quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Direitos das crianças, conformismo e emoções

Nos últimos meses cada vez mais pessoas têm falado sobre as medidas rígidas a que estamos a sujeitar as crianças e sobre o impacto que estas poderão ter no seu desenvolvimento. Eu própria assinei com vários colegas um artigo no público sobre este tema (que pode ser lido aqui), participei em algumas entrevistas e reportagens (que podem ser lidas aqui) e colaborei com o grupo Assim não é escola em que foi criada uma petição que já recolheu mais de 7000 assinaturas e que está à espera de ser discutida na assembleia da república. Pode ser assinada aqui
                            
O artigo do público serviu também para uma carta aberta à Ordem dos Psicólogos que foi assinada por quase 200 colegas em três dias. A Ordem dos psicólogos também escreveu uma carta aberta à DGS recomendando que essas medidas fossem revistas. 
Recentemente saiu também um artigo no público em que os vários pediatras também defendem que as crianças não podem continuar a ser sujeitas a estas medidas. (pode ser lido aqui) Hoje mesmo participei numa conferência da CPCJ de Odivelas em que os especialistas presentes também alertaram para o impacto negativo destas medidas e que pode ser visto aqui

Também falei com alguns deputados, professores, diretores de escola e muitos pais, sendo que, mesmo que nem todos concordem com a forma como devemos lidar com esta pandemia é muito claro que todos reconhecem que as regras rígidas que existem nas escolas neste momento, com tudo o que sabe hoje sobre a forma como esta doença afeta as crianças - não são nem necessárias nem desejáveis e podem  vir a ter consequências muito nefastas. 

Então é importante que façamos uma reflexão sobre porque é que isto continua a acontecer. E quando penso nisso não posso deixar de me lembrar de uma experiência muito importante feita nos anos 60 e 70 por Stanley Migram. 

Este investigador pediu a várias pessoas de diferentes idades e estratos sociais que participassem numa experiência que lhes dizia ter como objectivo estudar a forma como as pessoas aprendiam. Esses participantes ficavam numa sala de onde podiam ver uma outra pessoa, através de um vidro, a quem eram feitas perguntas. Cada vez que essa pessoa errava uma pergunta os analisadores diziam aos voluntários para carregarem num botão que lhes permitia dar um choque eléctrico a essa pessoa. Os voluntários não sabiam que a outra pessoa também fazia parte do estudo e que apenas fingia que estava a receber um choque. Era dito aos voluntários que deviam aumentar a intensidade dos choques com cada erro que a pessoa fazia e, a certa altura, a pessoa do outro lado do vidro começa mesmo a gritar e contorcer-se com dores. Mesmo assim, cerca de 65% das pessoas, quando a ordem era dada pelo examinador, era capaz de dar choques eléctricos de 450 volts, uma descarga que seria suficiente para causar a morte da outra pessoa

Este estudo teve muito impacto pela conclusão chocante de que a maioria das pessoas não se inibia de causar dor, sofrimento e até potencialmente a morte de outro ser humano, desde que a responsabilidade não fosse sua. Porque, no final do estudo, quando se falava com essas pessoas, o que elas respondiam era que estavam apenas a cumprir ordens e que o faziam porque lhes tinham pedido, queriam desempenhar bem a sua função, achavam que seria importante para o estudo ou porque confiavam na pessoa que lhes estava a dar a ordem. 

Isto foi usado, inclusivamente, para ajudar a explicar a forma como os nazis levaram a cabo o holocausto com a ajuda, colaboração e passividade de tantas pessoas que estavam também apenas a cumprir ordens. 

Então quando sujeitamos as nossas crianças e jovens a regras que podem ter um efeito muito negativo para o seu desenvolvimento também nos sentimos capazes de o fazer porque estamos apenas a cumprir ordens? 


Desconhecimento sobre as necessidades das crianças 


Acredito que uma boa parte disto também se relaciona com o facto de não reconhecermos as necessidades reais das crianças. Antes de tudo isto, na verdade, elas já não eram muito valorizadas. Por vezes penso que vivemos numa sociedade um pouco esquizofrénica no sentido em que, por um lado, se valoriza excessivamente uma autonomia forçada mesmo em etapas do desenvolvimento em ela não faz sentido - forçamos as crianças a dormir sozinhas, a irem para a escola, a deixar de mamar ou deixar a chucha mesmo que elas ainda não estejam preparadas para isso - mas depois não as deixamos ser autónomas naquilo em que mais precisam de o ser: na liberdade de brincar, de se movimentarem no espaço, de correrem riscos adequados à sua idade, de usufruírem livremente dos espaços públicos sem necessidade da presença constante dos adultos, de terem oportunidade de conhecer o seu corpo, os seus limites e os dos outros. Isto é feito, sobretudo, através da brincadeira livre, algo que é fundamental e que, infelizmente, antes mesmo da pandemia já parecia estar em risco de extinção. 

A verdadeira autonomia só acontece se existir um espaço de liberdade para as crianças. Essa liberdade, claro, só faz sentido quando existe uma base segura a que as crianças sabem que podem voltar. Os primeiros anos de vida precisam de ser dedicados à construção dessa base segura mas, essa base segura, só é realmente segura se também der liberdade de forma adequada à criança. 

Todas as crias, na natureza, passam os seus primeiros anos de vida a brincar. Através da brincadeira elas aprendem a desenvolver habilidades, aptidões, aprendem a conhecer o seu corpo, os seus limites, aprendem a saber de que é que são capazes e aprendem a lidar com os outros, a relacionar-se. A brincadeira também é fundamental para o desenvolvimento da motivação, da capacidade de aprendizagem. As crianças quando brincam livremente exercitam a sua curiosidade natural e é esta que deve estar na base de todos os processos de aprendizagem.

Também aprendem a descobrir o corpo e descobrir o corpo é o caminho para descobrir as emoções. Descobrir as emoções é aprender a lidar com elas e com o mundo. Muitos adultos têm medo das suas próprias emoções porque têm medo das sensações que elas provocam no corpo. Então, descobrir o corpo através da brincadeira, também ajuda a criança a familiarizar-se com o que sente e por isso torna mais fácil o seu contacto com as emoções. Até porque, na brincadeira, as emoções podem ser sentidas de uma forma segura, de uma forma menos ameaçadora, durante a brincadeira as crianças podem experimentar o medo, a raiva, a frustração, a tristeza e todas as emoções mais difíceis de uma forma um pouco mais leve, menos intensa e por isso mais segura. Essa aprendizagem é importante e fundamental para o seu bom desenvolvimento. Fala-se muito em educação emocional mas educar para as emoções não passa necessariamente por construir programas em que se fala sobre elas nas escolas. Passa por criar espaço e tempo para que as crianças as possam sentir num contexto de segurança. Primeiro é fundamental que as crianças se sintam seguras nas suas ligações e depois que lhes seja dada essa liberdade de explorar através da brincadeira. E nenhum programa de educação emocional fará sentido se existirem estas duas lacunas. Porque não é a falar de emoções que se aprende a lidar com elas mas é vivendo-as, sobretudo na infância. 

Provavelmente faltou aos adultos que se limitam a cumprir ordens sem as questionar um espaço para entrarem realmente em contacto com as suas emoções, para aprenderem a ser capazes de as reconhecer, acolher e valorizar. A brincadeira livre é o primeiro lugar onde isso pode acontecer mas depois é essencial que também haja uma relação segura com um adulto disponível onde elas poderão ser faladas, abordadas e mais facilmente estruturadas. 

A brincadeira livre também ajuda a calibrar o sistema de alarme. Brincar às lutas ou correr riscos faz com que o sistema de alarme seja activado. E o sistema de alarme precisa de ser activado, desta forma moderada que só é possível em condições de segurança, para que possa funcionar mais eficazmente. Na verdade o nosso sistema de alarme é relativamente frágil e fica facilmente desregulado se for usado excessivamente em situações demasiado intensas ou demasiado constantes, naquilo a que se chama o stress tóxico ou crónico mas também fica desregulado mais facilmente se nunca for exercitado. E a brincadeira é o momento ideal para este ser exercitado e, de certo modo, como que tonificado.

A brincadeira é também a forma por excelência das crianças libertarem a tensão acumulada, como já disse aqui várias vezes. Brincar é uma forma de libertar vapor, de deixar fluir as emoções para que elas não comecem a ficar acumuladas e não se tornem tóxicas. Na verdade os adultos precisam desse espaço de brincadeira também, embora a forma de brincar possa ser diferente. A brincadeira ajuda a manter-nos no presente e isso também tem um importante efeito tranquilizador e anti-depressivo. 

Então as crianças precisam mais do que nunca de ter tempo e espaço para brincar e temos a responsabilidade de lhes providenciar isso. E de cada vez que impedimos uma criança de brincar livremente, mesmo que possamos pensar que isto é apenas temporário, aquilo que estamos a fazer é a possibilitar que se instale um padrão em que deixamos de reconhecer essa necessidade e em que a própria criança também já não as reconhece. Porque, apesar da brincadeira ser algo natural e instintivo, a verdade é que também depende do hábito e precisa de certas condições para acontecer (com um sentimento de segurança e ausência de ecrãs durante uma boa parte do dia, por exemplo) Quando essas condições não existem ou quando privamos a criança de brincar é relativamente fácil que esse hábito se perca como infelizmente já se perdeu em demasiados casos. E quando o hábito se perde, fica perdida também uma boa parte daquilo que permite amadurecer realmente. Por isso cada dia que privamos uma criança de brincar livremente, ao ar livre de preferência, é um dia em que contribuímos para que se perca esse hábito tão fundamental para o seu desenvolvimento e um dia em que não estamos a contribuir para o seu amadurecimento. E sabemos que a infância e adolescência são períodos sensíveis para o desenvolvimento de muitas capacidades: uma janela de oportunidade para desenvolver competências que, quando não acontecem nesta altura, será muito mais difícil que venham a acontecer. 

A necessidade de brincar livremente, ao ar livre, durante uma boa parte do seu dia sempre foi bastante negligenciada e desvalorizada. Daí até se encurtarem os intervalos, ou se criarem regras limitadoras da brincadeira livre ou a fecharem os parques infantis talvez não vá uma distância tão grande. 


As experiências do conformismo de Asch 


Outras experiências famosas que se relacionam com a anterior e que também são muito relevantes para o momento social que estamos a viver são as experiências do conformismo de Asch que foram feitas já nos anos 50. Nestas experiências havia um grupo de pessoas numa sala e era pedido a essas pessoas que avaliassem o tamanho de algumas linhas apresentadas num ecrã. Nesse grupo havia apenas um voluntário que pensava que todos os outros também eram e a certa altura todos os outros começavam a dar uma resposta claramente errada. A grande maioria das pessoas, durante um bocadinho ainda tentava dar a resposta certa mas, ao fim de algum tempo cedia à pressão do grupo e acabava também por dar a resposta errada, ainda que este erro fosse óbvio. E esta pressão era tão forte que, em muitos casos, as pessoas chegavam mesmo a convencer-se que a resposta do grupo era realmente certa, porque não eram capazes de aceitar que tivessem escolhido uma resposta errada apenas por causa dessa pressão grupal. 
Só quando aparecia um aliado a dar também a resposta certa é que uma boa parte das pessoas já passava a ter capacidade de manter a sua resposta também. 

Esta experiência mostra bem como a pertença ao grupo e a aceitação são tão importantes para nós que podem até mudar as nossas crenças e a nossa perceção das coisas. 
E acredito que é também algo deste género que está a acontecer quando queremos convencer-nos que o que estamos a fazer está certo, ou que não poderia ser de outra forma, mesmo quando temos tantos especialistas a dizer que é errado. Então aqui também é importante que sejamos capazes de nos conectar com as nossas necessidades, de saber que está certo, é natural e até desejável que queiramos ser aceites e pertencer ao grupo mas o preço a pagar por isso não pode ser o de deixarmos de ouvir a nossa verdade. E, se nos ligarmos à nossa verdade, neste caso, não precisamos de muitos estudos nem investigações para sabermos que o que estamos a fazer às nossas crianças e jovens é profundamente errado. É errado privar uma criança da sua liberdade ou condicionar com regras rígidas o seu desenvolvimento, é errado fazer uma criança sentir que pode pôr em perigo os pais ou avós. Conheço o caso de uma criança que esteve fechada no quarto durante quatro semanas - duas em isolamento profilático no final do qual foi pedido que fizesse um teste que veio positivo e por isso ficou mais duas semanas em casa - e esteve uma boa parte dessas duas semanas fechada no seu quarto, com as refeições entregues num tabuleiro: os pais batiam à porta, pousavam o tabuleiro no chão e ela tinha que esperar que se afastassem para ir buscar a comida que depois voltava a deixar no chão, à porta do quarto sendo que o tabuleiro era imediatamente desinfetado antes de ser recolhido. 

Não precisamos de estudos nem de investigações para sentir que isto é profundamente errado. Basta que sejamos capazes de ouvir a nossa verdade, basta que sejamos capazes de reconhecer as necessidades das crianças, para sabermos que estamos a causar-lhes sofrimento, basta que sejamos capazes de ter alguma empatia para perceber que não temos o direito de fazer com que as nossas crianças e jovens se sintam como portadores ambulantes de um vírus mortífero para a sua família, basta que sejamos capazes de entrar um pouco em contacto com as nossas emoções para perceber que tudo isto está a ter resultados muito mais desastrosos do que o vírus de que tanto nos queremos proteger. 


O cérebro esquerdo e o cérebro direito

Ian McGilchrist é um psiquiatra que escreveu um livro que também acredito que ajuda a compreender uma boa parte do que se tem passado. Neste livro ele defende a tese de que vivemos numa sociedade em que se valorizam demasiado as capacidades do hemisfério esquerdo: a racionalidade, a linguagem, a objetividade e a análise dos detalhes, por exemplo. Isto acontece em detrimento das capacidades do nosso hemisfério direito, mais relacionado com a consciência corporal, com as emoções e com um visão mais global ou holística das questões. Neste momento somos confrontados com uma situação angustiante de um vírus que provoca sofrimento e o nosso hemisfério esquerdo imediatamente tomou conta da situação e tentou resolver tudo criando regras e mais regras e analisando tudo ao pormenor mas esquecendo-se da visão global das coisas e do impacto que estas regras têm na nossas emoções. 

Não podemos resolver a morte com regras, não podemos travar um vírus desta natureza com regras. Muito menos quando essas regras nos pedem para deixar de parte todo o nosso instinto, as nossas emoções, para negar a nossa natureza gregária e a necessidade que temos de estar juntos, de nos tocar e aproximar, de nos sentirmos seguros na companhia uns dos outros. 

Então, talvez seja altura de reconhecermos que não podemos resolver este problema através da lógica e da racionalidade porque estas só nos têm trazido novos problemas. Talvez seja altura de começarmos a dar mais espaço ao nosso hemisfério direito, de entrarmos mais em contacto com as emoções e de sermos capazes de olhar mais para o global. Porque se não o fizermos corremos o risco de continuar a olhar apenas para os detalhes e a ignorar toda a destruição global que estamos a causar à nossa volta. 
É altura de pararmos de pensar só em nós próprios, sim, mas também é altura de sermos capazes de assumir a fragilidade que existe no facto de sermos humanos e de precisarmos uns dos outros. E de aceitarmos que o nosso cérebro esquerdo não tem nenhuma solução válida para este problema. Só com o equilíbrio dos dois hemisférios é que poderemos encontrar forma de lidar com isto sem continuar a causar ainda mais destruição.

Ontem na conferência o Professor Carlos Neto, cujo trabalho admiro, afirmou que os nossos políticos não brincaram o suficiente e por isso são tão totós. Se calhar muitos de nós não brincaram o suficiente, por isso não tiveram oportunidade de desenvolver muito o seu hemisfério direito. Então, se queremos realmente um mundo melhor vamos dar espaço às nossas crianças para brincar, vamos dar-lhes tempo e espaço para entrarem em contacto com o corpo e com as emoções e talvez assim não voltemos a encontrar-nos neste buraco global em que estamos agora metidos. 



sexta-feira, 17 de julho de 2020

Direitos das crianças em tempos de pandemia


As crianças têm sido a camada da população mais sacrificada com esta pandemia. Não por causa do vírus que já se sabe que é maioritariamente irrelevante neste grupo etário mas por causa das medidas sanitárias que têm sido tomadas, sem grande consideração pelo seu bem-estar.
Mesmo depois de já todos termos voltado ao trabalho há algum tempo, as crianças do primeiro ciclo continuaram sem escola presencial que terá, no total, uma interrupção de mais de seis meses e os parques infantis continuam fechados.
Sabemos que passar tempo ao ar livre é fundamental para a saúde física e mental de crianças e adultos e também sabemos que, nas cidades hoje em dia é mais difícil para os pais passarem algum tempo na rua com as crianças se não tiverem um parque infantil para elas brincarem e conviverem com outras crianças, algo que também é fundamental para o seu bom desenvolvimento. 

É na brincadeira livre que as crianças crescem, aprendem e se desenvolvem e esta brincadeira é ainda mais fundamental em tempos de stress porque é também uma das poucas formas naturais e adequadas que as crianças têm de se libertar do stress e tensão que este período inevitavelmente traz. Se brincar é sempre importante para o desenvolvimento das crianças, neste momento podemos dizer que é mesmo urgente e fundamental para que esta situação não lhes cause muitos danos. 
Uma investigação sobre o impacto da covid-19 em espanha concluiu precisamente que as crianças que não puderam sair diariamente de casa foram as mais afectadas pela pandemia, ao nível da saúde mental. 
Por isso, mesmo sabendo que as crianças podem e devem brincar mesmo fora dos parques infantis (que, infelizmente em portugal até são bastante pobres e um pouco desajustados das suas necessidades reais) consideramos que o facto dos parques continuarem fechados transmite aos pais, crianças e à população em geral a ideia de que ainda é perigoso brincar fora de casa, mesmo quando já sabemos que ao ar livre a probabilidade de haver contágio é sempre mais reduzida. 

As crianças foram sacrificadas também com a escola on-line tendo passado largas horas em frente ao ecrã quando todos os especialistas são unânimes a afirmar que isto é não é nada bom para o seu desenvolvimento, com prejuízos diversos ao nível da saúde mental e física: como obesidade, défice de atenção, hiperactividade e dificuldade de controlo dos impulsos entre os mais comuns. Sendo que estes estão também associados a uma série de problemas de comportamento e de relacionamento com os pares e com os adultos. 
E mesmo quando já existem tantos estudos que demonstram que ler em papel ou em formato digital tem efeitos muito diferentes: assimilamos pior o conteúdo quando lemos em formato digital, além de que a leitura digital nos traz uma visão muito mais superficial porque se torna muito mais difícil manter o foco, uma vez que a nossa atenção compete constantemente com outros estímulos. Também sabemos que esta incapacidade de manter o foco - que os ecrãs provocam e alimentam - está associada a sentimentos de agitação, ansiedade e depressão, para além de dificultar muito a aprendizagem.

Depois de tudo isto, em Setembro, as crianças poderão finalmente voltar à escola mas com novas regras impostas o que irá trazer outras dificuldades e consequências que já se fazem sentir para algumas e em que precisamos também de pensar.
Não podemos adoptar medidas sem pensar bem em todas as consequências e no custo que estas terão. Se algumas medidas terão um custo insignificante, existem muitas que podem ter um custo demasiado elevado para os benefícios que acarretam. Porque uma criança não é adulto em miniatura e tem necessidades muito específicas e bem diferentes que precisam de ser levadas em conta. 

Uma dessas medidas que já se faz sentir na vida de muitas crianças em creches e jardins-de-infância é a proibição da entrada dos pais.
Permitir a entrada dos pais na escola, quando vão deixar ou buscar os filhos não é um mero capricho. Como já expliquei aqui. Uma criança que entra num lugar novo fica sempre num certo estado de alerta, principalmente quando essa entrada implica a separação das suas figuras de apego, as suas referências. A única forma de desactivar esse estado de alerta é justamente através do contacto com as figuras de apego que geralmente são os pai. E enquanto ele não for desactivado, a criança simplesmente não está disponível para estabelecer novas relações seguras que, por sua vez, são essenciais para que o seu dia na escola seja vivido da melhor forma e até para que consiga aprender realmente. Isto é muito importante em todo o processo de adaptação dos mais novos, que pode durar dias, semanas ou até meses e que acontece sempre outra vez depois de um período de afastamento. Mas também dos mais velhos depois de tudo o que aconteceu este ano, com um período de afastamento tão prolongado e carregado de tensão por vários motivos. Permitir a entrada dos pais na escola é fundamental para que esta não se torne um mundo completamente estranho e separado da família em que a criança nunca se sentirá realmente segura.

É muito importante que os pais possam ver diariamente os professores e educadores e que sejam eles a entregar-lhes a criança porque é isso que lhes permite fazer a ponte. O instinto da criança diz-lhes que não devem ficar com estranhos, que devem procurar sempre as pessoas com quem se sentem seguras. Então para que os professores deixem de ser estranhos para elas é preciso que os pais façam essa ponte que lhes mostrar que podem construir uma ligação com aquela pessoa e isso faz-se de forma simples, falando com a pessoa, mostrando que ela é de confiança e que já temos uma relação com ela.

As máscaras usadas pelos adultos, sobretudo nos mais novos, também não facilitam este processo. Porque as expressões faciais são uma parte fundamental da comunicação não verbal e daquilo que nos faz ou não sentir segurança na presença da outra pessoa. Stephen Porges usa o termo neurocepção para falar de um mecanismo inconsciente que nos faz avaliar constantemente a segurança do ambiente externo e interno e essa avaliação passa em grande parte pela comunicação não verbal. Essa comunicação não é apenas facial, também passa pelos olhos, ao tom de voz e à prosódia do discurso, coisas que a máscara ainda nos permite perceber mas que podem ser insuficientes para uma criança pequena e que até dificultam um pouco a comunicação mesmo nas mais velhas e nos adultos. Sem ver totalmente a cara da pessoa com quem nos relacionamos é bem mais difícil recolher essas pistas de segurança e quando nem sequer conhecemos essa pessoa, como irá acontecer na adaptação à escola de muitas crianças, então isto fica mesmo impossível. Por isso mesmo nos países que recomendam o uso de máscara, em muitos já está a ser recomendado aos professores e educadores que retirem as máscaras sempre que puderem ficar a um metro e meio de distância das crianças, até porque a máscara também dificulta muitas vezes a compreensão daquilo que os professores dizem. 
As crianças mais pequenas ainda não têm um grande desenvolvimento do seu hemisfério esquerdo que começa apenas aos dois anos de idade, o que quer dizer que estão ainda mais dependentes da comunicação não verbal, que é interpretada pelo hemisfério direito, para se relacionarem e  sentirem seguras. Mas, mesmo nos mais velhos, começa hoje cada vez mais a saber-se que o hemisfério direito tem um papel fundamental no sentimento de bem-estar, equilíbrio e segurança que está, em grande parte associado à capacidade de estarmos em contacto com as mensagens do nosso próprio corpo. Quando nos focamos apenas na comunicação oral, algo que é forçado pelo uso continuo de máscaras, estamos a estimular o uso do hemisfério esquerdo em detrimento do direito, algo que sabemos estar bastante mais associado a sentimentos de agitação, ansiedade e até de depressão.
Sabendo que nas crianças, sobretudo as mais pequenas, o hemisfério direito ainda tem um papel dominante, então, deixá-las o dia inteiro, aos cuidados de um educador com máscara é dificultar muito o seu sentimento de segurança. 

As nossas creches e jardins de infância já têm demasiadas crianças para o número de adultos presente e isto já dificulta a ligação e esse sentimento de segurança que a criança precisa de ter com os adultos que cuidam de si. Quando juntamos a isto a grande dificuldade de ler o rosto que as máscaras provocam estamos a criar uma dificuldade enorme da criança se ligar ao adulto e, consequentemente, de se sentir segura com ele e na escola. Se a criança não se sente ligada a um adulto que cuida dela, irá passar todo o seu dia num estado de alerta que, poderá ter consequências muito graves para o seu desenvolvimento, para o seu comportamento e até para as capacidades cognitivas e de aprendizagem, bem como para a sua saúde.

Uma investigação bastante extensa que em que participaram cerca de 17000 sujeitos, sobre experiências adversas na infância mostra bem como o stress tóxico que estas provocam está ligado a uma série de complicações de saúde na vida adulta: como a obesidade, diabetes tipo II, desordens de ansiedade e depressão e até problemas cardiovasculares, a principal causa de morte na sociedade ocidental.

Se pensarmos que, apesar de terem tido mais tempo com os pais, este tempo de confinamento e ausência de escola pode ter sido vivido com muitas dificuldades em muitas casas em que os pais ficaram sem emprego ou viram o seu modo de vida afectado, em casais em que as dificuldades de relacionamento aumentaram pela convivência forçada, em situações em que os pais tinham de trabalhar com crianças pequenas em casa sem terem como prestar-lhes atenção ou tratar delas em condições. Tudo isto a juntar a uma crise económica e social sem precedentes diz-nos que, mais do que nunca teremos crianças provavelmente muito ansiosas na escola, crianças com várias dificuldades e problemas emocionais para gerir. O que quer dizer que, para estas crianças, será ainda mais importante que a escola se torne um lugar seguro. Para isso não podem existir regras demasiado rígidas que se sobreponham ao seu bem-estar.

A diminuição dos intervalos e as medidas de distanciamento entre crianças também são nefastas e sem sentido. Quando sabemos que ao ar livre a probabilidade de transmissão é muito menor e que a socialização com os pares é um aspecto importantíssimo da escola, não faz qualquer sentido dificultar o convívio e a proximidade entre as crianças. 

A desinfecção constante também transmite uma mensagem continua de perigo e cria mais tensão do que os benefícios que pode trazer que, na verdade, nem são muitos porque já se sabe que os desinfectantes à base de álcool matam também as bactérias boas que são essenciais para a nossa saúde e equilíbrio. E a sociedade de pediatria francesa, que aliás se tem mostrado também bastante preocupada com estas medidas, já emitiu um comunicado às escolas a afirmar que a lavagem mais frequente das mãos com água e sabão é suficiente como medida de segurança nas escolas. 

Não podemos deixar que as medidas sanitárias se sobreponham à necessidade de preservar a saúde mental das nossas crianças e jovens. Porque se o fizermos teremos com certeza em mãos uma outra pandemia no campo da saúde mental com resultados bem dramáticos e duradouros. 

A maior protecção que podemos dar a uma criança, como mostram todos os estudos sobre vinculação, é dar-lhe a possibilidade de construir uma relação segura com os adultos, isto é realmente o mais importante e a melhor prevenção que poderá existir para a sua saúde mental. Mas essa relação pode ficar ameaçada se os adultos na vida dessa criança insistem em tratá-la como um ameaçador agente infeccioso. Como um pequeno transportador de vírus que pode ser responsável pela morte dos avós ou de outras pessoas queridas e que por isso tem de ser travado e doutrinado para se manter longe dos colegas, para se desinfectar bem, para usar máscara a partir dos 10 anos, etc. Porque ao fazê-lo deixamos de ser nós os adultos como figuras de protecção, quando passamos a responsabilidade de se manter segura - e mais ainda de manter os outros seguros - para os ombros de uma criança estamos a dar-lhe um peso que ela não tem como carregar. E esse peso terá um custo, um custo que virá mais tarde sob a forma de dificuldades e até de patologias várias, como demonstrou tão bem o tal estudo das ACEs (adverse childhood experiences). E na verdade, Portugal, neste momento está entre os países do mundo que têm adoptado medidas mais rígidas com as crianças. 
Então temos que deixar que as crianças sejam crianças, não temos o direito de as pressionar com o nosso medo e de as impedir de serem apenas crianças. Não temos o direito de as impedir de brincar, de as prender em casa, de fechar parques infantis e escolas mas também não temos o direito de as mandar para a escola com uma série de regras absurdas e rígidas que só lhes colocam tensão e mais peso nos ombros e com uma série de adultos de rosto tapado cujas expressões nem sequer conseguem desvendar facilmente.
Se sentimos que precisamos de tomar medidas para travar esta pandemia e se precisamos de viver com elas durante bastante tempo para proteger alguns grupos de risco também precisamos de sentir que temos de proteger as crianças e que essa responsabilidade deve ser assumida única e exclusivamente pelos adultos, deixando que as crianças continuem a ser  apenas crianças se queremos realmente dar-lhes oportunidade de se desenvolverem saudáveis. Porque um ou dois anos na vida de uma criança não valem o mesmo que na vida de um adulto e podem bem mais facilmente deixar marcas permanentes que teremos muita dificuldade em apagar mais tarde. 


quinta-feira, 21 de maio de 2020

Saúde e relacionamentos

Aquilo que nos torna pessoas são as nossas relações. Aquilo que nos define enquanto espécie é a grande necessidade que temos de estabelecer ligações desde o primeiro momento de vida e a forma como precisamos delas para nos desenvolvermos. 

Estudos feitos com crianças que viveram em situações trágicas como os conhecidos orfanatos da Roménia mostraram bem como, sem a possibilidade de estabelecer ligações as crianças ficavam com problemas de desenvolvimento em todos os níveis: cognitivos, motores e emocionais e até uma estatura abaixo da média. E havia um grande número delas que, mesmo com alimento suficiente e boas condições materiais e de higiene nem sequer chegava a sobreviver. Faillure to thrive foi o nome dado pelos investigadores a esse fenómeno muito observado nessas instituições em que o organismo das crianças simplesmente não conseguia sobreviver ao stress de não ter alguém com quem pudesse construir uma ligação. No caso daquelas a quem era permitido contactar com outras crianças verificou-se que algumas chegaram a criar uma língua própria que só elas entendiam, preenchendo essa necessidade desesperada que tinham de se ligar alguém mesmo que fosse apenas outra criança. 

A conhecida experiência da cara parada ou Still face experiment no seu nome original e todas as investigações tão importantes do seu autor, Ed. Tronick, também demonstram muito bem como é fundamental responder aos bebés e crianças para o seu bom desenvolvimento e como eles o esperam e dependem disso desde os seus primeiros dias. 


Estudos com macaquinhos sacrificados nos anos 50 também mostraram bem a importância do toque e a forma como ele é prioritário até em relação ao próprio alimento. 


Uma investigação da Sue Jonhson, terapeuta de casal, também mostra como o simples facto de termos uma pessoa que amamos a segurar-nos a mão durante um procedimento doloroso diminui bastante o stress e até a própria sensação de dor. 

Ainda há dias comecei a ler um livro de um médico que na sua introdução diz que a solidão é uma causa de morte tão grande como a obesidade e os diabetes. E sabe-se que o sentimento de solidão aumenta em cerca de cinquenta por cento a probabilidade de se sofrer um ataque cardíaco, dando um significado mais literal à expressão de coração partido. Sabe-se também que depois de um episódio de enfarte um dos aspectos mais determinantes para a sobrevivência é a qualidade dos relacionamentos da pessoa. 

Também já foi demonstrado que o sentimento de rejeição activa no cérebro exactamente as mesmas zonas que a dor física, mostrando como este sentimento tem também um papel importante na nossa sobrevivência. Porque evoluímos enquanto espécie com base nessa mesma dependência. Foi o facto de sermos capazes de colaborar que nos permitiu dividir o cuidado com as crias, construir abrigos melhores, armazenar alimentos e tudo o resto que teve um papel fundamental para a nossa sobrevivência. 

Descrevo isto tudo apenas para que nos lembremos daquilo que nos torna pessoas e nos faz crescer e viver bem e com saúde: os relacionamentos. 

Então não podemos esquecer-nos disto nos momentos de crise como o que estamos a viver. É verdade que podemos manter boas relações com algum distanciamento das pessoas que não estão no nosso círculo mais íntimo, também é verdade que podemos usar os ecrãs de vez em quando para as alimentar e também é verdade que, enquanto adultos ou crianças mais crescidas conseguimos criar boas ligações mesmo com uma parte do rosto tapada pelas máscaras porque já conseguimos relacionar-nos mais com base nas palavras e outro tipo de gestos. 

Mas precisamos de nos lembrar que não podemos alimentar ligações apenas e sempre com ecrãs pelo meio, muito menos nas crianças. O ensino à distância não faz sentido para uma criança e faz muito pouco para um jovem. As crianças aprendem quando conseguem sentir-se ligadas aos adultos que ensinam e é muito mais difícil fazer isso através de um ecrã, além de que nem sequer é positivo para o seu desenvolvimento cerebral o uso excessivo de ecrãs, como já expliquei aqui

Mas, mesmo para os adultos a presença física de alguém é insubstituível. Quando estamos com alguém ao pé de nós, a conversar de forma mais íntima e presente, há uma sincronização dos ritmos e um mundo de micro-expressões faciais, que são muito mais difíceis de interpretar num ecrã e que dão ás duas pessoas um sentimento de segurança que , por sua vez, activa o seu circuito social, responsável pelo estado de equilíbrio e sensação de bem-estar e saúde. 

E quando falamos de crianças também é verdade que é possível estabelecer uma ligação com elas mesmo com máscara posta - com crianças mais crescidas não tanto com bebés - mas é muito mais difícil porque ainda não estão tão treinadas a ler as nossas expressões e os seus circuitos sociais são menos desenvolvidos. E se isto até pode funcionar com uma criança calma, equilibrada e com um adulto com quem já exista uma boa ligação, fica tudo muito mais difícil quando a criança está tensa o que acontece muito facilmente quando estão sem os pais.  

E esperar que uma criança fique tranquila sem contacto físico, sem toque, é simplesmente não perceber mesmo nada das suas necessidades, sobretudo para as mais pequenas mas também, ainda que em menor escala, para as mais velhas. 

Ao mesmo tempo também temos pessoas nos hospitais a serem submetidas a cirurgias difíceis e arriscadas e que estão completamente sozinhas. Compreendo que a entrada cada pessoa nova no hospital se torna um novo possível foco de infecção. Mas também sei que essa entrada poderá ter um papel fundamental na recuperação de doenças difíceis e de situações potencialmente traumáticas. Sei que também é arriscado deixarmos sozinhas pessoas que estão a ser tratadas por problemas de saúde graves e assustadores, porque esse sentimento de solidão irá activar no seu organismo uma carga de stress tóxico que poderá eventualmente ser tão letal como o vírus do qual estão a ser protegidas. 

Também me custa muito saber de recém-nascidos que estiveram separados quinze dias das suas mães: para serem protegidos de um vírus arriscam-se a uma vida inteira de traumas causados por essa separação que se sabe que pode ter efeitos destruidores no seu sistema de resposta ao stress, na amamentação e na criação de um vínculo do qual depende toda a organização e estrutura mental da criança. 

Todas estas medidas têm algo em comum: uma visão redutora e limitada do que é a saúde e o não reconhecimento da importância da saúde mental que é construída, em boa parte, através das ligações que criamos. 

Por isso gostava de ver estas questões importantes a entrarem também nas equações. Quando tentamos proteger-nos do vírus gostava que o fizéssemos com a noção de que é também importante para a nossa saúde proteger as relações e libertar-nos do medo que nos faz, neste momento, ver cada um dos outros como um potencial perigo para a nossa saúde. Nunca ouvi dizer tantas vezes que estamos todos juntos mas, a verdade, é que nunca estivemos tão separados. Separados pelo medo que os outros nos infectem, separados pelo medo que os outros não levem isto suficientemente a sério ou separados pelo medo que o levem demasiado a sério. 

Então precisamos de nos juntar naquilo que nos torna mais humanos: o reconhecimento de que todos precisamos uns dos outros para sobreviver, para estar bem e para ser felizes. 

E precisamos que isto comece a pesar tanto nas decisões como as estatísticas que mostram tão bem o lado racional da humanidade mas que falham redondamente naquilo que é mais importante: as emoções. Porque se este lado racional nos trouxe conquistas maravilhosas e fantásticas que melhoraram muito a nossa qualidade de vida a verdade é que também nos afastou daquilo que nos faz felizes: as emoções. 

Um livro muito bom do psiquiatra Ian Mcgilchrist - the master and his emissary - explica como o mundo ocidental valoriza excessivamente as funções do hemisfério esquerdo. E nunca como agora isso foi tão claro para mim. Quando achamos que não há problema em pedir a adultos e crianças que se distanciem e usem máscaras estamos a valorizar demasiado a racionalidade e a deixar completamente de lado todas as funções do hemisfério direito, que é justamente o que analisa a comunicação não verbal e está mais ligado às emoções. Acontece que esta valorização excessiva do hemisfério esquerdo, com todos os benefícios importantes que nos trouxe, como o conhecimento científico, também tem uma responsabilidade importante no crescente mal estar, ansiedade e depressão que se vêem hoje em dia. É através do hemisfério direito que nos ligamos ao corpo e às emoções. E é só através do contacto com estas que podemos ser felizes e ter vidas preenchidas.


O hemisfério esquerdo permite-nos fazer coisas muito importantes, como dar nomes ao que sentimos e perceber porque acontece. Mas sem o direito ficamos vazios, reduzidos apenas ao intelecto podemos conquistar muitas coisas mas sem amor a vida não faz sentido.



Precisamos de encontrar um equilíbrio que nos permita perceber que se queremos viver bem, não apenas sobreviver, controlar o vírus não pode ser a nossa única preocupação.



Precisamos de ter noção que uma boa parte da comunicação acontece de forma não verbal. E quando alguém usa máscara e se distancia aquilo que o nosso organismo lê é um sinal de perigo.

Não sou contra o uso da máscara em situações específicas, como transportes públicos por exemplo. Mas precisamos de não as normalizar demasiado sob pena de anularmos e desvalorizarmos completamente o nosso hemisfério direito, anulando também tudo o que nos torna humanos e nos permite ser felizes.



E se isto é válido para os adultos, é ainda mais importante para as crianças em que o cérebro ainda está a organizar-se de formas que se irão tornar permanentes.

E sobretudo não podemos distancia-nos um dos outros e continuar a encarar todos como potenciais transmissores de vírus perigosos sob pena de vermos gravemente afectada a nossa saúde mental. 

Não acredito que esta crise nos traga muitas coisas boas, porque durante uma crise tudo o que queremos é sobreviver. Mas gostava muito que, no futuro, começássemos a ser mais capazes de valorizar as emoções e as relações como o património mais importante da humanidade e aquele que precisa mais de ser protegido e valorizado e que percebêssemos que não se pode falar de saúde física sem pensar na mental e sem pensar nas emoções e nas relações porque elas fazem parte de um todo inseparável que não pode ser analisado separadamente. Mesmo que seja impossível pô-las no microscópio como já fazemos com os vírus. 



quinta-feira, 9 de abril de 2020

Aprender a brincar

Neste momento as escolas estão-se a preparar para um terceiro período virtual mas, infelizmente, não acredito que esta seja a melhor opção.
Já têm sido muito faladas as dificuldades que isto apresenta às famílias com a gestão do teletrabalho, ou em famílias com vários filhos e poucos computadores ou a desigualdade também provocada pela inexistência de computadores em tantas casas.
Mas, para além de tudo isto que são questões importantes, também existem outras que têm sido menos debatidas mas que considero igualmente importantes.

Não acredito que o estudo através de um ecrã seja a melhor forma de aprender, sobretudo para os mais novos em que o cérebro ainda está em formação.

Sabemos já há algum tempo que o conteúdo de tudo o que vamos aprendendo muda a estrutura do nosso cérebro, construindo novas sinapses e redes neuronais em função das aprendizagens feitas. Mas, o que estamos mais recentemente a aprender é que a forma como aprendemos também molda o nosso cérebro tanto ou até mais do que conteúdo.

Já existem vários estudos que demonstram que ler o mesmo texto num ecrã ou no papel não tem o mesmo resultado. Em experiências feitas para avaliar isto verificou-se que as pessoas que liam no papel tinham mais facilidade em assimilar os conteúdos e perceber aquilo que estavam a ler do que aquelas que liam num ecrã. 

Sempre que lemos alguma coisa num ecrã, com ligação à internet a nossa mente precisa de fazer avaliações constantes, sobre toda a restante informação que não pára de chegar e que pode não ter nada a ver com o conteúdo do texto. Mas mesmo que a informação seja relevante para o conteúdo - como acontece quando os textos têm mais links, por exemplo -  a nossa capacidade de assimilação e concentração torna-se ainda mais reduzida. Isto acontece porque a nossa mente precisa de avaliar, primeiro se aquela informação é ou não relevante e depois se devemos ou não abrir o link. Isto pode parecer pouco mas a verdade é que para o fazermos precisamos de abrir outras partes da nossa atenção que quebram a concentração necessária e fundamental para assimilar um texto e pensar sobre ele de forma mais aprofundada. Por isso alguns estudos também demonstram que quanto mais rico, do ponto de vista digital, for o texto ou a informação transmitida menor será a nossa capacidade de a assimilar, ao contrário daquilo que tantas vezes temos tendência para pensar. Há uma tendência natural para pensarmos que um vídeo no youtube por exemplo é uma boa forma de fazer as crianças aprenderem algo sobre determinado tema. É verdade que um vídeo capta mais facilmente a atenção do que um texto, e um vídeo mais rico com mais música, cor e movimento chama mais a atenção do que outro mais pobre. Acontece que chamar a atenção não é exactamente o mesmo que aprender. E a forma com os ecrãs captam a nossa atenção deixa-nos num estado de semi-passividade que, na verdade, é contrário aquilo que é preciso para sermos capazes de aprender a pensar e não apenas meros receptores de conteúdos. Quando vemos um vídeo a nossa mente fica ocupada a avaliar todas as outras informações que não param de chegar e sobra menos espaço para se focar verdadeiramente naquele tema. Por isso hoje em dia temos é fácil termos acesso a muita informação mas esta acaba por ser superficial na maior parte das vezes.

Quando estamos a ler um livro, essas distracções não existem e por isso a nossa mente fica livre para se focar verdadeiramente no tema que está a ser tratado e acaba por ser capaz de memorizar e assimilar a informação de forma mais completa, ao mesmo tempo que temos mais capacidade para reflectir de forma mais profunda sobre aquele tema.

Mas, talvez até mais importante do que isto, é o que acontece quando estamos a ler no papel: a nossa mente está a aprender a manter o foco e isto também está associado a uma maior capacidade de gerir a nossa atenção o que, por sua vez, está associado a um maior bem-estar e satisfação. Quando estamos online existem constantemente distracções, a nossa capacidade de foco fica muito mais limitada, saltitamos constantemente de uma informação para outra e isto faz com que o cérebro perca a sua capacidade de se manter focado o que, por sua vez, está associado a muitos problemas de ansiedade e a um sentimento de agitação e mal estar constante.

Um dos grandes benefícios da meditação é justamente treinar essa capacidade de manter o foco e é esta capacidade que é responsável por uma boa parte dos sentimentos de bem-estar e tranquilidade que a meditação pode trazer. E isto é precisamente o oposto daquilo que acontece sempre que estamos online, em que, mesmo que estejamos a ler um texto ou a tentar aprender alguma coisa, a nossa mente tem de fazer essas avaliações permanentes que reduzem um pouco a sua capacidade de manter o foco. E quanto mais tempo passarmos a fazê-lo mais difícil se torna manter esse foco, mesmo quando já não estamos online.

Se isto é verdade para adultos, será ainda mais importante pensar nos efeitos que isto poderá ter nas crianças que estão ainda em fase de aprendizagem e formação e em que todas as experiências têm um um impacto ainda maior na formação do seu cérebro. 
Por isso não acredito que manter a aprendizagem através da internet seja o mais acertado para as nossas crianças neste momento.
Até porque quando falamos de crianças precisamos de saber que elas não aprendem unicamente com processos de reflexão, a ler ou a estudar. As crianças precisam de aprender a brincar, a mexer, a experienciar e isto tudo é muito mais difícil de fazer através de um ecrã. Além de que existe uma componente fundamental na aprendizagem que os ecrãs também não facilitam: a relação. As crianças aprendem sobretudo em relação. As crianças aprendem melhor quando gostam dos professores e quando os professores gostam delas e é mais difícil transmitir isso através de um ecrã.

Quando lemos um livro, porque a nossa mente fica mais focada e silenciada, também conseguimos criar uma proximidade emocional com o conteúdo mais facilmente do que num ecrã. E isto também é essencial na aprendizagem. Aprendemos melhor aquilo que nos toca do ponto de vista emocional. Memorizamos melhor as coisas que nos emocionam. As emoções transformam o cérebro e ajudam a desenvolvê-lo. As crianças aprendem essencialmente em relação. Estudos com crianças pequenas constataram que quando o mesmo conteúdo era transmitido pela mesma pessoa ao vivo ou através de um ecrã os resultados eram bastante diferentes: as crianças aprendiam muito melhor ao vivo. Da mesma forma também sabemos que as crianças pequenas que passam muito tempo a ver televisão têm mais dificuldades de linguagem, mesmo que até vejam programas educativos.

Por tudo isto, não acredito que a escola seja uma prioridade neste momento. 

Brincar é o mais importante 

O mais importante nesta altura é darmos aos nossos filhos um sentimento de segurança, através da relação que temos com eles. Se sentimos que fazer alguns exercícios escolares com eles nos ajuda a manter essa relação e é positivo para ambos, óptimo, podemos fazê-lo claro mas se, pelo contrário, como tantas vezes acontece, isso só servir para criar tensão e conflitos, então a aprendizagem formal da escola pode mesmo ficar para segundo plano. Até porque é muito difícil aprender quando estamos com medo ou ansiosos.

Acredito que, neste momento, a nossas prioridades precisam de ser apenas duas: preservar a relação que temos com as nossas crianças e deixá-las brincar. 

Porque é que a brincadeira livre é tão importante neste momento? Porque é através dela que as crianças podem processar muito daquilo que estão a sentir e a viver. Através da brincadeira as crianças encontram formas criativas e importantes de libertar a tensão e de descarregar os medos que possam estar a sentir. E encontram formas de integrar e processar tudo o que estão a viver. Por isso, neste momento, mais do que nunca precisamos é de criar espaço e dar-lhes tempo para brincar. Para brincarem livremente, sem interferências e sem julgamentos da nossa parte. Isto é válido tanto para os mais pequenos como para os mais novos e até para adolescentes e adultos. Com estes últimos as brincadeiras serão diferentes, mas é importante também que encontrem espaços de liberdade que lhes permitam entrar em contacto e assimilar tudo o que estão a sentir. Isto pode acontecer quando ouvimos música que nos ajuda a chorar e a libertar a tristeza, por exemplo, ou quando pintamos ou desenhamos para quem gosta de o fazer, ou quando dançamos ou qualquer outra coisa que nos faça sentir que somos capazes de trazer o foco para o presente, de entrar em contacto com as nossas emoções e de libertar o que estamos a sentir. E para as crianças a forma principal de fazer isto é brincar.

Por isso, neste momento, mais do que qualquer outra coisa é de brincar que precisam os nossos filhos. E criar as condições para a brincadeira aconteça tem de ser a nossa prioridade.


Condições para brincar 

É impossível obrigar alguém a brincar mas podemos criar condições para que a brincadeira surja espontaneamente e existem algumas condições essenciais para isso: primeiro as necessidades têm de estar satisfeitas e a necessidade mais importante é a da nossa presença, de se sentirem ligados a nós, depois precisam também de se sentir seguras porque é impossível brincar quando estamos em estado de alerta e depois é preciso que haja diariamente bastante tempo livre de ecrãs.

Neste momento é provável que seja mais difícil esses momentos de brincadeira acontecerem de forma espontânea porque as crianças podem estar mais alarmadas e inseguras, por isso temos de os preservar ainda mais. Para isso neste momento não acho que devamos estar preocupados com estudos e com escolas, porque essa preocupação traz mais uma carga de tensão que se irá juntar a todas aquelas com que já temos de lidar neste momento.

Além disso uma criança segura e com tempo para brincar, também é uma criança que tem  uma disponibilidade natural para aprender de forma mais livre. E as crianças aprendem a brincar também. Uma criança mais tranquila e mais segura, com tempo e espaço para brincar, também é uma criança que mantém a sua curiosidade natural que é um ingrediente essencial para que a verdadeira aprendizagem aconteça. E também é uma criança mais capaz de se sentar a ler um livro, por exemplo que, neste momento, me parece uma aprendizagem mais útil e positiva do que a dos conteúdos formais da escola.

Acho que pode ser útil manter o contacto com as escolas, que podem ir sugerindo alguns exercícios pontualmente mas, sobretudo, para manter a relação entre as crianças e com os professores. As crianças aprendem sobretudo em relação e são estas relações que, neste momento, mais do que tudo importa preservar. Muito mais do que fazer trabalhos de matemática ou português ou estudo do meio. São elas que alimentam de verdade o cérebro. Tudo o resto é secundário e pode ficar para segundo plano neste momento. Até porque se formos capazes de alimentar bem as nossas crianças, neste momento, com a relação que temos com elas e esses momentos fundamentais de brincadeira livre ao longo do dia, de certeza que mais facilmente elas conseguirão aprender todo o conteúdo académico  que ficou para trás quando for necessário fazê-lo. 

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Paradoxos do isolamento

Aquilo que está a ser pedido à maioria de nós neste momento deixa-nos numa espécie de paradoxo fisiológico: por um lado é-nos incutido um sentimento de medo - que aliás a comunicação social tem feito um bom trabalho de manter com a sua contagem diária de mortos e infectados - medo de ficar doente, de ver os nossos entes queridos doentes ou de causar doença nos outros mas medo também da cura com toda a desestruturação que ela está a provocar nas nossas vidas; por outro lado é-nos pedido que não façamos nada com esse medo e que nos limitemos a ficar em casa, o mais quietos possível. Isto deixa-nos um pouco sem saída do ponto de vista fisiológico porque, sempre que o nosso sistema de alarme é activado, o que acontece quando sentimos medo ou quando existe esta sensação de que há uma ameaça presente de forma constante temos duas hipóteses: ou activamos a resposta de luta-ou-fuga, através do nosso sistema nervoso simpático ou activamos a resposta de congelamento, comandada pelo nervo vago dorsal. Acontece que, a primeira resposta, a mais adaptativa e natural para lidar com as ameaças, aquela que partilhamos com todos os mamíferos é a de luta ou fuga. Mas, neste momento, não podemos lutar nem fugir por isso se este é o nosso mecanismo de resposta principal é bem provável que nos sintamos muito frustrados, zangados, revoltados e com um certo sentimento de desorientação ou de agitação permanente porque não temos como fazer aquilo que o nosso organismo nos está a pedir. 

Mas quando a resposta de luta ou fuga se mantém activa demasiado tempo sem que isso produza nenhum resultado, há uma probabilidade de que passemos a activar a resposta de congelamento. Isto acontece sobretudo quando na nossa história precisámos de recorrer muitas vezes a este mecanismo, que acaba por tornar-se o nosso primeiro meio de resposta. Este é o caso de pessoas com história de trauma profundo na infância. Esta resposta activa um mecanismo de defesa que temos em comum com os répteis que se limitam a fingir-se de mortos quando uma presa os ataca até que a ameaça desapareça. Mas nós não somos répteis por isso esta resposta tem um custo muito elevado para os seres humanos que não podem usar este mecanismo por muito tempo, já que o seu organismo precisa de manter níveis de oxigénio e temperatura mais constantes. Por isso este mecanismo só é activado em situações extremas e tem um custo muito grande para o nosso organismo. Uma das suas consequências, do ponto de vista psicológico, é um sentimento de impotência, daquilo a que se chama a desesperança aprendida: a sensação de que nada do que façamos importa ou faz diferença no mundo e isto vem associado a sentimentos de tristeza profunda ou de dissociação - que vem muitas vezes associada a uma sensação de vazio, ou de que não estamos bem aqui, no nosso corpo, uma incapacidade grande de estarmos presentes com a nossa experiência em cada momento, um sentimento de que precisamos de fugir e, se não o podemos fazer em corpo, tentamos fazê-lo em mente. É o que relatam muitas pessoas que sofreram maus tratos profundos quando dizem que o corpo estava ali mas a cabeça já não. Esta é uma defesa adaptativa na medida em que nos permite sobreviver, mas esta sobrevivência vem com um custo muito elevado: a perda do prazer na vida, o medo de lidar com as emoções, a necessidade de fecharmos certas partes de nós mesmos e a dificuldade de criarmos ligações seguras e significativas que nos preencham de verdade.

 A forma como usamos estes mecanismos de resposta não depende da nossa vontade, isto acontece de forma automática e inconsciente e a maioria das vezes nem nos damos conta de que estamos a activá-los.

Acontece que a forma principal de desactivarmos o nosso estado de alarme é através da co-regulação. A co-regulação é mesmo a estratégia principal de sobrevivência da nossa espécie. E, neste momento, também nos está a ser pedido que nos distanciemos dos outros. 

Mas o nosso sistema nervoso está programado para se regular através dos relacionamentos. Precisamos de ver as outras pessoas, de olhar nos olhos delas e de as tocar também para nos sentirmos seguros. É verdade que o mundo virtual de hoje facilita um pouco as ligações, mesmo nesta altura de isolamento, mas também é verdade que podemos cair facilmente no perigo de achar que elas substituem tudo e isso não é verdade. Mesmo numa videochamada falta-nos muita informação não verbal importante que influencia a forma como comunicamos e como nos sentimos. E a forma como lidamos com isso  depende do nosso perfil.

Existe um grupo de pessoas a que podemos chamar reactivas, alguns autores falam de pessoas sensíveis ou no caso das crianças, há quem fale das crianças orquídeas, que são pessoas em que de certa forma o sistema nervoso tem mais dificuldade em excluir os estímulos internos e externos. Estas pessoas processam constantemente um maior número de informações e geralmente de forma mais intensa. Então este grupo que se estima que será cerca de 20% da população, será provavelmente aquele que tem maior dificuldade com este tipo de comunicação. Isto porque, por um lado estão mais habituadas a receber e a processar uma série de informações subtis que faltam nas videochamadas e sentindo essa ausência fica-lhes mais difícil comunicar, por outro lado porque ao processarem mais estímulos do meio ambiente também lhes é mais difícil desligarem-se do sítio onde estão que terá estímulos muito diferentes daqueles que a outra pessoa experimenta o que pode contribuir para uma certa des-sincronia na conversa. Porque nas conversas importantes aquilo que acontece é que criamos uma certa sincronia entre as pessoas, uma sincronia do ponto de vista fisiológico que pode ser observada exteriormente nos gestos que é comum serem parecidos, nas expressões faciais em que uma pessoa espelha a emoção da outra ou na postura corporal que também adopta certas semelhanças quando essa sincronia acontece. Claro que é possível conseguir também alguma sincronia com uma videochamada, menos com um telefonema porque nos falta informação importante quando não vemos o rosto de alguém, mas a verdade é que pode ser um pouco mais difícil. E a verdade também é que isto não tem o mesmo grau de facilidade ou dificuldade para todas as pessoas o que pode ter a ver com algumas características pessoais mas também com a nossa história. Para uma pessoa que não está muito habituada a ser ouvida e acolhida de verdade e que, por isso mesmo, tem sempre uma atitude mais defensiva com os outros a comunicação online torna-se mais difícil porque há sempre um medo inconsciente de que o outro não seja verdadeiramente capaz de acolher a nossa dor e se esse medo também se manifesta mesmo na presença física das outras pessoas, é ainda mais provável que ele tome conta da nossa comunicação quando essa presença não existe. Porque quando já há alguma tendência para nos sentirmos sozinhos e incompreendidos, mesmo na presença dos outros, é natural que isto se intensifique quando nem sequer temos essa presença, como se o nosso corpo confirmasse que essa solidão é real.

Para pessoas com apego do tipo ambivalente, pessoas que na infância tiveram mães que nem sempre foram capazes de responder às suas necessidades esse medo de não se ser acolhido ou compreendido é uma constante, ainda que nem sempre tenham consciência disto. Estas pessoas têm na sua história uma experiência de sentir que os outros não sabem ou não conseguem ou não querem dar resposta às suas necessidades, por isso quando falam com alguém, inconscientemente, também esperam que as outras pessoas não sejam capazes de preencher verdadeiramente as suas necessidades. E é ainda mais fácil que isto se manifeste quando essa comunicação se faz através de um ecrã. É também nestas pessoas que esta experiência de isolamento pode estar mais associada a estados de ansiedade e agitação que vêm do reviver dessas experiências de infância em que se sentiram em perigo por não verem as suas necessidades bem acolhidas ou preenchidas. Porque para uma criança não há ameaça maior do que sentir que os seus pais podem não ser capazes de as proteger ou de preencher as suas necessidades de afecto e de reconhecimento. Isto é tão assustador que acaba por ser mais fácil a criança interiorizar que é ela que tem o problema ou os defeitos que não permitem que os outros gostem de si e, por isso, neste caso a experiência de isolamento pode acentuar ainda mais isso, porque, por muito que de um ponto de vista racional se saiba que as outras pessoas não nos procuram porque não podem, de um ponto de vista mais inconsciente isto vem confirmar o medo de que elas simplesmente não queiram estar connosco ou que não se importem com as nossas necessidades e não queiram saber dos nossos medos.

As pessoas caracterizadas por um apego do tipo evitante são pessoas que têm uma certa tendência para desvalorizar as emoções, porque na sua infância estas nunca foram bem acolhidas ou valorizadas. Por isso nestes casos há muitas vezes uma tendência excessiva para racionalizar e, nestes casos, pode ser muito fácil cair na ilusão de que a comunicação virtual substitui perfeitamente a real porque é mais provável que nem haja consciência desse vazio que existe pela incapacidade de se entrar em contacto com as próprias emoções.  Nestas pessoas o isolamento poderá estar mais associado a um sentimento de incapacidade e de tristeza profunda como se confirmasse aquilo que elas, no fundo sempre souberam: que estão sozinhas porque ninguém gosta verdadeiramente delas, porque não são dignas de amor. Nestes casos é mais provável que surja também o tal sentimento de desesperança aprendida, de que nada do que façamos importa.

Por fim, para as pessoas do tipo desorganizado, pessoas que sofreram traumas profundos na infância, a comunicação online pode ser ainda mais desorientadora por causa dos paradoxos com que as confronta.
Então, na verdade as pessoas que podem usufruir melhor deste tipo de comunicação são justamente as que menos precisam, porque são pessoas mais seguras, com melhores experiências de acolhimento e reconhecimento que, por isso mesmo, também desenvolveram mais capacidades de auto-regulação. 

Ao escrever isto quero apenas chamar a atenção para o facto de que nos está a ser pedido algo realmente difícil e que é natural que isso tenha custos elevados. E uma das formas importantes de preservarmos a nossa saúde mental começa por sermos capazes de acolher aquilo que estamos a sentir, passa por sermos capazes de nomear as nossas emoções e também por sermos capazes de dar um significado aquilo que estamos a viver.

Acredito que, por um lado, seria mais fácil, menos confuso e desorientador se nos pedissem para agir e não apenas para ficar parados à espera que o perigo passe. Se nos pedissem para agir de forma concreta, reforçando o apoio às vítimas com algum tipo de voluntariado, por exemplo, ou de outras formas que pudessem ajudar-nos a dar algum uso ao estado de alarme que estamos todos a sentir. Não posso ter a certeza de que isto seria o mais eficaz no combate ao vírus, nem sei exactamente em que moldes o poderíamos fazer mas sei que poderia ser mais fácil do ponto de vista emocional para muitas pessoas

Mas talvez o mais importante neste momento seja mesmo darmos voz ao sentimento de desorientação que é muito natural que várias pessoas estejam neste momento a sentir e perceber que ele tem uma razão fisiológica para existir. E saber que precisamos de o encarar e de libertar toda a tristeza que vem com todas as frustrações desta nova realidade em vez de tentarmos disfarçá-la ou ignorá-la com as mil e uma actividades tentadoras que chegam aos nossos e-mails e telemóveis todos os dias. Precisamos de fazer as pazes com essa tristeza e de saber que, neste momento, ela é mesmo o mais natural perante todas as perdas que estamos a vivenciar: de liberdade, de relacionamentos, de dinheiro e de saúde. Porque enquanto não encararmos e nomearmos esta tristeza também será muito mais difícil encontrar alguma coisa de positivo nisto tudo e dar um significado a tudo o que estamos a viver. 

E também é preciso que tenhamos consciência de que, se estas perdas se mantiverem por um tempo demasiado longo é muito provável que, a partir de certa altura, elas superem os ganhos que podemos obter com esta situação. Porque a saúde mental é uma parte inseparável da saúde física e ficarmos isolados durante demasiado tempo também pode matar-nos de muitas formas diferentes.