terça-feira, 31 de agosto de 2021

Deixem os miúdos em paz

Os adolescentes têm vindo a ser sacrificados desde que esta crise começou. Uma boa
parte dos seus direitos tem vindo a ser retirada e comportamentos naturais e essenciais
para esta idade têm vindo a ser criticados e até criminalizados. Têm sido proibidos de ir
à escola, de sair à noite, de estar com os amigos, de se aproximar uns dos outros, de
comunicar livremente sem precisarem de ter uma boa parte da cara tapada.
Agora, depois de um ano e meio de sacrifícios, de lhes termos retirado os seus direitos e
de os impedirmos de fazer coisas importantes para o seu bom desenvolvimento, chega a
última chantagem: a de que têm que levar uma vacina, de que não precisam e cujos
riscos são muito superiores aos eventuais benefícios, para que possam ser-lhes
devolvidos os direitos que lhes foram retirados. Muitos adolescentes dizem que querem
levar a vacina para poderem voltar à sua vida normal. Muitos dizem que só querem ser
vacinados para poderem continuar a viver. Como se a vacina lhes trouxesse a
possibilidade de regresso à vida que conheciam antes de terem sido fechados em casa e
acusados de estarem a contribuir para matar os seus avós. É muito natural que, perante
essa possibilidade de voltarem a ter tudo o que perderam, os adolescentes sintam
vontade de ceder a esta chantagem que pede aos mais novos que se sacrifiquem pelos
mais velhos.


Uma das características da adolescência é a subvalorização dos riscos. Faz parte do seu
desenvolvimento que tenham alguma tendência para desvalorizar os riscos, porque a
adolescência é uma altura de descobrir o mundo, de desbravar caminho, de deixar o
conforto e a segurança da casa e da família e isso implica sempre correr alguns riscos.
Por isso vemos tantos adolescentes a fazer coisas que a nós nunca nos passariam pela
cabeça. Mas, também por isso mesmo, é natural que desvalorizem os riscos da vacina,
que os dados indicam claramente que, para todos os que estão abaixo dos 30 anos, são
muito superiores aos da doença.

Mas não tenhamos ilusões: a vida nunca mais vai voltar ao normal se continuarmos a
aceitar estas decisões do estado totalitário que está a ser criado. Muitas pessoas dizem
que é egoísta falar em liberdade e em escolhas individuais nesta altura. Porque temos de
pensar no bem comum. Mas essas pessoas esquecem que a liberdade é o maior bem
comum que precisamos de proteger. A liberdade protege-nos a todos. Sem liberdade que
garantia temos de que não seremos presos um dia apenas por fazermos algo que,
entretanto, foi definido como sendo contra o bem comum? Todas as ditaduras começam
para alegadamente salvaguardar o bem comum. Estamos perante um totalitarismo
sanitário que, para algumas pessoas parece até aceitável, mas quem é que nos garante
que daqui por uns tempos não surjam outras razões para que este totalitarismo se
mantenha?

Têm ecoado por estes dias na minha memória as palavras de uma pessoa que levou a
vacina contrariada, por pressão dos empregadores. Essa pessoa dizia-me que nunca mais
se sentiu a mesma, que se sente diferente para pior, que tem tido mais dores de cabeça e
um humor mais depressivo. E questionava-se se seriam efeitos secundários da vacina.
Eu não tenho como saber se podem ser efeitos secundários dos produtos que compõem
a vacina ou não, mas posso afirmar que são com certeza efeitos de alguém que se sentiu
forçado e coagido a abdicar dos direitos sobre o seu próprio corpo. E não a vida não
volta ao normal depois disso porque quando deixamos de nos sentir livres de tomar decisões acerca do nosso próprio corpo podemos dizer que estamos a ser vítimas de uma forma de abuso e esse abuso deixa marcas, claro. Jantar fora e ir à discoteca não são o mais
importante para uma vida normal: o que um adolescente precisa para se sentir “normal”
é de saber que as suas decisões são respeitadas, acolhidas e que os adultos não querem
que assumam responsabilidades que ainda não são suas.

Um adolescente saudável sente-se imortal, tem uma tendência natural para pensar que
os perigos não existem ou que nunca lhe tocarão a si. As pessoas que têm tentado
influenciar o nosso comportamento durante esta crise sanitária sabem isso muito bem.
Um adolescente saudável não tem medo de morrer e muito menos de ficar doente. Por
isso eles têm sido levados a acreditar que podem pôr em perigo os outros. Sei de alguns
professores que chamavam criminosos aos alunos que se juntavam à porta das escolas,
fazendo apenas aquilo que o seu instinto lhes pede: conviver e fazer amigos. Os nossos
adolescentes e as nossas crianças têm sido vergonhosamente coagidos a sentirem-se
responsáveis pela vida dos mais velhos da sua família e não só. Apesar de tudo,
temos alguma tendência para proteger mais as crianças e exigir dos adolescentes que se
portem quase como adultos. Só que os adolescentes ainda não são adultos. A
adolescência é um período sensível para o desenvolvimento de muitas aptidões. Isto
quer dizer que os adolescentes estão programados para fazer algumas aprendizagens
que, quando não acontecem nesta altura, será muito mais difícil fazer com que
aconteçam mais tarde.

A adolescência e os primeiros anos de vida são as fases em que o cérebro está em maior
desenvolvimento. Nestas fases são criadas e perdidas milhares de ligações neuronais em
função de todas as experiências vividas: as mais frequentes deixam estruturas neuronais
que podem ficar para o resto da vida e aquelas que nunca são vividas fazem com que
determinadas estruturas se percam. Esta é uma altura em que o cérebro está a ser
moldado e tudo o que é vivido tem um grande impacto para a estrutura que está a ser
criada. A adolescência é um período sensível para o desenvolvimento de muitas
capacidades: é uma janela de oportunidade importante que não deve ser desperdiçada
porque será muito mais difícil desenvolvê-las mais tarde. Além disso, o caminho para a
complexificação que está a acontecer nesta fase, implica sempre uma certa fragilidade o
que significa que, nesta altura, há mais potencial para que aconteçam danos.

A adolescência é uma ponte entre a infância e a idade adulta. É por isso que por vezes
não sabemos lidar com os adolescentes: porque num determinado momento se portam
como autênticas crianças e no minuto a seguir podem parecer adultos. Apesar dos
adolescentes terem já algumas capacidades que as crianças não têm, isto não quer dizer
que estejam completamente prontos para assumir determinadas responsabilidades, como
todos bem sabemos. Por isso os adolescentes ainda precisam de ter os adultos como
referências.


Ouço com espanto algumas pessoas defenderem que precisamos de vacinar os
adolescentes como forma de preservar a sua saúde mental. A saúde mental dos
adolescentes nunca foi muito valorizada durante este ano e meio por isso é caso para
dizer que mais vale tarde que nunca. A prova disto é que aumentaram brutalmente os
casos de automutilação, as crises de ansiedade, as depressões, as dependências de ecrãs
e as tentativas de suicídio sobre as quais muitos pediatras que afirmam que nunca viram
chegar tantos casos aos hospitais.

Acontece que a saúde mental não se defende fazendo-nos crer que precisamos de
abdicar dos direitos sobre o nosso corpo e conformar-nos a regras sem sentido apenas
para podermos fazer aquilo que os outros fazem. Muito menos na adolescência. A saúde
mental defende-se ensinando os jovens a confiar em si mesmos, a não terem que fazer
aquilo que os outros fazem só porque os outros fazem, a não terem medo de pensar pela
sua própria cabeça e a saberem respeitar opiniões diferentes. E a saberem que os adultos
os aceitam, respeitam e protegem nessa sua diferença. A saúde mental não se defende
ensinando os jovens a serem conformistas. A saúde mental não se defende ensinando
que podemos abdicar de escolhas fundamentais sobre o nosso corpo apenas para poder
sair à noite ou jantar fora. Se estamos realmente preocupados com a saúde mental de
crianças e jovens vamos acabar com as regras absurdas que vigoraram este ano nas
escolas e com a criminalização daquilo que são comportamentos naturais e importantes
para os jovens. Vamos acabar com a culpabilização e estigmatização de quem pensa
diferente. E vamos dar-lhes o direito de escolher aquilo que querem injetar nos seus
próprios corpos sem fazer com que se sintam responsáveis por proteger as vidas dos
mais velhos. Até porque com os dados que temos sobre o contágio entre pessoas
vacinadas tudo indica que estas injeções nem sequer servem para isso.
Quando a esmagadora maioria dos pediatras vem a público afirmar que a vacinação dos
jovens tem mais riscos que benefícios e as entidades oficiais decidem que, mesmo
assim, ela irá acontecer não podemos ter dúvidas de que estas medidas já não têm nada
que ver com saúde. E muito menos com o bem comum.

terça-feira, 11 de maio de 2021

Já podemos libertar as crianças?

O meu filho mais novo tinha três e meio quando esta crise começou. Dei comigo a pensar que qualquer dia ele já não se lembrará de alguma vez ter andado de transportes públicos sem que  todos estivessem de máscara, já não se vai lembrar das velhotas simpáticas que falavam tantas vezes com ele no autocarro e com quem sempre gostava de falar quando era bebé. Podemos viver com isso, claro, apesar de ter pena de perder este aspecto característico do que era ser português. Um dia uma mãe espanhola disse-me que para os portugueses parecia que as crianças eram propriedade pública, com tudo o que isso tem bom e de mau, claro. Neste momento isso perdeu-se, porque temos cada vez mais medo de falar com as outras pessoas, estamos cada vez mais isolados nesta sensação colectiva de que todos podemos pôr todos em perigo. Além de que as máscaras dificultam muito as poucas tentativas de comunicar com alguém que não conhecemos nos transportes ou na rua. Mas, se podemos adaptar-nos a isto, ainda que não sem alguma tristeza, o que dizer de todas as crianças que dentro em breve já não se lembrarão de alguma vez terem abraçado os avós? De todas as crianças de um ano que nunca estiveram noutro colo para além do dos pais? De todas as crianças que nunca conheceram uma escola sem máscaras e sem regras rígidas? De todas as crianças que dentro em breve já não vão saber como tocar, como abraçar, como beijar os amigos de tanto terem interiorizado que isso era perigoso? De todos os adolescentes que já não saberão como mostrar a cara porque se habituaram a esconder o rosto atrás da máscara usada o dia inteiro nas escolas? De todos os adolescentes que deixaram de encontrar um propósito para a vida porque de repente não se conseguem sentir mais do que meras armas biológicas que podem pôr em perigo todos aqueles que amam pelo simples facto de seguirem o seu impulso de quererem aproximar-se dos amigos? Será que também podemos adaptar-nos a isto? Será que temos sequer o direito de o fazer? 
          

O tempo das crianças e dos adolescentes é diferente do tempo dos adultos. Vi em tempos um especialista em desenvolvimento afirmar que um ano na vida de uma criança podia ser equiparado a dez anos na vida de um adulto. Não sei se podemos ver as coisas deste modo tão linear mas a verdade é que tudo o que acontece na infância e na adolescência tem muito mais peso porque o cérebro está em transformação, porque está programado para aprender aquilo que pode esperar do mundo, dos outros e para aprender como deve lidar com isso. As crianças adaptam-se, ouvimos constantemente e é verdade. Justamente por serem fases de grande aprendizagem e transformação a infância e a adolescência também são fases de grande adaptação. Mas essa adaptação tem um preço. Um preço que está a ser pago agora e que continuará a ser pago no futuro. Um adulto voltará mais facilmente ao comportamento que tinha antes de tudo isto ter começado porque tem essas memórias, esses registos de como era viver de outra formas mas as nossas crianças e os nossos adolescentes estão a perdê-las, as crianças mais pequeninas nunca chegaram a tê-las. Queremos mesmo que as nossas crianças e jovens cresçam a acreditar que é perigoso abraçar? Que é perigoso beijar? Que uma cara destapada é uma arma biológica em potência? Com a vacinação dos idosos quase concluída, no Reino Unido, já se fala de abandonar as máscaras em todas as escolas a partir do meio de Maio. Cá até já vacinámos os professores, para além dos idosos, porque é que ainda não começámos a pensar em libertar as nossas crianças e jovens? Fomos dos países que mantiveram mais tempo as escolas fechadas e que forçaram as máscaras nas idades mais precoces. Os parques infantis em muitos sítios ainda continuam fechados. É verdade que os nossos parques, na sua maioria, são pobres e pouco desafiadores por isso nem sequer são o melhor lugar para as crianças brincarem, sobretudo as mais crescidas. Mas mantê-los fechados transmite uma ideia de medo, de insegurança que ainda persiste na cabeça de muitos pais. As nossas crianças já vivem muitas vezes uma vida de sobreprotecção, já não podem brincar na rua e passam o dia a ir de uma actividade para a outra sem o tempo necessário para a brincadeira livre que é tão essencial para o seu desenvolvimento e que se torna ainda mais importante nos momentos de tensão. A brincadeira livre ajuda a gerir a tensão e até a calibrar o sistema de alarme das crianças que é justamente o que lhes permite manter a resiliência necessária para lidar com a adversidade. Quando têm alguma possibilidade de arriscar, quando podem brincar livremente às lutas e às escondidas, quando lhes é permitido estarem livres num espaço aberto em que podem aprender a conhecer o corpo e o que as rodeia, as crianças estão a testar e a usar de forma controlada o seu sistema de alarme, é através destas experiências que ele se vai tornando mais eficaz a lidar com os perigos e que se torna mais capaz de enfrentar situações difíceis.

Culturalmente temos uma enorme aversão ao risco, que limita as crianças e que, neste momento está a impedi-las de viver e de se desenvolverem. Durante muito tempo dissemos que as crianças não podiam brincar livremente e os jovens não podiam conviver porque poderiam pôr em risco os avós. Agora que os avós estão praticamente todos vacinados qual é a desculpa para os mantermos ainda cativos deste medo que não nos larga?


As crianças precisam de brincar e os adolescentes precisam de conviver. Uma das tarefas essenciais da adolescência é o afastamento da família: os adolescentes precisam de descobrir o seu lugar no mundo e não podem fazê-lo se os impedirmos de sair, de conviver, de estar com os amigos. E não, isso não se faz através de um ecrã. O aumento do uso de ecrãs durante a adolescência está fortemente correlacionado com o aumento das tentativas de suicídio. Estamos programados para estar com as pessoas ao vivo e nada pode substituir isso, precisamos de toque. E os adolescentes precisam de descobrir o corpo e os outros através desse toque também.

Durante toda esta crise muitas pessoas afirmaram que precisávamos de usar as tecnologias para manter e fortalecer as ligações. Mas esta é uma visão superficial das coisas. Primeiro porque consoante a idade temos necessidades muito diferentes a este nível. Um bebé precisa muito mais de toque e da presença física do que uma criança mais velha. Mas uma criança ainda precisa mais da presença física do que um adulto. Por isso para as crianças os ecrãs simplesmente não servem de substituto, principalmente para as mais pequenas. Mas, mesmo os adolescentes, ainda têm mais necessidade dessa presença do que um adulto. E mesmo para um adulto, essa necessidade, varia com as circunstâncias e também com o seu grau de maturidade emocional, porque nem todos os adultos têm a mesma maturidade. Mesmo um adulto maduro, nos momentos difíceis e de crise pode precisar do toque para se sentir seguro com alguém. Além disso as relações não podem manter-se eternamente à distância, por muito que usemos a tecnologia para comunicar, chega sempre a uma altura em que nada substitui o toque e o corpo da outra pessoa à nossa frente. E negar isto é negar tudo aquilo que nos torna humanos.


Depois também é fundamental reconhecer que não precisamos só das relações profundas. Também precisamos daquelas mais superficiais que fazem parte do nosso dia-a-dia quando tudo funciona normalmente e podemos sair de casa para trabalhar, levar os filhos à escola, ir ao café, etc. Precisamos mesmo daquelas pessoas a quem só dizemos bom dia, boa tarde e com quem nunca faríamos uma videochamada. Precisamos destas relações para nos sentirmos parte do grupo, parte da tribo. Estas são fundamentais para o nosso bem-estar porque, enquanto humanos, evoluímos em comunidades e temos que nos sentir parte delas.

As pessoas mais extrovertidas precisarão destas interacções em maiores quantidades, mas isso não quer dizer que não façam falta às introvertidas. Vejo muitos adultos em teletrabalho que, no início, até abraçaram com prazer a ideia de trabalhar a partir de casa e, neste momento, estão completamente deprimidos por falta desses contactos, desse sentimento de pertença e dos pequenos intervalos e conversas que podiam ir tendo com os colegas de trabalho, por muito superficiais que fossem.

Então pergunto, quando podemos libertar as crianças, os jovens e já agora também os seus pais deste medo que nos domina há tanto tempo?

Enquanto se mantiverem as máscaras na rua e em todos os sítios que frequentamos, irá manter-se o medo. E enquanto não nos livrarmos dele, as crianças e os jovens irão continuar a ser impedidos de viver em condições realmente propícias ao seu bom desenvolvimento. O uso constante de máscaras por parte dos professores e educadores dos mais pequenos limita a possibilidade das crianças se sentirem verdadeiramente seguras com os adultos com quem estão uma boa parte do dia. Já há peritos que identificaram atrasos no desenvolvimento da linguagem das crianças que passam o dia inteiro sem ver a boca dos adultos que as rodeiam, algo que é essencial para esta aprendizagem. Neste momento temos crianças que nunca viram a cara completa dos seus professores sem ser através de um ecrã. Professores que nunca viram a cara dos seus alunos ao vivo. Existem muitos bebés de um ano que mal estiveram com outros adultos além da mãe e do pai e que nunca foram ao colo dos avós. Temos adolescentes proibidos de ver a cara dos colegas o dia inteiro e crianças de dez anos que passam os intervalos na sala a olhar para o telemóvel. Temos professores que não deixam as crianças usarem o seu giz, têm que levar um de casa se quiserem ir ao quadro, mesmo quando já se sabe que a transmissão através das superfícies é muito pouco provável. Temos miúdos a desinfectar as mãos várias vezes por dia com alcoól gel que tem um efeito destruidor para as bactérias da pele. Temos professores que chamam criminosos aos alunos que fazem apenas aquilo que o seu instinto manda e que é fundamental para o seu desenvolvimento: conviver com os amigos. Temos polícias que perseguem jovens que se juntam à noite. E temos cada vez mais pessoas vacinadas e imunes por terem tido o vírus. De que é que precisamos mais para libertarmos as crianças? E já agora os adolescentes e adultos também.

O risco zero é uma ilusão, não existe neste vírus e nunca existirá em nenhum outro. Saiu recentemente uma meta-análise (uma revisão de vários estudos, neste caso foram 44 e podem ler-se aqui) que conclui que as máscaras não só têm uma eficácia muito limitada na protecção contra vírus como têm também vários efeitos negativos para a saúde e consequências psicológicas bastante negativas que advêm do seu uso prolongado. É altura de ouvirmos realmente a ciência, que se faz com espaço para o contraditório. É altura de abandonarmos os modelos e de olharmos para a vida real e para tudo aquilo que já se sabe sobre o vírus e sobre as políticas que temos usado para o combater. É que a desculpa da novidade e do não saber está a tornar-se cada vez mais velha.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Direitos das crianças, conformismo e emoções

Nos últimos meses cada vez mais pessoas têm falado sobre as medidas rígidas a que estamos a sujeitar as crianças e sobre o impacto que estas poderão ter no seu desenvolvimento. Eu própria assinei com vários colegas um artigo no público sobre este tema (que pode ser lido aqui), participei em algumas entrevistas e reportagens (que podem ser lidas aqui) e colaborei com o grupo Assim não é escola em que foi criada uma petição que já recolheu mais de 7000 assinaturas e que está à espera de ser discutida na assembleia da república. Pode ser assinada aqui
                            
O artigo do público serviu também para uma carta aberta à Ordem dos Psicólogos que foi assinada por quase 200 colegas em três dias. A Ordem dos psicólogos também escreveu uma carta aberta à DGS recomendando que essas medidas fossem revistas. 
Recentemente saiu também um artigo no público em que os vários pediatras também defendem que as crianças não podem continuar a ser sujeitas a estas medidas. (pode ser lido aqui) Hoje mesmo participei numa conferência da CPCJ de Odivelas em que os especialistas presentes também alertaram para o impacto negativo destas medidas e que pode ser visto aqui

Também falei com alguns deputados, professores, diretores de escola e muitos pais, sendo que, mesmo que nem todos concordem com a forma como devemos lidar com esta pandemia é muito claro que todos reconhecem que as regras rígidas que existem nas escolas neste momento, com tudo o que sabe hoje sobre a forma como esta doença afeta as crianças - não são nem necessárias nem desejáveis e podem  vir a ter consequências muito nefastas. 

Então é importante que façamos uma reflexão sobre porque é que isto continua a acontecer. E quando penso nisso não posso deixar de me lembrar de uma experiência muito importante feita nos anos 60 e 70 por Stanley Migram. 

Este investigador pediu a várias pessoas de diferentes idades e estratos sociais que participassem numa experiência que lhes dizia ter como objectivo estudar a forma como as pessoas aprendiam. Esses participantes ficavam numa sala de onde podiam ver uma outra pessoa, através de um vidro, a quem eram feitas perguntas. Cada vez que essa pessoa errava uma pergunta os analisadores diziam aos voluntários para carregarem num botão que lhes permitia dar um choque eléctrico a essa pessoa. Os voluntários não sabiam que a outra pessoa também fazia parte do estudo e que apenas fingia que estava a receber um choque. Era dito aos voluntários que deviam aumentar a intensidade dos choques com cada erro que a pessoa fazia e, a certa altura, a pessoa do outro lado do vidro começa mesmo a gritar e contorcer-se com dores. Mesmo assim, cerca de 65% das pessoas, quando a ordem era dada pelo examinador, era capaz de dar choques eléctricos de 450 volts, uma descarga que seria suficiente para causar a morte da outra pessoa

Este estudo teve muito impacto pela conclusão chocante de que a maioria das pessoas não se inibia de causar dor, sofrimento e até potencialmente a morte de outro ser humano, desde que a responsabilidade não fosse sua. Porque, no final do estudo, quando se falava com essas pessoas, o que elas respondiam era que estavam apenas a cumprir ordens e que o faziam porque lhes tinham pedido, queriam desempenhar bem a sua função, achavam que seria importante para o estudo ou porque confiavam na pessoa que lhes estava a dar a ordem. 

Isto foi usado, inclusivamente, para ajudar a explicar a forma como os nazis levaram a cabo o holocausto com a ajuda, colaboração e passividade de tantas pessoas que estavam também apenas a cumprir ordens. 

Então quando sujeitamos as nossas crianças e jovens a regras que podem ter um efeito muito negativo para o seu desenvolvimento também nos sentimos capazes de o fazer porque estamos apenas a cumprir ordens? 


Desconhecimento sobre as necessidades das crianças 


Acredito que uma boa parte disto também se relaciona com o facto de não reconhecermos as necessidades reais das crianças. Antes de tudo isto, na verdade, elas já não eram muito valorizadas. Por vezes penso que vivemos numa sociedade um pouco esquizofrénica no sentido em que, por um lado, se valoriza excessivamente uma autonomia forçada mesmo em etapas do desenvolvimento em ela não faz sentido - forçamos as crianças a dormir sozinhas, a irem para a escola, a deixar de mamar ou deixar a chucha mesmo que elas ainda não estejam preparadas para isso - mas depois não as deixamos ser autónomas naquilo em que mais precisam de o ser: na liberdade de brincar, de se movimentarem no espaço, de correrem riscos adequados à sua idade, de usufruírem livremente dos espaços públicos sem necessidade da presença constante dos adultos, de terem oportunidade de conhecer o seu corpo, os seus limites e os dos outros. Isto é feito, sobretudo, através da brincadeira livre, algo que é fundamental e que, infelizmente, antes mesmo da pandemia já parecia estar em risco de extinção. 

A verdadeira autonomia só acontece se existir um espaço de liberdade para as crianças. Essa liberdade, claro, só faz sentido quando existe uma base segura a que as crianças sabem que podem voltar. Os primeiros anos de vida precisam de ser dedicados à construção dessa base segura mas, essa base segura, só é realmente segura se também der liberdade de forma adequada à criança. 

Todas as crias, na natureza, passam os seus primeiros anos de vida a brincar. Através da brincadeira elas aprendem a desenvolver habilidades, aptidões, aprendem a conhecer o seu corpo, os seus limites, aprendem a saber de que é que são capazes e aprendem a lidar com os outros, a relacionar-se. A brincadeira também é fundamental para o desenvolvimento da motivação, da capacidade de aprendizagem. As crianças quando brincam livremente exercitam a sua curiosidade natural e é esta que deve estar na base de todos os processos de aprendizagem.

Também aprendem a descobrir o corpo e descobrir o corpo é o caminho para descobrir as emoções. Descobrir as emoções é aprender a lidar com elas e com o mundo. Muitos adultos têm medo das suas próprias emoções porque têm medo das sensações que elas provocam no corpo. Então, descobrir o corpo através da brincadeira, também ajuda a criança a familiarizar-se com o que sente e por isso torna mais fácil o seu contacto com as emoções. Até porque, na brincadeira, as emoções podem ser sentidas de uma forma segura, de uma forma menos ameaçadora, durante a brincadeira as crianças podem experimentar o medo, a raiva, a frustração, a tristeza e todas as emoções mais difíceis de uma forma um pouco mais leve, menos intensa e por isso mais segura. Essa aprendizagem é importante e fundamental para o seu bom desenvolvimento. Fala-se muito em educação emocional mas educar para as emoções não passa necessariamente por construir programas em que se fala sobre elas nas escolas. Passa por criar espaço e tempo para que as crianças as possam sentir num contexto de segurança. Primeiro é fundamental que as crianças se sintam seguras nas suas ligações e depois que lhes seja dada essa liberdade de explorar através da brincadeira. E nenhum programa de educação emocional fará sentido se existirem estas duas lacunas. Porque não é a falar de emoções que se aprende a lidar com elas mas é vivendo-as, sobretudo na infância. 

Provavelmente faltou aos adultos que se limitam a cumprir ordens sem as questionar um espaço para entrarem realmente em contacto com as suas emoções, para aprenderem a ser capazes de as reconhecer, acolher e valorizar. A brincadeira livre é o primeiro lugar onde isso pode acontecer mas depois é essencial que também haja uma relação segura com um adulto disponível onde elas poderão ser faladas, abordadas e mais facilmente estruturadas. 

A brincadeira livre também ajuda a calibrar o sistema de alarme. Brincar às lutas ou correr riscos faz com que o sistema de alarme seja activado. E o sistema de alarme precisa de ser activado, desta forma moderada que só é possível em condições de segurança, para que possa funcionar mais eficazmente. Na verdade o nosso sistema de alarme é relativamente frágil e fica facilmente desregulado se for usado excessivamente em situações demasiado intensas ou demasiado constantes, naquilo a que se chama o stress tóxico ou crónico mas também fica desregulado mais facilmente se nunca for exercitado. E a brincadeira é o momento ideal para este ser exercitado e, de certo modo, como que tonificado.

A brincadeira é também a forma por excelência das crianças libertarem a tensão acumulada, como já disse aqui várias vezes. Brincar é uma forma de libertar vapor, de deixar fluir as emoções para que elas não comecem a ficar acumuladas e não se tornem tóxicas. Na verdade os adultos precisam desse espaço de brincadeira também, embora a forma de brincar possa ser diferente. A brincadeira ajuda a manter-nos no presente e isso também tem um importante efeito tranquilizador e anti-depressivo. 

Então as crianças precisam mais do que nunca de ter tempo e espaço para brincar e temos a responsabilidade de lhes providenciar isso. E de cada vez que impedimos uma criança de brincar livremente, mesmo que possamos pensar que isto é apenas temporário, aquilo que estamos a fazer é a possibilitar que se instale um padrão em que deixamos de reconhecer essa necessidade e em que a própria criança também já não as reconhece. Porque, apesar da brincadeira ser algo natural e instintivo, a verdade é que também depende do hábito e precisa de certas condições para acontecer (com um sentimento de segurança e ausência de ecrãs durante uma boa parte do dia, por exemplo) Quando essas condições não existem ou quando privamos a criança de brincar é relativamente fácil que esse hábito se perca como infelizmente já se perdeu em demasiados casos. E quando o hábito se perde, fica perdida também uma boa parte daquilo que permite amadurecer realmente. Por isso cada dia que privamos uma criança de brincar livremente, ao ar livre de preferência, é um dia em que contribuímos para que se perca esse hábito tão fundamental para o seu desenvolvimento e um dia em que não estamos a contribuir para o seu amadurecimento. E sabemos que a infância e adolescência são períodos sensíveis para o desenvolvimento de muitas capacidades: uma janela de oportunidade para desenvolver competências que, quando não acontecem nesta altura, será muito mais difícil que venham a acontecer. 

A necessidade de brincar livremente, ao ar livre, durante uma boa parte do seu dia sempre foi bastante negligenciada e desvalorizada. Daí até se encurtarem os intervalos, ou se criarem regras limitadoras da brincadeira livre ou a fecharem os parques infantis talvez não vá uma distância tão grande. 


As experiências do conformismo de Asch 


Outras experiências famosas que se relacionam com a anterior e que também são muito relevantes para o momento social que estamos a viver são as experiências do conformismo de Asch que foram feitas já nos anos 50. Nestas experiências havia um grupo de pessoas numa sala e era pedido a essas pessoas que avaliassem o tamanho de algumas linhas apresentadas num ecrã. Nesse grupo havia apenas um voluntário que pensava que todos os outros também eram e a certa altura todos os outros começavam a dar uma resposta claramente errada. A grande maioria das pessoas, durante um bocadinho ainda tentava dar a resposta certa mas, ao fim de algum tempo cedia à pressão do grupo e acabava também por dar a resposta errada, ainda que este erro fosse óbvio. E esta pressão era tão forte que, em muitos casos, as pessoas chegavam mesmo a convencer-se que a resposta do grupo era realmente certa, porque não eram capazes de aceitar que tivessem escolhido uma resposta errada apenas por causa dessa pressão grupal. 
Só quando aparecia um aliado a dar também a resposta certa é que uma boa parte das pessoas já passava a ter capacidade de manter a sua resposta também. 

Esta experiência mostra bem como a pertença ao grupo e a aceitação são tão importantes para nós que podem até mudar as nossas crenças e a nossa perceção das coisas. 
E acredito que é também algo deste género que está a acontecer quando queremos convencer-nos que o que estamos a fazer está certo, ou que não poderia ser de outra forma, mesmo quando temos tantos especialistas a dizer que é errado. Então aqui também é importante que sejamos capazes de nos conectar com as nossas necessidades, de saber que está certo, é natural e até desejável que queiramos ser aceites e pertencer ao grupo mas o preço a pagar por isso não pode ser o de deixarmos de ouvir a nossa verdade. E, se nos ligarmos à nossa verdade, neste caso, não precisamos de muitos estudos nem investigações para sabermos que o que estamos a fazer às nossas crianças e jovens é profundamente errado. É errado privar uma criança da sua liberdade ou condicionar com regras rígidas o seu desenvolvimento, é errado fazer uma criança sentir que pode pôr em perigo os pais ou avós. Conheço o caso de uma criança que esteve fechada no quarto durante quatro semanas - duas em isolamento profilático no final do qual foi pedido que fizesse um teste que veio positivo e por isso ficou mais duas semanas em casa - e esteve uma boa parte dessas duas semanas fechada no seu quarto, com as refeições entregues num tabuleiro: os pais batiam à porta, pousavam o tabuleiro no chão e ela tinha que esperar que se afastassem para ir buscar a comida que depois voltava a deixar no chão, à porta do quarto sendo que o tabuleiro era imediatamente desinfetado antes de ser recolhido. 

Não precisamos de estudos nem de investigações para sentir que isto é profundamente errado. Basta que sejamos capazes de ouvir a nossa verdade, basta que sejamos capazes de reconhecer as necessidades das crianças, para sabermos que estamos a causar-lhes sofrimento, basta que sejamos capazes de ter alguma empatia para perceber que não temos o direito de fazer com que as nossas crianças e jovens se sintam como portadores ambulantes de um vírus mortífero para a sua família, basta que sejamos capazes de entrar um pouco em contacto com as nossas emoções para perceber que tudo isto está a ter resultados muito mais desastrosos do que o vírus de que tanto nos queremos proteger. 


O cérebro esquerdo e o cérebro direito

Ian McGilchrist é um psiquiatra que escreveu um livro que também acredito que ajuda a compreender uma boa parte do que se tem passado. Neste livro ele defende a tese de que vivemos numa sociedade em que se valorizam demasiado as capacidades do hemisfério esquerdo: a racionalidade, a linguagem, a objetividade e a análise dos detalhes, por exemplo. Isto acontece em detrimento das capacidades do nosso hemisfério direito, mais relacionado com a consciência corporal, com as emoções e com um visão mais global ou holística das questões. Neste momento somos confrontados com uma situação angustiante de um vírus que provoca sofrimento e o nosso hemisfério esquerdo imediatamente tomou conta da situação e tentou resolver tudo criando regras e mais regras e analisando tudo ao pormenor mas esquecendo-se da visão global das coisas e do impacto que estas regras têm na nossas emoções. 

Não podemos resolver a morte com regras, não podemos travar um vírus desta natureza com regras. Muito menos quando essas regras nos pedem para deixar de parte todo o nosso instinto, as nossas emoções, para negar a nossa natureza gregária e a necessidade que temos de estar juntos, de nos tocar e aproximar, de nos sentirmos seguros na companhia uns dos outros. 

Então, talvez seja altura de reconhecermos que não podemos resolver este problema através da lógica e da racionalidade porque estas só nos têm trazido novos problemas. Talvez seja altura de começarmos a dar mais espaço ao nosso hemisfério direito, de entrarmos mais em contacto com as emoções e de sermos capazes de olhar mais para o global. Porque se não o fizermos corremos o risco de continuar a olhar apenas para os detalhes e a ignorar toda a destruição global que estamos a causar à nossa volta. 
É altura de pararmos de pensar só em nós próprios, sim, mas também é altura de sermos capazes de assumir a fragilidade que existe no facto de sermos humanos e de precisarmos uns dos outros. E de aceitarmos que o nosso cérebro esquerdo não tem nenhuma solução válida para este problema. Só com o equilíbrio dos dois hemisférios é que poderemos encontrar forma de lidar com isto sem continuar a causar ainda mais destruição.

Ontem na conferência o Professor Carlos Neto, cujo trabalho admiro, afirmou que os nossos políticos não brincaram o suficiente e por isso são tão totós. Se calhar muitos de nós não brincaram o suficiente, por isso não tiveram oportunidade de desenvolver muito o seu hemisfério direito. Então, se queremos realmente um mundo melhor vamos dar espaço às nossas crianças para brincar, vamos dar-lhes tempo e espaço para entrarem em contacto com o corpo e com as emoções e talvez assim não voltemos a encontrar-nos neste buraco global em que estamos agora metidos.