecrã, além de que nem sequer é positivo para o seu desenvolvimento cerebral o uso excessivo de ecrãs, como já expliquei aqui

Mas, mesmo para os adultos a presença física de alguém é insubstituível. Quando estamos com alguém ao pé de nós, a conversar de forma mais íntima e presente, há uma sincronização dos ritmos e um mundo de micro-expressões faciais, que são muito mais difíceis de interpretar num ecrã e que dão ás duas pessoas um sentimento de segurança que , por sua vez, activa o seu circuito social, responsável pelo estado de equilíbrio e sensação de bem-estar e saúde. 

E quando falamos de crianças também é verdade que é possível estabelecer uma ligação com elas mesmo com máscara posta - com crianças mais crescidas não tanto com bebés - mas é muito mais difícil porque ainda não estão tão treinadas a ler as nossas expressões e os seus circuitos sociais são menos desenvolvidos. E se isto até pode funcionar com uma criança calma, equilibrada e com um adulto com quem já exista uma boa ligação, fica tudo muito mais difícil quando a criança está tensa o que acontece muito facilmente quando estão sem os pais.  

E esperar que uma criança fique tranquila sem contacto físico, sem toque, é simplesmente não perceber mesmo nada das suas necessidades, sobretudo para as mais pequenas mas também, ainda que em menor escala, para as mais velhas. 

Ao mesmo tempo também temos pessoas nos hospitais a serem submetidas a cirurgias difíceis e arriscadas e que estão completamente sozinhas. Compreendo que a entrada cada pessoa nova no hospital se torna um novo possível foco de infecção. Mas também sei que essa entrada poderá ter um papel fundamental na recuperação de doenças difíceis e de situações potencialmente traumáticas. Sei que também é arriscado deixarmos sozinhas pessoas que estão a ser tratadas por problemas de saúde graves e assustadores, porque esse sentimento de solidão irá activar no seu organismo uma carga de stress tóxico que poderá eventualmente ser tão letal como o vírus do qual estão a ser protegidas. 

Também me custa muito saber de recém-nascidos que estiveram separados quinze dias das suas mães: para serem protegidos de um vírus arriscam-se a uma vida inteira de traumas causados por essa separação que se sabe que pode ter efeitos destruidores no seu sistema de resposta ao stress, na amamentação e na criação de um vínculo do qual depende toda a organização e estrutura mental da criança. 

Todas estas medidas têm algo em comum: uma visão redutora e limitada do que é a saúde e o não reconhecimento da importância da saúde mental que é construída, em boa parte, através das ligações que criamos. 

Por isso gostava de ver estas questões importantes a entrarem também nas equações. Quando tentamos proteger-nos do vírus gostava que o fizéssemos com a noção de que é também importante para a nossa saúde proteger as relações e libertar-nos do medo que nos faz, neste momento, ver cada um dos outros como um potencial perigo para a nossa saúde. Nunca ouvi dizer tantas vezes que estamos todos juntos mas, a verdade, é que nunca estivemos tão separados. Separados pelo medo que os outros nos infectem, separados pelo medo que os outros não levem isto suficientemente a sério ou separados pelo medo que o levem demasiado a sério. 

Então precisamos de nos juntar naquilo que nos torna mais humanos: o reconhecimento de que todos precisamos uns dos outros para sobreviver, para estar bem e para ser felizes. 

E precisamos que isto comece a pesar tanto nas decisões como as estatísticas que mostram tão bem o lado racional da humanidade mas que falham redondamente naquilo que é mais importante: as emoções. Porque se este lado racional nos trouxe conquistas maravilhosas e fantásticas que melhoraram muito a nossa qualidade de vida a verdade é que também nos afastou daquilo que nos faz felizes: as emoções. 

Um livro muito bom do psiquiatra Ian Mcgilchrist - the master and his emissary - explica como o mundo ocidental valoriza excessivamente as funções do hemisfério esquerdo. E nunca como agora isso foi tão claro para mim. Quando achamos que não há problema em pedir a adultos e crianças que se distanciem e usem máscaras estamos a valorizar demasiado a racionalidade e a deixar completamente de lado todas as funções do hemisfério direito, que é justamente o que analisa a comunicação não verbal e está mais ligado às emoções. Acontece que esta valorização excessiva do hemisfério esquerdo, com todos os benefícios importantes que nos trouxe, como o conhecimento científico, também tem uma responsabilidade importante no crescente mal estar, ansiedade e depressão que se vêem hoje em dia. É através do hemisfério direito que nos ligamos ao corpo e às emoções. E é só através do contacto com estas que podemos ser felizes e ter vidas preenchidas.


O hemisfério esquerdo permite-nos fazer coisas muito importantes, como dar nomes ao que sentimos e perceber porque acontece. Mas sem o direito ficamos vazios, reduzidos apenas ao intelecto podemos conquistar muitas coisas mas sem amor a vida não faz sentido.



Precisamos de encontrar um equilíbrio que nos permita perceber que se queremos viver bem, não apenas sobreviver, controlar o vírus não pode ser a nossa única preocupação.



Precisamos de ter noção que uma boa parte da comunicação acontece de forma não verbal. E quando alguém usa máscara e se distancia aquilo que o nosso organismo lê é um sinal de perigo.

Não sou contra o uso da máscara em situações específicas, como transportes públicos por exemplo. Mas precisamos de não as normalizar demasiado sob pena de anularmos e desvalorizarmos completamente o nosso hemisfério direito, anulando também tudo o que nos torna humanos e nos permite ser felizes.



E se isto é válido para os adultos, é ainda mais importante para as crianças em que o cérebro ainda está a organizar-se de formas que se irão tornar permanentes.

E sobretudo não podemos distancia-nos um dos outros e continuar a encarar todos como potenciais transmissores de vírus perigosos sob pena de vermos gravemente afectada a nossa saúde mental. 

Não acredito que esta crise nos traga muitas coisas boas, porque durante uma crise tudo o que queremos é sobreviver. Mas gostava muito que, no futuro, começássemos a ser mais capazes de valorizar as emoções e as relações como o património mais importante da humanidade e aquele que precisa mais de ser protegido e valorizado e que percebêssemos que não se pode falar de saúde física sem pensar na mental e sem pensar nas emoções e nas relações porque elas fazem parte de um todo inseparável que não pode ser analisado separadamente. Mesmo que seja impossível pô-las no microscópio como já fazemos com os vírus.