terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Educar com limites, respeito e acolhimento

Uma das questões que gera mais polarizações no campo da educação talvez seja a questão dos limites. Existem aqueles que defendem que os limites são essenciais e que sem eles estaremos a condenar os nossos filhos a uma vida de incapacidade de lidar com a frustração e sem qualquer possibilidade de sucesso e os que, no lado oposto, defendem que as crianças não precisam de limites nenhuns mas apenas de respeito e de alguém que as compreenda.

Confesso que os discursos mais polarizados dos dois lados me despertam alguns anti-corpos apesar de, na sua essência, até concordar com estas duas posições e saber que não são incompatíveis como tantas vezes parecem. Vou explicar porquê. 

O discurso de que as crianças precisam de limites e sem eles estaremos a criar pequenos ditadores e tiranos que nunca nos saberão respeitar nem tolerar qualquer tipo de frustração desperta em mim uma reacção de rejeição e acredito que terá o mesmo efeito em muitas outras pessoas.  Isto porque, mesmo que não seja o que se diz, é um discurso que parte de uma certa atitude de que as crianças têm tendências más que precisam de ser dominadas e controladas e que, caso não o façamos, corremos o risco de que elas nos controlem a nós. Eu não acredito que as crianças sejam seres malvados que precisam de ser domados, mas acredito que as crianças precisam de sentir que os pais estão no controlo e na verdade é isto que essas pessoas dizem. Mas quando dizemos isto apenas assim, desta forma, sinto que falta um certo elemento de acolhimento e de amor e aceitação pela natureza da criança e acredito que muitas pessoas rejeitem estas teorias apenas por sentirem também a falta desse calor e desse respeito que as crianças nos merecem. E isso faz despertar em nós a criança ferida, que se sentiu pouco acolhida na infância e que rejeita essa forma de educar porque sente que, de algum modo, foi ela a causadora do seu sofrimento.

Mas claro que colocar limites, por vezes, é mesmo um acto de amor e de compreensão da natureza da criança que precisa de ser protegida e orientada. 

Do lado oposto temos aquelas pessoas que dizem que ao colocar limites estamos a criar crianças submissas e permanentemente frustradas que não terão oportunidade de se descobrir a si mesmas, fruto dessa criação autoritária. Confesso que, este lado, para mim é muitas vezes mais fácil de ouvir e aceitar, talvez porque não atinja tanto a minha criança interior. Mas, a verdade é que, muitas vezes, também vem despido de algum conhecimento sobre o desenvolvimento infantil e as necessidades das crianças. Neste lado concordo com a ideia de que as crianças não têm de ser moldadas às nossas vontades nem expectativas e que são merecedoras de respeito e dignidade. Mas, a verdade, é que respeitar uma criança é reconhecer que a sua natureza também lhes diz que elas precisam de ser guiadas, orientadas, protegidas. E como podemos ser protegidos por alguém que nunca assume o controlo? Como podemos deixar-nos guiar por alguém que parece não saber bem o caminho? E como é que podemos sentir-nos seguros com alguém que não nos transmite uma imagem de segurança, que parece não confiar em si próprio e no papel fundamental que precisa de desempenhar? 

Quando precisamos de um mapa, por estarmos em território desconhecido, não queremos um mapa que não nos dê certezas, ninguém se deixaria orientar por um GPS que estivesse sempre a fazer perguntas ou a mudar de caminho e de direcção ou que nos mostrasse o caminho cheio de incerteza na voz. Então as nossas crianças também não podem deixar-se orientar por nós se não soubermos  bem para onde queremos ir, ou pelo menos, se não aparentarmos saber o melhor possível quando estamos perto delas. 

Mas, se este discurso baseado no respeito e aceitação nem sempre é muito fundamentado nos modelos da psicologia do desenvolvimento, a verdade, é o que discurso mais autoritário também se baseia muitas vezes em modelos que não estão muito actualizados. 
As neurociências têm vindo a mostrar-nos cada vez melhor a importância e o impacto que têm os relacionamentos na nossa vida e sobretudo entre pais e filhos. Então aquilo de que as crianças precisam em primeiro lugar é de relações seguras e a qualidade do relacionamento entre pais e filhos deve ser a nossa primeira preocupação e a base mais importante de todo o nosso trabalho. Sem ela não existem limites nem nada que possa fazer realmente a diferença. Acontece que a nossa capacidade de reconhecermos que precisa de existir uma hierarquia entre pais e filhos também contribui muito para a qualidade dessa relação. 

Gordon Neufeld, psicólogo canadiano que construiu um modelo muito completo do desenvolvimento infantil que me orienta sempre no meu trabalho, costuma dizer que a parentalidade é como uma dança. Então precisamos de saber dançar. E para dançar não adianta termos apenas um conhecimento teórico dos passos ou da música, pode ajudar temos algumas noções básicas, mas acima de tudo, precisamos de sentir a música. E isto não é racional. Nunca ouve tanta informação sobre parentalidade e, paradoxalmente, também nunca ouve tanta dificuldade em dançar como parece haver nos nossos dias. 

Nesta questão dos limites essa ideia da dança faz-me muito sentido. Porque é realmente uma dança em que temos de ser capazes de sentir os nossos filhos e o nosso próprio instinto e de saber ir ajustando as duas coisas. Não precisamos que ninguém nos ensine a ser pai e mãe se formos capazes de simplesmente entrar nessa dança. Aí saberemos exactamente o que precisamos de impor e o que precisamos de respeitar. Saberemos quando é tempo de respeitar, apoiar e acolher sem direcções e quando é fundamental orientar, guiar e até proibir. Sim, porque às vezes parece que proibir é uma palavra proibida na educação hoje em dia, mas enquanto pais temos mesmo de proibir certas coisas aos nossos filhos por vezes, temos de os proibir de fumar e beber álcool em crianças, por exemplo ou de se atirarem para uma estrada com carros. 

Vejo por vezes muita confusão na cabeça dos pais em relação a estas coisas porque se esquecem de como dançar. Por exemplo, é claro que não devemos obrigar uma criança a comer, temos obrigação de escolher comidas saudáveis e de lhas apresentar e de proibir aquelas que não consideramos decentes mas não podemos obrigá-las a comer as quantidades que imaginamos serem as certas. Porque os mecanismos de saciedade são algo muito instintivo e variam de pessoa para pessoa e também são algo que é relativamente fácil de avariar por isso é importante que criem uma relação saudável com a comida e que aprendam a ouvir o seu próprio corpo. Mas isto é muito diferente de esperarmos que sejam eles a dizer-nos que têm fome ou até a servirem-se sozinhos. Devemos ser nós a estipular os horários das refeições e a ter consciência de quando será mais ou menos adequado dar-lhes comida. A comida está muito relacionada com este sentimento de sermos cuidados e uma criança que tem sempre de pedir comida e em que não há nenhuma regularidade nas refeições é uma criança que, facilmente, se sente perdida ou descuidada. Quando antecipamos as necessidades dos nossos filhos, sabendo que é muito provável que eles tenham fome a determinada hora e lhes damos comida a essa hora, eles sentem-se cuidados, vistos, acolhidos, seguros e compreendidos. Não há nada mais reconfortante do que sentirmos que alguém nos conhece e cuida de nós, preenchendo as nossas necessidades sem termos que lhes pedir.

Então esta é uma dança em que precisamos de manter o equilíbrio e saber quando é que não tem mal nenhum darmos uma bolacha a uma criança que a pediu fora de horas e quando é que precisamos  de ser nós a manter o controlo das refeições. E também saber que as crianças não são iguais e que aquilo que não fazia muito mal com um filho pode causar alguns estragos com outro. 

Outra questão em que vejo muitas vezes alguma confusão é no dormir. Temos as pessoas que dizem que as crianças precisam de dormir sozinhas desde cedo no seu quarto e em horas fixas e as que dizem que podem dormir com os pais e não precisam de horários porque eles sabem quando têm sono.

Sou apologista de que não devemos forçar as crianças a dormir sozinhas, acho importante que durmam com os pais, pelo menos no primeiro ano de vida e reconheço benefícios em continuarem a fazê-lo durante os primeiros anos, até se sentirem prontas para dormir sozinhas. Já falei muito disto no meu livro, Amar não Basta, e também aqui e aqui mas acredito que, se os nossos filhos precisam desse contacto para se sentirem seguros não ganhamos nada em tentar afastá-los à força antes de estarem preparados para isso. Isto não quer dizer que esperamos que eles nos digam que estão prontos para passar a dormir sozinhos mas sim, que enquanto pais, conhecemos os nossos filhos bem o suficiente para saber quando é altura de os incentivar a dar esse passo ou quando devemos ainda esperar mais um pouco até que estejam prontos para ele. 

E isto é muito diferente de dizer que não precisam de horários ou de serem forçados a ir para a cama mesmo que não o queiram. Primeiro acredito que precisam de horários, sim. E muitos problemas de adultos que sofrem de insónias podem ter começado justamente com a falta de horários na infância. Porque o corpo humano está programado para dormir a determinadas horas. Mesmo para quem tem trabalhos nocturnos, por exemplo, sabemos que dormir de dia não é o mesmo que dormir à  noite. E uma das razões pelas quais é tão desgastante trabalhar por turnos é justamente pela falta de um horário para dormir. O nosso corpo está programado para começar a segregar níveis mais baixos de cortisol ao final do dia e esses níveis começam a ser naturalmente mais altos pela manhã. Claro que poderá haver alguma variabilidade individual, não precisamos todos de estar na cama às nove em ponto, mas existem algumas limitações e mínimos que precisamos de cumprir. E o sono precisa de obedecer a alguns ritmos para funcionar o melhor possível. Os bebés ainda não têm um ritmo circadiano bem definido, e a sua produção de cortisol só começa a seguir estes ritmos por volta dos 9 meses de idade, por isso podem estar a dormir profundamente às três da tarde e completamente prontos para a brincadeira às quatro da manhã, para infelicidade dos pais, mas esta é mais uma razão, para mantermos a regularidade de horários, para os ajudarmos a criar esses ritmos de forma saudável.

Mas quando estes ritmos já existem, uma criança que se deite às onze da noite tem muitas probabilidades de dormir pior do que quando se deita às nove. Este dormir pior pode significar apenas um sono mais agitado e menos reparador ou um sono com mais despertares ao longo da noite. Por isso quando deixamos que crianças pequenas se deitem tarde, muitas vezes, elas acordam ainda mais cedo que o normal. Porque estas alterações provocam mudanças na sua produção de cortisol, uma hormona que também se altera em função dos nossos níveis de stress, o que por sua vez provoca mudanças no sono e pode impedi-las de descansar tudo o que precisam.

Se uma criança não vai dormir na hora em que deveria, quando aparecem os primeiros sinais de sono, o que acontece é que os seus níveis de cortisol vão começar a subir por isso ela terá mais dificuldade em adormecer e provavelmente resistirá à ideia de ir para a cama. Os níveis de cortisol mais elevados fazem com que eles pareçam mais excitados e energéticos porque estão a entrar em estado de alerta e isso também os impede de saberem aquilo de que precisam, porque com a agitação do cortisol a subir (e há crianças mais reactivas e outras menos a este estímulo) o organismo começa a entrar em estado de alerta e quando estamos assim dormir é muito mais difícil, porque o corpo nos diz que devemos estar acordados para nos proteger do perigos. E isto acontece a um nível inconsciente e de forma que eles simplesmente ainda não têm capacidade para perceber que, na realidade não há perigo nenhum, e só precisam de descansar. É aqui que acontece uma boa parte das lutas contra o sono. Mas, se cedermos e os deixamos simplesmente ficar acordados até que caiam para o lado de cansaço, só estamos a aumentar os níveis de stress no seu organismo que, provavelmente, os irão impedir de ter uma noite realmente boa de sono. Isto pode ter várias consequências, que muitas vezes são visíveis ao nível comportamental e terá com certeza efeitos na vida adulta. Isto com crianças mais reactivas torna-se ainda mais intenso. Por isso nesta dança somos mesmo nós que temos de assumir o controlo e não ter medo de tomar decisões. E, aqui, como em tantas outras coisas, a rotina e as regras ajudam. E ajuda também muito que eles confiem
em nós e que estejam habituados a ser orientados.

Então realmente estes dois lados que parecem opostos têm alguma verdade: as crianças precisam de ser orientadas e precisam de sentir que os pais estão no controlo e sabem o caminho a seguir. Mas também precisam de se sentir respeitadas e acolhidas. 

Para isso precisamos de não ter medo e de ser capazes de assumir o papel de quem está no controlo, da mesma maneira que também precisamos de saber respeitar a ligação fundamental que temos com os nossos filhos e de os acolher. Precisamos de olhar para os nossos filhos e vê-los como realmente são e saber de que precisam e também de sermos capazes de transmitir que os vemos, que os compreendemos e conhecemos e que sabemos cuidar deles. Quando temos medo de nos impor e de tomar decisões não estamos a fazê-lo por respeito aos nossos filhos mas estamos a agir em função da nossa criança ferida, aquela que não foi acolhida na infância como precisava de ter sido e que tem muito medo de ferir também os seus filhos. Então precisamos também de acolher essa criança e de lhe mostrar que é possível orientar, educar e respeitar e acolher ao mesmo tempo. Precisamos de a fazer acreditar que temos tudo aquilo de que os nossos filhos precisam para serem felizes e se sentirem seguros quando somos capazes de dançar a partir da música do amor e da confiança e não da música do medo e das feridas da nossa infância. 

Precisamos de encontrar uma forma de sarar essas feridas para que sejamos capazes de olhar para os nossos filhos a partir do adulto que somos hoje. E para que não tenhamos medo de assumir esse papel de adulto que guia e que se sente capaz de amar, respeitar e dar segurança ao mesmo tempo. Porque as duas coisas não só não são incompatíveis como precisam mesmo de andar juntas se queremos ter dar aos nossos filhos a possibilidade de crescerem felizes e tranquilos.