segunda-feira, 25 de junho de 2018

Crianças separadas dos pais e política de coração fechado

Nas notícias ultimamente o mundo tem assistido em choque ao que os E.U.A têm vindo a fazer com a sua política de imigração que separa pais e crianças, pequenas ou grandes.  Muitos psicólogos, pediatras e investigadores nas áreas do apego e do stress têm-se manifestado contra a gravidade desta política e aproveitado para tentar explicar a gravidade e o impacto que podem ter este tipo de situações, como se pode ler neste artigo, da conhecida Psychology Today, assinado por quarenta investigadores desta área.


É muito importante percebermos as consequências deste tipo de políticas porque se é chocante  para todos ver uma criança a chorar porque está num sítio estranho, ameaçador sem os seus pais é muito importante que percebamos que, infelizmente, as consequências de um trauma deste tipo não irão acabar quando a criança voltar a estar com os pais e podem mesmo prolongar-se por toda a sua vida.

Já há algum tempo que vários investigadores e teóricos do desenvolvimento defendem que, para uma criança, é mais importante a necessidade de se sentir ligada a um adulto que cuide de si do que a própria necessidade de alimento que, até aos anos 50 se acreditava ser a mais importante. Isto faz  todo o sentido se pensarmos que, para um bebé humano se alimentar ele precisa de ter uma ligação com um adulto que se preocupe e se importe consigo o suficiente para lhe dar esse alimento com a frequência necessária e também precisa de manter essa ligação para ter alguém que cuide das suas necessidades físicas mais básicas, como manter-se limpo, quente e num ambiente protegido.

Por isso todo o instinto dos bebés e crianças lhes diz que precisam de estabelecer essa ligação que acontece com as pessoas que cuidam de si durante a maior parte do tempo. E esse mesmo instinto também lhes diz que, sobretudo em situações de perigo, é a essas pessoas que precisa de recorrer e que são essas pessoas as responsáveis por manterem a sua integridade física e por lhe darem o sentimento de conforto e de protecção de que necessita. Se, por algum motivo, a criança ou o bebé sente essa ligação ameaçada ou se sente que alguma coisa do exterior o pode estar a colocar em perigo todo o seu organismo entra num estado de alerta que, se se prolongar por muito tempo, se torna naquilo a que chamamos o stress tóxico, que causa vários prejuízos à sua saúde e que prejudica e limita muito todo o seu desenvolvimento neurológico e cerebral.

É também este instinto de apego que diz às crianças que quando estão em sítios estranhos devem procurar a protecção dos seus pais, para se sentirem seguras. E é isso que qualquer criança saudável demonstra claramente no seu primeiro dia de escola ou em tantas outras situações estranhas: que quer ficar junto daqueles com que se sente segura e a quem está mais ligada.

O que é que acontece às crianças em situações tão traumáticas como esta?

Aquilo que pode ser observado nestes casos é que uma criança saudável e segura começa  por protestar com todas as suas forças, activando o seu instinto de apego, na tentativa de fazer com que os seus pais a oiçam e respondam aos seus protestos fazendo-a sentir-se novamente protegida. O choro é um mecanismo que tem como finalidade fazer com que os pais reajam e respondam à situação, preenchendo assim as necessidades da criança.

Mas, se não há uma resposta a esse choro, então ele não está a cumprir a sua finalidade. Por isso, com o tempo esses protestos vão diminuindo de intensidade e, se esta situação se prolongar, acabam mesmo por desaparecer. O que não quer dizer que desapareça o estado de alerta. De um ponto de vista fisiológico a criança pode continuar num estado de alerta e de activação mas o choro passa a ser um desperdício de energia, se não se obtém resposta, e o organismo, sobretudo em alturas de tensão, precisa de conservar ao máximo essa energia para garantir a sua sobrevivência.

E isto é o que muitas vezes faz com que os adultos pensem que a criança está a aprender a lidar com a situação: o facto do choro, a manifestação mais visível de sofrimento, começar a desaparecer ao final de algum tempo. E, na realidade, a criança até parece tornar-se mais autónoma, independente e pode até dar um falso ar de segurança que pode enganar um olhar menos atento. Isto porque a criança tenta a todo o custo adaptar-se à situação para conseguir sobreviver. Mas esta adaptação tem um custo: ela precisa de se desligar dos seus sinais de alarme. Porque enquanto estes estiverem ligados, com toda a sua intensidade, ela não vai ser capaz de fazer mais nada e isso pode por em perigo a sua sobrevivência. Acontece que a única forma eficaz de desligar esse alarme seria a presença dos pais, que podem trazer de volta o sentimento de segurança. Mas, sem essa presença, já que não há forma de desligar eficazmente esse alarme então, tudo o que resta, é tentar ignorar os seus sinais. Mas para isso a criança também tem de desligar a parte de si que se sente ameaçada e que sabe que precisa de manter essa ligação com os pais. Porque se continuar a estar sempre consciente dessa falta, desse instinto de apego que não está a ser satisfeito mantém-se a frustração que se torna demasiado intensa para lhe permitir lidar com o que quer que seja para além disso. Então, a única forma de uma criança lidar com uma separação demasiado prolongada é desligar a sua consciência dessa parte de si que sabe que precisa de manter a ligação com os pais ou com as suas figuras de apego.

Por isso o que acontece nestes casos, quando a ausência destas figuras foi demasiado dura ou demasiado longa para a criança, é que - quando ela volta a reunir-se com as suas figuras de apego - já há um distanciamento ou um desinteresse da sua parte nesta reunião. Quando a ausência foi difícil mas não tanto que ela precisa de se desligar desses sentimentos o que pode acontecer é que a criança, ao ver o pai ou a mãe, desata num choro intenso como se fosse uma espécie de descarga. Isto acontece muitas vezes quando os pais vão buscar os filhos à creche e é apenas sinal de que aquela ausência foi dura para a criança e de que ela não tinha um ambiente seguro onde pudesse aprender a lidar com essa tensão, mas ainda é relativamente fácil reparar essa situação, porque a criança ainda não se desligou do que está a sentir e ainda o demonstra procurando o colo dos pais para chorar.

Mas, quando a dor dessa ausência foi tão grande que ela precisou de desligar essa parte de si que estava a sofrer com essa ausência, isto quer dizer que não será fácil para a criança reactivar essa parte de si, voltar a abrir o seu coração e voltar a confiar nos pais. Vi um vídeo de um menino da Guatemala, que deveria ter uns quatro ou cinco anos e esteve separado da mãe durante algumas semanas nos E.U.A, por causa desta política. Quando finalmente se reencontraram a mãe chorou e abraçou-o repetindo várias vezes que o amava e que não iriam voltar a separar-se. O menino pareceu deixar sair algumas lágrimas (apenas porque se vê a mãe a limpar-lhe o rosto) mas não abraçou a mãe, não chorou intensamente como ela e não disse nada enquanto era abraçado. Um pouco mais tarde vê-se na filmagem a criança a ser levada pela mão de outra pessoa, com um ar triste mas, ao mesmo tempo, quase apático, enquanto a mãe seguia atrás dele, ainda com um ar emocionado e os olhos cheios de lágrimas. Os jornalistas que filmaram esta cena, comentavam o comportamento da criança dizendo que estava tão bem comportado e tão calmo.

Este pequeno vídeo demonstra bem como a criança foi afectada por esta separação: ela foi tão dura que ele já nem conseguia abrir o seu coração para chorar por tudo o que tinha passado. Já não conseguia sentir-se suficientemente seguro para chorar, nem sequer com a própria mãe. Já não conseguia sequer lembrar-se de que esse seu instinto de apego existia e por isso já quase lhe era indiferente estar com a mãe ou com um estranho. Se assim não fosse ele não se deixaria levar calmamente pela mão por outra pessoa enquanto a mãe caminhava atrás de si, por exemplo. É possível que com o tempo, se mãe for capaz de acolher a ferida enorme daquela criança, ela consiga reparar um pouco a situação. Mas não há dúvidas de que aquele menino foi seriamente abalado na sua capacidade de confiar nos outros, no mundo e em si próprio. E a verdade é que, se não tivermos consciência do enorme impacto que este tipo de separação pode ter numa criança, pode ser muito difícil também para os pais lidar com todas as alterações de comportamento que irão com certeza surgir. O que, por sua vez, só irá servir para acentuar ainda mais todos os efeitos do trauma.

Estudos com macacos bebés, de que já falei aqui, mostram como a ausência da mãe, mesmo quando tudo o resto se mantém, cria uma fragilidade que pode fazer com que as crias passem a ter maior dificuldade em lidar com os desafios e com o stress ao longo da vida.

Investigações feitas na Finlândia também demonstraram isto: durante a segunda guerra mundial houve varias crianças que foram separadas dos pais. Investigações posteriores mostraram que as crianças que foram levadas para longe da família, sofreram mais danos na sua saúde mental, do que aquelas que ficaram e tiveram de enfrentar todos os horrores e dificuldades da guerra. A grande diferença nestes casos é que as que ficaram, até podem ter passado mais dificuldades materiais e ter sido expostas a situações mais violentas mas tinham o mais importante para conseguir lidar com isso: a relação com os pais. É essa relação o amortecedor mais importante em todas as situações de stress e é dela que precisamos de cuidar antes de tudo o resto. 

A triste ironia desta situação é que o próprio Trump foi com certeza vítima de uma infância em que as suas necessidades de acolhimento, protecção e segurança não foram tidas em conta. Não conheço a história dele mas conheço o suficiente sobre o desenvolvimento humano para perceber que o coração dele também se fechou algures no tempo, não sei se por causa de um trauma muito intenso ou por causa de várias situações traumáticas que se terão repetido com frequência na sua vida. Na verdade é isto o mais comum nestes casos: pode não haver nenhuma situação muito marcante na vida das crianças mas vão existindo várias situações diárias em que a criança se sente negligenciada, não reconhecida, em que vê a sua ligação com as suas figuras de referência ameaçada. Esta ameaça pode ser real, como  no caso destas crianças separadas, ou pode ser apenas uma sensação que a criança tem de que os pais não são capazes de a aceitar como é, ou que não são capazes de a proteger, de a manter segura. E são estas situações que vão deixando marcas tão fundas ao ponto de ser possível observar as diferenças no desenvolvimento cerebral, nos estados de activação fisiológica - sobretudo em situações de desafio - mas, mais importante, na forma de lidar com os outros e  na capacidade de estabelecer boas relações.

É claro que para os pais também é traumático ficar sem os filhos. A grande diferença é que, primeiro, os pais não precisam dos filhos para se sentirem protegidos e, segundo, o seu organismo já não está em desenvolvimento. As crianças ainda estão em formação, por isso, tudo o que acontece, sobretudo nos primeiros anos de vida, tem um impacto muito maior do que nos adultos e determina a forma como o seu organismo se desenvolve e a sua personalidade se molda.

Uma criança que cresceu sem ter oportunidade de confiar nos outros é também uma criança que cresce sem perceber que é essa a nossa maior riqueza: a relação que temos e construímos com as outras pessoas. Por isso é muito fácil que essa criança se torne num adulto narcisista e materialista em que as pessoas são vistas apenas como meios para atingir um fim. Porque algures na sua história essa criança foi forçada a fechar o seu coração aos sentimentos e a desvalorizar todo o tipo de relacionamentos.

Por isso é mesmo tristemente irónico que este tipo de políticas, acabem por dar origem a pessoas como Donald Trump, ou a pessoas que o apoiam, numa espécie de ciclo vicioso que pode continuar para sempre se não tivermos consciência dos seus efeitos. Porque a única forma de construirmos um mundo justo é percebermos que precisamos de respeitar as crianças de hoje. Porque uma criança que é obrigada a fechar o seu coração será um adulto com muita dificuldade de o abrir. E um adulto que não abre o coração é um adulto que não sente empatia e sem ela fica muito difícil deixar-se tocar pelo sofrimento dos outros, principalmente quando este colide com os seus próprios interesses egoístas. 

quinta-feira, 7 de junho de 2018

Bullies, emoções e stress

Na escola do meu filho, esta semana, falámos de bullying. Este é um fenómeno cada vez mais presente nas escolas e na vida dos nossos filhos, infelizmente, por isso é importante compreendê-lo. Uma das coisas em que acredito cada vez mais é que o mais importante não é tanto ficarmos focados em como é que as crianças devem lidar com isto mas em como é que nós, adultos, podemos fazer com que isto deixe de acontecer. Somos nós, adultos que precisamos de compreender e de encontrar estratégias para lidar com estas coisas quando elas acontecem e não propriamente as crianças. Na verdade, acredito que, se nós, enquanto adultos, soubermos cumprir o nosso papel e tivermos a consciência e a segurança necessária para o fazer, estas situações não acontecerão com tanta facilidade e passo a explicar porquê. 

A educação emocional e o stress tóxico

A questão da educação emocional surge muitas vezes quando se fala neste tema, como se fosse uma forma de o resolvermos.
Hoje fala-se cada vez mais em inteligência emocional e há uma certa tendência para acharmos que, assim como as outras inteligências são treinadas na escola, também esta poderia ser se houvesse abertura por parte dos professores e outros responsáveis para construir programas mais vocacionados para as emoções. Na verdade, a Psicologia Positiva veio demonstrar que a inteligência emocional é bem mais importante para o sucesso do que aquele tipo de inteligência mais racional ou intelectual que é medida pelo Q.I.

E uma boa parte da inteligência emocional passa por sermos capazes de identificar o que sentimos, na altura em que o sentimos e por sermos capazes de dar nomes aos nossos sentimentos. Há estudos que demonstram que o simples facto de aprendemos a nomear o que sentimos nos ajuda a lidar melhor com as emoções e a ser mais capazes de enfrentar os desafios e de lidar com as emoções mais intensas e difíceis.

Então, seguindo esta lógica, é natural que pensemos que será útil ensinar as crianças a reconhecer e a nomear aquilo que sentem. Só que há um problema nesta lógica: para entrarmos em contacto, de verdade, com as nossas emoções precisamos - todos, adultos e crianças - de nos sentir em segurança. Se uma criança se sente insegura ou ameaçada de algum modo, ela entra num modo defensivo que bloqueia o acesso às suas emoções e sentimentos. 

Quando nos sentimos inseguros ou ameaçados entra em funcionamento o nosso sistema nervoso simpático que liga a resposta de luta ou fuga que, por sua vez, desliga a nossa capacidade de entrar em contacto com os sentimentos ou emoções mais profundas porque esta é uma resposta de emergência que nos coloca num estado de alerta em que ficamos muito mais focados em encontrar soluções imediatas para as potenciais ameaças que possam surgir. E, neste estado de alerta não é possível entrar em contacto com emoções mais intensas ou profundas porque elas podem funcionar como uma espécie de bloqueio: quando sentimos muita tristeza, frustração ou medo ficamos sem vontade de lidar com mais nada e com muito menos capacidade de lidar com os desafios. Por isso a natureza certificou-se de que o nosso sistema de resposta ao stress desliga a capacidade de sentir estas emoções, porque, em situações de emergência, não podemos dar-nos ao luxo de ficar paralisados pela tristeza ou frustração já que precisamos de reagir e de responder às ameaças que possam surgir. 

Acontece que as crianças, por natureza, são seres dependentes. As crianças nascem com um instinto de apego, que lhes diz que precisam de manter uma boa ligação com, pelo menos um adulto capaz de as acolher e respeitar, para poderem sentir-se seguras.  Então sempre que uma criança sente que essa ligação não existe ou que ela está em perigo isto dá origem a sentimentos muito intensos de angústia, de frustração e de medo que são difíceis de enfrentar. Se estes sentimentos surgem repetidamente, como acontece quando a criança se sente frequentemente rejeitada, magoada ou negligenciada pelas pessoas que cuidam dela, então ela passa a estar constantemente exposta ao que podemos chamar stress tóxico que, por sua vez, a faz ficar de forma quase constante num estado de alerta. Este estado de alerta faz com que ela se desligue desses sentimentos de tristeza ou medo mas também faz com que ela se desligue do seu instinto de apego, porque este está a ser uma fonte constante de sofrimento. Assim, a criança passa a viver num modo defensivo permanente que pode ser observado em vários comportamentos associados à ansiedade. Embora, nos casos mais graves, essa ansiedade já nem se veja porque já foi também ela desligada porque era tão grande que a criança precisou de activar o estado seguinte que está associado a uma resposta de congelamento que, algumas vezes, pode ser confundido até com uma falsa independência ou autonomia. (Explico de forma mais aprofundada estas questões no meu livro, Mindfulness para Pais, sobretudo no capítulo
dedicado à teoria Polivaga).

Infelizmente vivemos numa sociedade em que as crianças são expostas a uma separação das suas figuras de apego muito maior do que aquela com que estão preparadas para lidar, porque passam muitas horas na escola e porque, muitas vezes, os métodos de disciplinar e de educar também acabam por estimular esse sentimento de separação, como já expliquei neste artigo e também neste.

Isto quer dizer que, nas escolas, o mais frequente é que as crianças, sobretudo as mais novas, estejam nesse estado de alarme e de defesa que já não lhes permite entrar em contacto com o que estão a sentir, porque passam o dia longe dos pais e, na maior parte dos casos, não há um outro adulto que possa ser uma figura de apego ou que possa estabelecer com elas uma relação segura.

Então, na verdade, as escolas, tal como funcionam nos nossos dias, não são o melhor sítio para falar de educação emocional porque não adianta falar de emoções a uma criança que não se sente segura o suficiente para as vivenciar. É importante falar sobre emoções com as crianças, sim, mas só faz sentido fazê-lo no contexto de uma relação segura, em que a criança não tenha receio de abrir o coração e de olhar de verdade para dentro de si e para o que possa sentir. E isto, infelizmente, é difícil de acontecer na maioria das nossas escolas, por várias razões mas também porque o número de alunos é quase sempre demasiado elevado para que os adultos possam ter verdadeira disponibilidade para construir essas relações com eles.

O desenvolvimento do cérebro e as emoções

Outra coisa que é essencial para uma verdadeira educação emocional é que a criança se torne capaz de reflectir sobre aquilo que sente. Na verdade é isto que nos distingue dos animais: eles também têm emoções mas não são capazes (tanto quanto sabemos) de pensar sobre elas. As crianças também têm, desde que nascem a capacidade de sentir as suas emoções mas, só com o tempo é que vão aprendendo a reflectir sobre elas.

Mas, para que isto seja possível, é preciso que se desenvolva uma parte específica do nosso cérebro: o cortex-pré-frontal, que é característico dos seres humanos e que é também a última parte do cérebro a desenvolver-se. Esta zona do cérebro só começa o seu desenvolvimento a partir dos seis anos de idade e acredita-se que continua até cerca dos vinte e quatro ou vinte cinco anos de idade. Na verdade, há muitos adultos que ainda não desenvolveram bem essa zona. Porque para que esta  se desenvolva da melhor forma a criança não pode ser demasiado exposta aos tais níveis de stress tóxico que já se sabe que prejudicam o desenvolvimento de algumas áreas do cérebro, nomeadamente desta. Na verdade, a natureza é sábia e o desenvolvimento desta zona não é crucial para a nossa sobrevivência. Por isso, quando a criança é exposta a demasiado stress é como se o seu organismo precisasse de conservar toda a sua energia para enfrentar as ameaças e não sobrasse a energia necessária para o desenvolvimento de tudo o que não seja essencial à vida.

A única forma desta zona desenvolver todo o seu potencial é através desse sentimento de segurança que se gera quando a criança se sente segura e acolhida pelas suas figuras de apego. É só através desse relacionamento que ela poderá realmente aprender a lidar com as emoções e a pensar sobre elas e é isso que irá permitir um bom desenvolvimento desta zona que, por sua vez, também irá facilitar esta tarefa.

Sabe-se até, como  já expliquei aqui e aqui que um fraco desenvolvimento desta zona pode estar na origem de uma condição cada vez mais comum: o défice de atenção.

Se queremos ajudar a criança a pensar sobre as suas emoções sem nos preocuparmos com as condições físicas para que ela o possa fazer - que dependem da segurança das suas ligações com as figuras de apego - é o mesmo que começar a fazer uma casa pelo telhado: não há nenhuma base para sustentar o que queremos transmitir-lhes. 

A personalidade do Bully 

Gordon Neufeld de quem falo muito aqui porque a teoria que ele construiu é realmente o modelo de desenvolvimento mais completo que conheço, fala também do bullying e do tipo de crianças que o faz. Ele explica que o que está na base deste tipo de comportamento é aquilo a que ele chama o instinto alfa. Este instinto alfa existe em todos nós, mas pode ser um pouco mais forte em algumas pessoas do que noutras. Este instinto está ligado a uma noção de hierarquia que nos faz estar atentos às fragilidades dos outros e adoptar uma postura de dominância quando as identificamos. Neufeld fala numa hierarquia natural, numa dança que acontece naturalmente: no nosso dia-a-dia de adultos, vamos alternando entre uma posição de dependência e de dominância, consoante as situações. Isto quando tudo está bem, quando existem problemas pode acontecer que se gere uma rigidez em que, por vezes, acabamos por ficar presos num ou noutro papel. Este é o caso dos bullies que vivem nesta rigidez e acabam por ficar presos na posição de dominância.

Numa relação de educação, entre pais e filhos ou alunos e professores é muito importante que os pais permaneçam na posição alfa, e os filhos fiquem na posição de dependência, pelo menos durante a maior parte do tempo, porque só assim é que será possível orientá-los e só assim é que eles podem descansar de verdade. Porque estar sempre na posição alfa é muito cansativo, então, se queremos que as crianças descansem e relaxem de verdade é essencial que elas sejam capazes de assumir o seu papel de dependentes connosco e que estejamos preparados para assumir o nosso papel de guias. Hoje em dia há muito quem diga que devemos encarar as crianças como nossos iguais, mas isto não é verdade. As crianças precisam de se sentir cuidadas e protegidas e não podem senti-lo se nos colocarmos ao mesmo nível que elas. 

Elas precisam de sentir que nós, enquanto pais, somos capazes de assumir o controlo e só assim é que elas podem descansar de verdade. Neufeld tem uma expressão muito bonita que diz que precisamos de fazer com que as crianças descansem no nosso amor. E uma criança só descansa quando se sente protegida. Se não se sentir segura e protegida ela está sempre em modo de alerta, com toda a activação do sistema simpático que impede um verdadeiro descanso e que está relacionada com tantos problemas de ansiedade que vemos nas crianças de hoje em dia.


Então, quando uma criança não se sente protegida, uma das defesas que ela tem é justamente activar esse instinto alfa e é aqui que surgem aquelas crianças que geralmente chamamos mandonas ou pequenos tiranos. Aqui a criança está a tentar assumir o controlo, porque sente que ninguém está a ser capaz de cuidar de si como deveria. Acontece que, quando este instinto alfa está activo mas existe um desenvolvimento saudável, ele surge associado à vontade de cuidar dos mais fracos. Este instinto traz consigo uma maior facilidade em identificar as fragilidades e as necessidades dos outros, justamente para que sejamos mais capazes de as preencher. É isto que deve acontecer entre irmãos, por exemplo, quando existe essa tal hierarquia natural e é também uma das razões pelas quais é mais fácil e mais tranquilo muitas vezes para as crianças relacionarem-se com crianças de outras idades do que com crianças da mesma idade: porque quando este instinto se activa naturalmente, um passa a dominante e o outro a dependente e tudo funciona com harmonia e quando isto não acontece há mais tensão e competitividade. É graças a este instinto que as crianças mais velhas têm naturalmente vontade de cuidar e proteger as mais novas e também é este instinto que nos faz a nós, adultos, querer cuidar das crianças e de todos os que identificamos como mais frágeis do que nós. Acontece que estar sempre na posição de cuidador é muito cansativo por isso é importante que também saibamos deixar-nos cuidar e isso só se aprende se, na infância, isto tiver sido fácil para nós. Se na nossa infância era muito difícil confiarmos nos nossos pais ou nos adultos que cuidavam de nós então podemos ficar sempre com  dificuldade de adoptar esse papel de dependência, que está associado a uma grande dificuldade de relaxar de verdade e pode estar na origem de vários problemas de ansiedade.

Mas, o que acontece no caso dos bullies é que, apesar de terem este instinto alfa muito activo, eles já estão desligados dos seus sentimentos e por isso não conseguem juntar a este instinto essa motivação para cuidar e proteger os outros quando identificam as suas fragilidades. Por isso eles ficam atentos aos seus pontos fracos mas não para cuidar ou proteger e sim para dominar e explorar essas fraquezas a seu favor. Por isto Neufeld explica que a pior coisa que podemos fazer com um Bully é dizer-lhe que nos magoou, porque isso só lhe chama ainda mais a atenção para as nossas fragilidades e só o faz sentir-se ainda mais no controlo, dando-lhe cada vez mais vontade de nos manipular. 

É verdade que os bullies também precisam de ser ajudados mas para os ajudar a prioridade é mesmo criar uma ponte com alguém, com um adulto que se importe de verdade com a criança e que seja capaz de lhe transmitir isso mesmo e que lhe dê um espaço em que ela possa aprender a voltar a confiar. E isto não é fácil nem rápido mas é a única forma de fazer com que voltem a entrar em contacto com os seus sentimentos e também com que lhes seja possível sair deste estado de dominância.

Para as vítimas o mais importante é exactamente o mesmo: é garantir que existe alguém com quem se sentem seguras, em quem podem confiar e que as possa ajudar a lidar com que sentem. A protecção mais importante é mesmo esta: garantir que existe pelo menos um adulto que se importa e com quem a criança se sente segura. E para que essa segurança exista é fundamental também que não tenhamos medo de acolher os sentimentos deles: de frustração, de tristeza, de medo e todos os que possam surgir. É muito importante que eles saibam que esses são sentimentos normais, que também fazem parte da vida e é fundamental que cresçam com essa segurança de que é possível viver esses sentimentos sem lutar com eles e que é possível passar por toda a tristeza, por todo o medo e toda a frustração e ainda ser feliz e ter uma vida boa. Porque só assim é que poderão crescer sem ter medo de si próprios ou daquilo que sentem.

Então volto ao que escrevi no início deste texto: a melhor protecção para o bullying, aquilo que é mais importante, é que os adultos saibam exactamente o seu lugar na vida das crianças e que não tenham medo de o assumir. Porque se os adultos souberem o seu lugar e como este é importante, estas situações não acontecem ou, pelo menos, tornam-se muito mais fáceis de resolver.

Aquilo que as nossas crianças precisam é, em primeiro lugar, é de pais com mais tempo, mais disponibilidade e mais segurança no seu papel de pais. E depois, nas escolas, precisamos também de adultos que saibam assumir um papel de liderança e que saibam como são importantes. Numa escola primária, por exemplo, o mais frequente é que os professores não estejam nos recreios e que as auxiliares estejam por lá apenas a vigiar. E é nos recreios que estas coisas acontecem. E os recreios são um lugar de enorme sofrimento para muitas crianças. Mas muitas vezes achamos que o melhor é deixá-los entregues a si mesmos e acreditamos que estamos a fomentar autonomia quando os deixamos resolver sozinhos os seus conflitos e problemas. Mas isto não é verdade. A verdadeira autonomia vem de não termos medo do que sentimos e de não termos medo de lidar com as emoções e isto só acontece se nos sentirmos seguros e para essa segurança existir as crianças precisam de adultos presentes, atentos e disponíveis. E, para isso, os adultos no recreio não podem servir só para resolver problemas e muito menos para castigar, precisam de encontrar uma maneira de fazer com que as crianças os encarem como referências e isso só é possível se forem capazes de gostar verdadeiramente delas e de mostrar que estão presentes e que querem fazer parte das suas vidas.

Se os adultos estiverem presentes e disponíveis de verdade não são precisos castigos, porque as crianças se importam com os que eles dizem e os encaram como modelos. Se não houver esta ligação os castigos não servem de nada e até pioram toda a situação. 

Quando uma criança se dirige a um adulto, numa escola, para falar de algo que sente ou que lhe fizeram não podemos desvalorizar isso dizendo que não se fazem queixinhas. Temos de estar presentes ser capazes de ouvir e de intervir se necessário. Porque só assim garantimos o nosso lugar no coração delas e só assim elas se sentirão seguras o suficiente para serem capazes de nos tomar como modelos e de entrarem em contacto com os seus próprios sentimentos, o suficiente, para não magoar os outros e para não se magoarem a si próprias. Não podemos menosprezar o nosso papel nas suas vidas e não podemos esquecer-nos que a verdadeira autonomia se constrói com base na dependência que também tem o seu papel no desenvolvimento e precisa de ser reconhecida. E se queremos de verdade ajudar os nossos filhos e alunos não podemos esquecer-nos de manter sempre aberto o caminho do nosso coração para o deles.

Quando os nossos filhos são a vítima 

Quando os nossos filhos são vítimas de bullying, quando sabemos que foram magoados e sofreram com isso é muito fácil ficarmos revoltados aflitos mas também nós temos de aprender a lidar com isto e saber que, desde que eles encontrem sempre o seu caminho para o nosso coração, não existe nenhuma emoção com que não possam aprender a lidar, desde que nós também estejamos dispostos a lidar com as nossas. Mais do que ficarmos preocupados em ensiná-los a defender-se ou pensarmos no que eles devem dizer, fazer e nas estratégias que podem usar para lidar com quem lhes faz isto o mais importante é pensarmos que enquanto eles tiverem em nós uma base de segurança, o mundo será sempre muito menos assustador. E para que essa base exista é preciso termos tempo para os escutar e é fundamental que sejamos capazes de ser empáticos com o que sentem.

Enquanto formos capazes de manter uma ponte entre o nosso coração e o deles será sempre muito mais fácil que eles encontrem a sua coragem para lidar com este tipo de situações e que se mantenham sempre fieis a si mesmos e às suas emoções, sem medo de as sentir. E isto é tudo o que podemos fazer pelos nossos filhos na verdade: não podemos poupá-los ao sofrimento nem às angústias de ter que lidar com os outros mas podemos dar-lhes uma base sólida e segura onde podem sempre voltar e descansar. Descansar de verdade, no nosso amor, no nosso coração e nos nossos braços. E é nesse descanso que eles irão encontrar a sua capacidade de lidar com os desafios e de enfrentar o medo, a tristeza e a frustração que tantas vezes fazem parte da vida. Aprender a não ter medo do que sentimos é provavelmente o aspecto mais importante de qualquer educação emocional. E só podemos aprender a não ter medo dos nossos sentimentos mais intensos se houver alguém que já tenha feito esse mesmo percurso, que já tenha lidado com esses mesmos sentimentos e que nos ajude a passar por eles, de mãos dadas sempre que for necessário, percebendo que nada de mal acontece no final.