quinta-feira, 9 de abril de 2020

Aprender a brincar

Neste momento as escolas estão-se a preparar para um terceiro período virtual mas, infelizmente, não acredito que esta seja a melhor opção.
Já têm sido muito faladas as dificuldades que isto apresenta às famílias com a gestão do teletrabalho, ou em famílias com vários filhos e poucos computadores ou a desigualdade também provocada pela inexistência de computadores em tantas casas.
Mas, para além de tudo isto que são questões importantes, também existem outras que têm sido menos debatidas mas que considero igualmente importantes.

Não acredito que o estudo através de um ecrã seja a melhor forma de aprender, sobretudo para os mais novos em que o cérebro ainda está em formação.

Sabemos já há algum tempo que o conteúdo de tudo o que vamos aprendendo muda a estrutura do nosso cérebro, construindo novas sinapses e redes neuronais em função das aprendizagens feitas. Mas, o que estamos mais recentemente a aprender é que a forma como aprendemos também molda o nosso cérebro tanto ou até mais do que conteúdo.

Já existem vários estudos que demonstram que ler o mesmo texto num ecrã ou no papel não tem o mesmo resultado. Em experiências feitas para avaliar isto verificou-se que as pessoas que liam no papel tinham mais facilidade em assimilar os conteúdos e perceber aquilo que estavam a ler do que aquelas que liam num ecrã. 

Sempre que lemos alguma coisa num ecrã, com ligação à internet a nossa mente precisa de fazer avaliações constantes, sobre toda a restante informação que não pára de chegar e que pode não ter nada a ver com o conteúdo do texto. Mas mesmo que a informação seja relevante para o conteúdo - como acontece quando os textos têm mais links, por exemplo -  a nossa capacidade de assimilação e concentração torna-se ainda mais reduzida. Isto acontece porque a nossa mente precisa de avaliar, primeiro se aquela informação é ou não relevante e depois se devemos ou não abrir o link. Isto pode parecer pouco mas a verdade é que para o fazermos precisamos de abrir outras partes da nossa atenção que quebram a concentração necessária e fundamental para assimilar um texto e pensar sobre ele de forma mais aprofundada. Por isso alguns estudos também demonstram que quanto mais rico, do ponto de vista digital, for o texto ou a informação transmitida menor será a nossa capacidade de a assimilar, ao contrário daquilo que tantas vezes temos tendência para pensar. Há uma tendência natural para pensarmos que um vídeo no youtube por exemplo é uma boa forma de fazer as crianças aprenderem algo sobre determinado tema. É verdade que um vídeo capta mais facilmente a atenção do que um texto, e um vídeo mais rico com mais música, cor e movimento chama mais a atenção do que outro mais pobre. Acontece que chamar a atenção não é exactamente o mesmo que aprender. E a forma com os ecrãs captam a nossa atenção deixa-nos num estado de semi-passividade que, na verdade, é contrário aquilo que é preciso para sermos capazes de aprender a pensar e não apenas meros receptores de conteúdos. Quando vemos um vídeo a nossa mente fica ocupada a avaliar todas as outras informações que não param de chegar e sobra menos espaço para se focar verdadeiramente naquele tema. Por isso hoje em dia temos é fácil termos acesso a muita informação mas esta acaba por ser superficial na maior parte das vezes.

Quando estamos a ler um livro, essas distracções não existem e por isso a nossa mente fica livre para se focar verdadeiramente no tema que está a ser tratado e acaba por ser capaz de memorizar e assimilar a informação de forma mais completa, ao mesmo tempo que temos mais capacidade para reflectir de forma mais profunda sobre aquele tema.

Mas, talvez até mais importante do que isto, é o que acontece quando estamos a ler no papel: a nossa mente está a aprender a manter o foco e isto também está associado a uma maior capacidade de gerir a nossa atenção o que, por sua vez, está associado a um maior bem-estar e satisfação. Quando estamos online existem constantemente distracções, a nossa capacidade de foco fica muito mais limitada, saltitamos constantemente de uma informação para outra e isto faz com que o cérebro perca a sua capacidade de se manter focado o que, por sua vez, está associado a muitos problemas de ansiedade e a um sentimento de agitação e mal estar constante.

Um dos grandes benefícios da meditação é justamente treinar essa capacidade de manter o foco e é esta capacidade que é responsável por uma boa parte dos sentimentos de bem-estar e tranquilidade que a meditação pode trazer. E isto é precisamente o oposto daquilo que acontece sempre que estamos online, em que, mesmo que estejamos a ler um texto ou a tentar aprender alguma coisa, a nossa mente tem de fazer essas avaliações permanentes que reduzem um pouco a sua capacidade de manter o foco. E quanto mais tempo passarmos a fazê-lo mais difícil se torna manter esse foco, mesmo quando já não estamos online.

Se isto é verdade para adultos, será ainda mais importante pensar nos efeitos que isto poderá ter nas crianças que estão ainda em fase de aprendizagem e formação e em que todas as experiências têm um um impacto ainda maior na formação do seu cérebro. 
Por isso não acredito que manter a aprendizagem através da internet seja o mais acertado para as nossas crianças neste momento.
Até porque quando falamos de crianças precisamos de saber que elas não aprendem unicamente com processos de reflexão, a ler ou a estudar. As crianças precisam de aprender a brincar, a mexer, a experienciar e isto tudo é muito mais difícil de fazer através de um ecrã. Além de que existe uma componente fundamental na aprendizagem que os ecrãs também não facilitam: a relação. As crianças aprendem sobretudo em relação. As crianças aprendem melhor quando gostam dos professores e quando os professores gostam delas e é mais difícil transmitir isso através de um ecrã.

Quando lemos um livro, porque a nossa mente fica mais focada e silenciada, também conseguimos criar uma proximidade emocional com o conteúdo mais facilmente do que num ecrã. E isto também é essencial na aprendizagem. Aprendemos melhor aquilo que nos toca do ponto de vista emocional. Memorizamos melhor as coisas que nos emocionam. As emoções transformam o cérebro e ajudam a desenvolvê-lo. As crianças aprendem essencialmente em relação. Estudos com crianças pequenas constataram que quando o mesmo conteúdo era transmitido pela mesma pessoa ao vivo ou através de um ecrã os resultados eram bastante diferentes: as crianças aprendiam muito melhor ao vivo. Da mesma forma também sabemos que as crianças pequenas que passam muito tempo a ver televisão têm mais dificuldades de linguagem, mesmo que até vejam programas educativos.

Por tudo isto, não acredito que a escola seja uma prioridade neste momento. 

Brincar é o mais importante 

O mais importante nesta altura é darmos aos nossos filhos um sentimento de segurança, através da relação que temos com eles. Se sentimos que fazer alguns exercícios escolares com eles nos ajuda a manter essa relação e é positivo para ambos, óptimo, podemos fazê-lo claro mas se, pelo contrário, como tantas vezes acontece, isso só servir para criar tensão e conflitos, então a aprendizagem formal da escola pode mesmo ficar para segundo plano. Até porque é muito difícil aprender quando estamos com medo ou ansiosos.

Acredito que, neste momento, a nossas prioridades precisam de ser apenas duas: preservar a relação que temos com as nossas crianças e deixá-las brincar. 

Porque é que a brincadeira livre é tão importante neste momento? Porque é através dela que as crianças podem processar muito daquilo que estão a sentir e a viver. Através da brincadeira as crianças encontram formas criativas e importantes de libertar a tensão e de descarregar os medos que possam estar a sentir. E encontram formas de integrar e processar tudo o que estão a viver. Por isso, neste momento, mais do que nunca precisamos é de criar espaço e dar-lhes tempo para brincar. Para brincarem livremente, sem interferências e sem julgamentos da nossa parte. Isto é válido tanto para os mais pequenos como para os mais novos e até para adolescentes e adultos. Com estes últimos as brincadeiras serão diferentes, mas é importante também que encontrem espaços de liberdade que lhes permitam entrar em contacto e assimilar tudo o que estão a sentir. Isto pode acontecer quando ouvimos música que nos ajuda a chorar e a libertar a tristeza, por exemplo, ou quando pintamos ou desenhamos para quem gosta de o fazer, ou quando dançamos ou qualquer outra coisa que nos faça sentir que somos capazes de trazer o foco para o presente, de entrar em contacto com as nossas emoções e de libertar o que estamos a sentir. E para as crianças a forma principal de fazer isto é brincar.

Por isso, neste momento, mais do que qualquer outra coisa é de brincar que precisam os nossos filhos. E criar as condições para a brincadeira aconteça tem de ser a nossa prioridade.


Condições para brincar 

É impossível obrigar alguém a brincar mas podemos criar condições para que a brincadeira surja espontaneamente e existem algumas condições essenciais para isso: primeiro as necessidades têm de estar satisfeitas e a necessidade mais importante é a da nossa presença, de se sentirem ligados a nós, depois precisam também de se sentir seguras porque é impossível brincar quando estamos em estado de alerta e depois é preciso que haja diariamente bastante tempo livre de ecrãs.

Neste momento é provável que seja mais difícil esses momentos de brincadeira acontecerem de forma espontânea porque as crianças podem estar mais alarmadas e inseguras, por isso temos de os preservar ainda mais. Para isso neste momento não acho que devamos estar preocupados com estudos e com escolas, porque essa preocupação traz mais uma carga de tensão que se irá juntar a todas aquelas com que já temos de lidar neste momento.

Além disso uma criança segura e com tempo para brincar, também é uma criança que tem  uma disponibilidade natural para aprender de forma mais livre. E as crianças aprendem a brincar também. Uma criança mais tranquila e mais segura, com tempo e espaço para brincar, também é uma criança que mantém a sua curiosidade natural que é um ingrediente essencial para que a verdadeira aprendizagem aconteça. E também é uma criança mais capaz de se sentar a ler um livro, por exemplo que, neste momento, me parece uma aprendizagem mais útil e positiva do que a dos conteúdos formais da escola.

Acho que pode ser útil manter o contacto com as escolas, que podem ir sugerindo alguns exercícios pontualmente mas, sobretudo, para manter a relação entre as crianças e com os professores. As crianças aprendem sobretudo em relação e são estas relações que, neste momento, mais do que tudo importa preservar. Muito mais do que fazer trabalhos de matemática ou português ou estudo do meio. São elas que alimentam de verdade o cérebro. Tudo o resto é secundário e pode ficar para segundo plano neste momento. Até porque se formos capazes de alimentar bem as nossas crianças, neste momento, com a relação que temos com elas e esses momentos fundamentais de brincadeira livre ao longo do dia, de certeza que mais facilmente elas conseguirão aprender todo o conteúdo académico  que ficou para trás quando for necessário fazê-lo. 

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