quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Adultos e crianças numa dança hierárquica

Sempre que falo em hierarquia entre pais e filhos há quem fique incomodado. Mas a hierarquia é algo natural nas relações e essencial entre pais e filhos. A hierarquia acontece naturalmente quando estamos na posição de cuidadores, só podemos cuidar daqueles que estão numa posição de dependentes. E, pela ordem natural das coisas, as crianças dependem dos adultos. Ficar na posição de cuidadores não significa que temos o direito de maltratar, despeitar ou abusar das crianças. Antes pelo contrário até, se estamos na posição de cuidadores sabemos que só podemos cuidar se soubermos respeitar as necessidades das crianças de quem cuidamos.

Mesmo nas relações de casal esta dança entre quem cuida e quem é cuidado tem de existir, a diferença é que, numa relação entre iguais, como é um casal, esta tem de ser mesmo uma dança equilibrada: se for sempre o mesmo a cuidar ou a receber esse cuidado a relação não funciona. Mas numa dança não podem guiar os dois parceiros ao mesmo tempo, um tem de se deixar guiar enquanto o outro guia senão torna-se impossível dançar.

Mas a grande diferença entre uma relação de casal e uma relação entre pais e filhos é que, numa relação de casal, os dois membros (idealmente) já terão amadurecido. Numa relação entre pais e filhos, existe um dos membros que ainda não amadureceu e por isso mesmo ainda não tem capacidade para cuidar do outro e precisa de ser cuidado para que possa desenvolver-se e amadurecer. Não apenas crescer, porque aumentar de idade não significa necessariamente que o amadurecimento aconteceu, este amadurecimento só acontece se encontrar as condições ideais para acontecer. Por isso existem tantas pessoas muito avançadas nos anos mas muito pouco desenvolvidas emocionalmente. Assim como não podemos forçar uma planta a crescer também não podemos forçar uma criança a amadurecer, temos apenas de criar as condições necessárias para que isso se torne possível. E uma dela é que entre pais e filhos, não pode haver alternância. Temos mesmo de ficar na posição de cuidadores o tempo todo. E, se precisamos que alguém cuide de nós de vez em quando, como é natural que aconteça, esse alguém não podem mesmo ser os nossos filhos.

Acontece que, todos temos em nós uma criança que ainda existe e que cresceu, muitas vezes, num ambiente que não era o ideal em que nem sempre foi cuidada da maneira que precisava e quando precisava. Então, quando isto aconteceu com demasiada frequência o que se passa é que passamos a ter dentro de nós uma criança ferida e, se ainda não tratámos dessas feridas elas continuam a existir e a tomar conta de nós sobretudo nos momentos mais difíceis, porque esta criança ficou refém destas necessidades que nunca chegaram a ser preenchidas em alguma altura do seu desenvolvimento e não foi capaz de amadurecer por completo. Claro que podemos fazer com que esse amadurecimento aconteça mais tarde, na vida adulta, através de relações que sirvam para, de certa forma, corrigir aquilo que nos faltou. Mas, se não encontrámos ainda uma forma de fazer essa correcção e de permitir que essa criança cresça aquilo que vejo acontecer muitas vezes é que passamos a educar os nossos filhos a partir dessa criança ferida que existe dentro de nós e não a partir do adulto que até pode funcionar bem a maior parte do tempo mas que acaba por ficar em segundo plano nos momentos mais emotivos, que era justamente quando mais precisávamos que estivesse no controlo.  

Isto vê-se quando temos muita dificuldade em lidar com determinadas situações apenas porque queremos fazer diferente daquilo que os nossos pais fizeram connosco. Por exemplo, sabemos que faz mal à criança comer doces todos os dias mas acabamos por ter medo de lhe dizer que não porque tivemos pais muito autoritários que nunca nos deixavam fazer o que gostávamos.

Sempre que dizemos que não queremos fazer isto ou aquilo com os nossos filhos apenas porque os nossos pais o faziam connosco e era muito doloroso isto significa que, muito provavelmente, esta é uma ferida que ainda não fechou. E quando as nossas feridas não fecham elas podem tornar-se tão presentes que acabam por nos impedir de ver as coisas sem passar pelo seu filtro. Isto quer dizer que acabamos por educar a partir dessas feridas e não a partir das necessidades reais dos nossos filhos.

Na verdade, claro que não há nada de errado com o facto de não querermos repetir um erro que os nossos pais fizeram connosco. E claro que é saudável que queiramos corrigir esses erros que nos fizeram sofrer. Acontece que, quando a nossa única motivação para não fazer algo com os nossos filhos é apenas o facto daquilo nos ter feito sofrer na infância isso pode ser sinal de que não estamos a educar a partir do nosso adulto mas a partir dessa criança ferida.

Quando essa criança ferida nunca foi tratada ou cuidada, quando essas feridas ainda não sararam é difícil ficarmos realmente no papel de cuidadores dos nossos filhos porque existe uma parte demasiado grande de nós que ainda precisa de ser cuidada e que ainda pede muita atenção. E se não estivermos conscientes disto - e é tão mais difícil ter esta consciência quanto maiores forem as feridas -  é muito fácil que as nossas necessidades se misturem com as deles e que não nos sintamos capazes de ficar nesse papel de cuidador e que não nos sintamos confortáveis com esta ideia de que precisa de existir uma superioridade hierárquica entre nós e os nossos filhos. Porque na verdade não é fácil ficar no papel do adulto quando essa criança ferida ainda precisa tanto de ver as suas necessidades preenchidas. E só podemos ficar no papel de cuidadores se estivermos no lugar do adulto.

Uma necessidade só desaparece depois de ser preenchida. Se nunca nos sentimos seguros no papel de dependentes isso quer dizer que não tivemos oportunidade de crescer e amadurecer completamente, quer dizer que ainda existe uma parte de nós que precisa muito de ser cuidada como se fosse criança. E por vezes temos pais que esperam, inconscientemente, que os filhos cuidem dessas suas necessidades porque a sua criança nunca as viu satisfeitas.

Nestes casos então precisamos de ter noção que essa criança ferida em nós precisa sim de ser cuidada, precisa de ser trazida para a luz, de ser vista, aceite e acolhida mas nunca pelos nossos filhos. Os filhos em nós só podem ver o adulto e nunca a criança, muito menos ferida, para se sentirem seguros. Podemos e devemos falar de sentimentos e emoções com os nossos filhos mas sempre a partir do adulto, não daquelas que nos fazem sentir frágeis e a precisar de cuidado. Os nossos filhos precisam de sentir que podem confiar em nós, que podem ser protegidos e seguros por nós e isso dificilmente acontecerá se mostramos demasiado a nossa criança ferida e se eles nos virem como demasiado vulneráveis. Isto acontece quando, por exemplo, dizemos várias vezes aos nossos filhos que o comportamento deles nos magoa. Muitas vezes pensamos que é melhor dizer a um filho que ficámos tristes porque ele nos bateu ou porque nos chamou chatos do que simplesmente ralhar ou reprimir esse comportamento. Nestes casos ralhar ou castigar não são adequados porque a criança está simplesmente a expressar algo que não sabe e não tem ainda capacidade de expressar de outro modo. Mas, a verdade, é que dizer que ficámos tristes ou magoados também não é muito positivo. Porque nos coloca numa posição de fragilidade e vulnerabilidade e faz com que a criança se sinta obrigada a cuidar dos nossos sentimentos. Então, nestes casos, podemos sim dizer que não gostamos que ela bata ou chame nomes, precisamos de acolher o sentimento que está por trás desse comportamento, mostrar que aceitamos a zanga ou a frustração que a levou a fazer isso mas que não gostamos que se porte assim e dar-lhe algumas alternativas mais aceitáveis, isto sobretudo nas crianças mais pequenas. Mas é diferente dizer simplesmente que não gostamos ou mostrar que nos sentimos vulneráveis ou fragilizados por aquele comportamento. E essa diferença pode ser enorme na forma como a criança vai processar a situação. Porque de facto uma criança não tem de se preocupar com os sentimentos dos pais. Isto pode parecer estranho, claro que queremos que eles nos queiram agradar e que a nossa opinião importe mas isso é muito diferente de lhes dar noção de que têm tanto poder sobre nós que conseguem deixar-nos tristes e frágeis. Porque as crianças precisam de acreditar que os pais são uma espécie de super-heróis capazes de aceitar e acolher todas as suas emoções sem se irem abaixo por causa delas. 

Isto é ainda mais importante no caso das crianças mais sensíveis ou reactivas, que têm ainda mais tendência para se colocarem muito rapidamente nesse papel de cuidadores em que nunca queremos que estejam connosco.
Porque isso lhes traz toda a ansiedade de estarem num papel que não é o seu e onde nunca poderão ser bem sucedidos. E toda a ansiedade de precisarem de se colocar num papel em que o seu instinto lhes diz que nunca deveriam estar.

Então,  quando temos dificuldade em lidar com esta noção de hierarquia, pode significar que temos dificuldade em nos colocar no papel de adultos com os nossos filhos. Talvez porque tenhamos medo de os ferir ou magoar. Mas nada magoa mais do que sentirem que ninguém está no leme da relação, que ninguém conduz essa dança em que também é suposto eles dançarem.

E estar no leme da relação significa que precisamos de antecipar as necessidades dos nossos filhos antes mesmo deles terem noção delas. Isto é válido sobretudo para coisas como o sono ou a comida, que têm um peso grande no dia-a-dia e um impacto na relação e nas emoções. Não podemos esperar que filhos pequenos nos digam que estão cansados quando precisam de ir dormir, não devemos dar-lhes o controlo das refeições todas e esperar que sejam eles a tomar a iniciativa sempre que têm fome. Porque isso os coloca no papel de cuidadores e não de dependentes onde é suposto estarem.

Também não ajuda muito quando lhes perguntamos constantemente porque choram, ou o que é que têm e quando mostramos que não percebemos nada do que se passa com eles, sobretudo com os mais pequenos. Porque quando estamos no papel de cuidadores é suposto que tenhamos algum conhecimento sobre quem estamos a cuidar. É suposto também que os pais saibam mais que os filhos sobre as emoções e sobre o que se passa com eles. Temos de ser nós a ajudá-los a dar nome ao que sentem, porque para eles é tudo novo e não o vão descobrir sem a nossa ajuda.

Temos de encontrar o nosso adulto cuidador e, quando estamos no papel de adulto cuidador, somos nós que temos as respostas, não as procuramos nos outros, muito menos naqueles de quem estamos a cuidar. E é importante que passemos para os nossos filhos essa imagem de que sabemos exactamente para onde vamos, mesmo que nem sempre tenhamos certezas disto.

No papel de adulto cuidador também somos capazes de sentir que temos tudo aquilo de que aquela pessoa precisa. Temos tudo o que os nossos filhos precisam para crescer felizes e seguros. Mas se ficamos no papel de criança ferida, é muito mais fácil sentir que não somos suficientes, que não somos capazes, que precisamos de ajuda. E, se transmitimos isso aos nossos filhos eles vão sentir-se inseguros naturalmente e isso também fará com que tenham muito menos vontade de nos obedecer porque como é que podemos seguir alguém que parece não saber o caminho?

E esta questão da obediência que tantas vezes é quase um vilão e algo que não devemos querer também é importante nesta dança entre cuidadores e dependentes. Porque uma criança obedece naturalmente a alguém a quem confia e a quem se sente ligada. Por isso a obediência também é uma medida da qualidade da nossa ligação com os filhos, sim. Claro que haverá crianças com mais tendência para desobedecer e fases da vida delas em que isso também estará mais presente e claro que é saudável que as crianças nos provoquem, desafiem e desobedeçam em certa medida. Mas, a verdade é que a obediência também tem a sua importância. Sim, é preciso que os nossos filhos pensem por eles, sim queremos adultos capazes de questionar e tomar posições mas, também queremos adultos que confiem e que se importem. E obedecer aos pais também é sinal de que se importam com o que os pais pensam. E se se importam significa que a ligação ainda existe.

Só deixamos de nos preocupar com o que os outros pensam quando já não estamos ligados a eles. 

A questão do locus de controlo externo, que acontece nas pessoas que precisam de uma aprovação constante dos outros e vivem em função desse reconhecimento não surge porque elogiámos demais os nossos filhos ou porque os fizemos obedecer em excesso. Isto é uma visão demasiado simplista. Essa busca permanente de reconhecimento acontece quando não tivemos o suficiente na nossa infância, quando não fomos protegidos, quando não nos sentimos seguros, acolhidos e aceites. Aí precisámos justamente de sair desse papel de dependentes e passar mais para o de cuidadores.

Todos os filhos querem agradar aos pais e isso é bom e natural. Sempre foi assim e é bom que continue a ser. Porque essa é também a receita para vivermos em sociedade e para construirmos relações seguras. Claro que é essencial que eles sintam que não precisam de agradar para que continuemos a gostar deles. Mas sabermos que alguém nos ama incondicionalmente ainda nos dá mais vontade de agradar a essa pessoa, ao mesmo tempo que, naturalmente não nos impede de ser quem somos. Mas isto é justamente o que transmitimos muito mais facilmente quando estamos no papel de adultos.

Porque é gostaríamos de estar casados com alguém que não gostasse de nos agradar? que se estivesse nas tintas para o que nos faz felizes?

E, na verdade, as relações de casal não são assim tão diferentes das de pais e filhos. Hoje a ouvir um podcast em que se falava de relacionamentos surgiu a pergunta: porque é precisamos sempre de ter esse sentimento de posse em relação ao outro?

E a resposta é que esse sentimento de posse surge justamente quando a nossa criança ferida sente que precisa da outra pessoa mas não sabe se pode confiar realmente nela. Entre dois adultos que sabem cuidar e ser cuidados esse sentimento de posso dá apenas lugar ao sentimento de que existe algo especial entre os dois que precisa de ser cuidado, protegido. E esse algo especial é uma relação de apego que é a forma natural de nos deixarmos cuidar e ser cuidados. Esse apego de que precisamos na infância para sobreviver e para nos desenvolvermos continua a ser essencial na idade adulta para podermos sentir-nos felizes e desenvolver relações seguras.

Então é importante perguntarmos-nos sempre se estamos a educar a partir do nosso adulto ou a partir da criança ferida. Porque os nossos filhos precisam mesmo do adulto, uma criança não é uma base segura para outra criança. E só nesse papel de adulto é que podemos preencher todas as necessidades para que as crianças que eles são hoje possam realmente crescer e amadurecer e não apenas envelhecer.