quinta-feira, 17 de julho de 2014

Como Lidar com o choro de um bebé

Todos sabemos que é praticamente impossível ignorar o choro de um bebé. Num estudo que o demonstrou de uma forma forma simples, os investigadores davam ás pessoas uma gravação de um bebé a chorar para que a ouvissem durante uns minutos e depois avaliarem o tempo que tinha durado aquele choro. Todas as pessoas julgavam que o choro tinha durado mais do que na realidade durara; na verdade, a grande maioria das pessoas avaliava a duração daquele choro como sendo 50% superior aquilo que era o seu tempo real. Isto demonstra bem como nos aflige este som, de tal maneira que o tempo até nos parece mais longo porque ficamos tão desesperados para que pare. E, qualquer mãe ou pai de recém-nascido sabe como cada minuto se arrasta e como cada minuto parece mais uma hora quando temos um filho que chora nos braços e não conseguimos fazê-lo parar. É suposto que assim seja. O choro é um sinal importante, que não deve ser ignorado. A natureza é sábia e o nosso instinto também. E o instinto de qualquer pai ou mãe de um bebé que chora é olhar para ele, pegar-lhe ao colo e tentar perceber o que se passa.

O choro como forma de comunicar

O choro do recém nascido é um sinal importante de que algo pode não estar bem. Os seres humanos nascem com um grande grau de imaturidade e, por isso, estão totalmente dependentes dos seus cuidadores para poderem sobreviver. Como os bebés não sabem falar, precisam de ter algum meio de comunicar que lhes permita alertar os seus cuidadores sempre que se sentem em risco. E, como seres altamente imaturos que são, os bebés ficam totalmente dependentes desta proximidade com os cuidadores por isso, o seu choro, é  uma resposta instintiva que serve justamente para os aproximar e para lhes pedir que prestem atenção e que fiquem por perto. O choro é realmente um mecanismo de alerta que não pode e não deve ser ignorado. Primeiro porque, se o bebé chora, é porque realmente alguma coisa não está como deveria estar com o seu organismo, alguma coisa precisa de ser alterada. Segundo porque se o bebé nasce programado para confiar nos outros e para estabelecer relações é fundamental para a sua saúde mental, para que seja capaz de estabelecer relações e para que aprenda a confiar nos outros sentir que o seu choro é ouvido e atendido, mesmo que haja casos em que o pai ou a mãe não o conseguem fazer parar. É verdade que há casos em que, à custa de tanto ser ignorado, o choro pode quase desaparecer mas isto significa apenas que o bebé desistiu de uma resposta que é vital para a sua sobrevivência e para o seu crescimento e esta desistência pode ter consequências muito graves no seu desenvolvimento que já foram explicadas neste artigo: Razões para não deixar um bebé a chorar sozinho

Acontece que, na nossa sociedade, crescemos cada vez mais desligados de nós mesmos, dos nossos instintos e daquilo que é natural. Então habituamos-nos muitas vezes a pensar que é natural um bebé chorar. Que não faz mal deixá-lo chorar um pouco, que é mesmo assim. É tão natural que, por vezes, se chega ao extremo de achar que precisamos de o deixar chorar um pouco para que ele se desabitue de o fazer. Para que se desabitue de contar connosco, para que se desabitue de confiar nos seus instintos e nos seus próprios mecanismos de sobrevivência, para que se desabitue de pensar que pode confiar no mundo e, acima de tudo, para que se desabitue de se sentir seguro com os seus pais e consigo mesmo.

Quando os bebés choram é normal que o instinto dos pais lhes diga que algo não está certo. Acontece que, na nossa cultura, há muitas outras vozes que nos dizem que não faz mal um bebé chorar, que os bebés choram, que é mesmo assim, que é normal chorarem e que nem sempre têm uma razão para o fazer. Se, por um lado, esta atitude pode retirar alguma pressão dos ombros do pai e da mãe que assim se sentem menos culpados por não serem capazes de evitar o choro do filho, por outro lado, descredibiliza e desvaloriza o instinto que nos diz que nenhum bebé chora sem razão e que, se existe uma razão, quer dizer que existe uma causa para o choro que pode e deve ser encontrada. E diminui também a nossa confiança em nós mesmos, como mães ou pais, porque não seguimos o nosso instinto e a nossa confiança no nosso filho, porque não aceitamos as suas manifestações e não acreditamos no seu comportamento que nos demonstra que algo não está bem com ele. 

Então onde podemos procurar essas causas e como lidar com elas? 

Há várias causas que se podem procurar para o choro do bebé. Deixo aqui algumas sugestões de como lidar com cada uma delas. 

Temperatura - Em relação ao frio e calor, basta lembrar que os bebés são um pouco mais sensíveis ao frio do que nós. A melhor forma de termos a certeza de que o bebé está confortável é mesmo mantê-lo em contacto connosco, porque o contacto com o corpo da mãe ou do pai ajuda o bebé a regular a sua temperatura corporal. Este é um mecanismo que pode mesmo ajudar a salvar vidas no caso dos bebés prematuros que ainda são demasiado imaturos para se auto-regularem. Mas, mesmo nos bebés de termo, a possibilidade de ter o corpo da mãe ou do pai perto do seu faz com se torne muito mais fácil manter a temperatura do organismo dentro dos níveis adequados. O que significa que o bebé precisa de gastar muito menos energia para o conseguir. Isto é válido mesmo no caso de dias com temperaturas muito elevadas, porque, nesses dias o nosso corpo também precisa de se ajustar e auto-regular para manter a sua temperatura. Por vezes as mães têm medo que os bebés aqueçam demasiado se estiverem junto do seu corpo em dias quentes mas, a verdade, é que este contacto ajuda o organismo do bebé a fazer os ajustes necessários para suportar tanto o calor como o frio.

Fome – para ter a certeza de que o bebé não tem fome, o mais fácil é mesmo oferecer sempre a mama ao bebé quando ele chora. E não olhar para as horas nem para o tempo que passou desde a última mamada. Se o bebé não tiver fome e estiver a chorar por outro motivo qualquer, ele próprio, acabará por largar a mama.  Por vezes as mães têm receio de que o bebé se habitue demasiado a contar com a mama se lha dão sempre que chora. Mas é essencial que o façam, principalmente com recém nascidos. Porque os bebés não têm horas para ter fome e tanto lhes faz se mamaram há três horas ou há três minutos. Pode haver alturas que simplesmente precisam de mamar mais. Outras vezes apenas pegam na mama alguns segundos porque tinham sede e queriam mesmo só aquele leite mais aguado do início. Outras vezes não têm fome nem sede mas a sucção é muito importante para um bebé e a mama é o sítio adequado para a treinar. Muito mais do que qualquer substituto de plástico. A mama não serve só para matar a fome do corpo mas também serve para matar a forme de contacto, de amor, de conforto. Mamar é o mais parecido que o bebé encontra com estar dentro do útero da mãe outra vez e por isso também é uma excelente forma de acalmar um bebé que está agitado por outros motivos, mesmo que não tenha fome. E, nestes casos, se lhe parecer que não faz muito sentido dar a mama cada vez que o bebé chora, pergunte-se então que sentido fará dar uma chucha, um objecto de plástico que não tem nenhum significado afectivo, nem nutritivo e se limita a preencher a sua necessidade de sucção de forma desprovida de calor e de afecto.
É importante também estar atento aos primeiros sinais de fome - como procurar a mama ou chupar os dedos, por exemplo - e não esperar que o bebé chore para lhe dar de mamar, porque o choro é um sinal de que a fome já é tanta que o bebé já ficou agitado e ansioso, e isto pode até pode dificultar um pouco a mamada. 

Fralda suja – hoje em dia, com as fraldas descartáveis, o desconforto de ter a fralda com xixi já é muito reduzido. Mesmo com as reutilizáveis, de pano, há sistemas que absorvem bem o xixi e, por isso, o bebé não fica com a sensação de ter a fralda molhada que pode causar desconforto. Assim, já não é tão provável que o facto de ter a fralda com xixi faça um bebé chorar mas, de qualquer modo, é sempre um factor a ter em conta e que pode provocar incómodo a bebés mais sensíveis, sobretudo no caso das fezes.

Necessidade de colo – aqui é que muitas vezes os pais começam a desvalorizar o choro do bebé. Quando percebem que não tem fome nem sede, nem frio ou calor, nem a fralda suja, começam a achar que o seu choro não deve ser levado a sério e, muitas vezes, não acreditam que a necessidade de colo é tão importante como todas as outras. É verdade que um bebé pequeno tem uma grande necessidade de estar em contacto com a mãe ou o pai. Esta necessidade é tão real como qualquer uma das que já mencionámos e não deve ser menosprezada. Alguns bebés manifestam-se mais nesse sentido, são um pouco mais activos na procura deste contacto e não se contentam se não o tiverem quase constantemente. Mas todos os bebés têm esta necessidade. Alguns autores defendem que, os primeiros nove meses da vida de um bebé devem ser chamados de exterogestação. Isto quer dizer que o bebé precisa de continuar a desenvolver-se fora do útero materno - porque a sua cabeça nunca passaria pela pélvis da mãe se continuasse a desenvolver-se lá dentro - mas que precisa de um ambiente o mais parecido possível com o útero. E essa semelhança consegue-se sobretudo mantendo o bebé em contacto com o corpo da mãe ou do pai. Alguns autores recomendam que se embrulhe bem o bebé, para que ele se sinta contido como no útero, ou que se use um secador de roupa ligado para produzir um som semelhante ao que ele ouvia na barriga da mãe. Mas, o mais importante e mais simples de tudo é mesmo manter o bebé junto ao corpo da mãe. Isto pode ser feito através do babywearing que nos permite manter o bebé junto a nós ao mesmo tempo que continuamos a viver a nossa vida e a fazer algumas coisas que precisem de ser feitas. (Ler artigo sobre os benefícios do babywearing e babywearing II - questões práticas)

O organismo do bebé regula-se em função do organismo da sua mãe, quando está junto desta. Por exemplo, já dissemos que os bebés regulam mais facilmente a sua temperatura corporal se estiverem junto do corpo da mãe e a sua respiração também adopta um ritmo muito semelhante ao da mãe quando estão juntos. Na verdade, alguns investigadores, como James Mckenna, defendem que este é o mecanismo que está na base da diminuição do risco de morte súbita quando o bebé dorme junto da mãe: porque nos bebés pequenos o aparelho respiratório ainda é muito imaturo e, esta imaturidade, pode originar paragens respiratórias que levam mesmo à morte. Se o bebé estiver em contacto com a mãe é como se o seu organismo se deixasse influenciar pelo desta e já foi observado que, nestes casos, o seu ritmo respiratório passa a seguir um padrão mais estável e seguro.

As neurociências começam também a descobrir que o sistema nervoso dos bebés parece deixar-se influenciar e regular pelo dos seus pais. Isto quer dizer que num bebé aflito, que chora e está em stress, a presença de um adulto tranquilo e seguro faz com o que seu sistema nervoso, de algum modo seja influenciado pelo do adulto de forma a que aprenda a regular-se muito mais facilmente.
Então aquilo que já sabemos é que um bebé sozinho, isolado, sem a presença física de um adulto é um bebé que precisa de despender muito mais energia para conseguir manter o seu organismo em bons níveis de funcionamento. Isto quer dizer que o contacto físico com os pais é mesmo uma necessidade fundamental, sobretudo, em períodos de maior tensão, de maior estimulação ou cansaço.

Sono - um bebé com sono, é um bebé cansado e, esse cansaço - tal como acontece com os adultos - diminui muito a sua tolerância a todo o tipo de estímulos. Acontece que é natural que um bebé não consiga adormecer sozinho, mesmo quando tem sono. O sono é um momento de vulnerabilidade, de entrega e, por isso, é fundamental que o bebé ou criança se sintam seguros para adormecer. E a melhor forma do bebé se sentir seguro é, mais uma vez, ao colo da mãe ou do pai. Também é importante que os adultos comecem a ser capazes de ler os primeiros sinais de sono e cansaço no bebé, como esfregar os olhos, bocejar, pouca vontade de interagir, por exemplo. Porque se estes não forem respeitados, o bebé pode começar a ficar tenso e, quando esta tensão surge significa que aumentam os níveis de cortisol no sangue. Uma hormona que influencia os nossos ciclos de sono mas que também tem um papel importante na resposta ao stress. Então, quando estes níveis aumentam, o bebé começa a ficar mais ansioso e agitado e torna-se muito mais difícil adormecer. Nestes casos, é importante que o adulto se mantenha calmo e em contacto com a criança para ajudar o seu organismo a retomar o equilíbrio. Por vezes ajuda passear um pouco com o bebé ao colo, ou num porta-bebés recreando os movimentos do útero. Sempre que passou muito da altura certa para o bebé dormir é natural que se torne mais difícil adormecê-lo e também é muito natural que os sonos sejam mais curtos, porque quando a concentração de cortisol no sangue é elevada, o organismo entra num estado de alerta. 
Por causa da influência que o organismo da mãe exerce sobre o do bebé é mesmo importante que esta se mantenha calma quando está a tentar adormecê-lo. Na verdade, por causa desta influência - como muitos pais descobrem sem querer - uma das formas de adormecer um bebé é mesmo pô-lo no nosso colo e dormirmos também. 

Dores – a maior parte das vezes aquilo a que os pais e pediatras chamam cólicas não têm propriamente uma origem física mas são fruto do cansaço que o bebé acumulou ao longo do dia e do stress provocado pela dificuldade e cansaço de tentar manter o seu organismo a funcionar de forma equilibrada sem a presença e o contacto dos pais ao longo do dia. Sobretudo se o dia foi cheio de estímulos e os pais estiveram pouco presentes, é muito natural que o bebé, ao final do dia, se mostre cansado e com mais dificuldade em se auto-regular sem a presença dos pais, porque já gastou muita energia a tentar fazê-lo sozinho o dia inteiro. E, por vezes acontece que, o cansaço e a tensão acumuladas foram tantas que, mesmo a presença e o contacto físico com os pais ainda podem levar alguns minutos até fazerem efeito e até que o bebé consiga ficar mais calmo. Isto será ainda mais demorado se o pai ou a mãe que estão com o bebé ficarem também nervosos ou agitados e, por isso, não forem capazes de ser um bom modelo para que o organismo do bebé se deixe influenciar e regular no sentido de recuperar o equilíbrio. Porque realmente tudo indica que, de algum modo, os bebés aprendem através desta modelagem que acontece de forma inconsciente e subtil em que o organismo mais forte e mais capaz dos pais influencia fortemente o organismo do bebé que, por ainda ser imaturo, é como se precisasse de pistas para aprender as direcções a seguir.
Algumas doenças, como otites, ou procedimentos médicos também podem causar dor ao bebé. Nestes casos a presença física e a disponibilidade da mãe também são essenciais para que o bebé aprenda a gerir o stress provocado por essas situações. Na verdade esta presença da mãe ou do pai também ajudam o bebé a lidar com a dor na medida em que contribuem para libertação de endorfinas e de dopamina, hormonas que estão associadas a situações de prazer e bem-estar, ajudando assim o organismo do bebé a diminuir o efeito prejudicial das hormonas libertadas com o stress provocado por essas dores e contribuindo mesmo para uma diminuição dos seus níveis de dor. Mesmo com crianças mais velhas sabe-se que, quando há uma maior segurança na relação da criança com os pais, há uma maior tendência para que se encontrem em maior quantidade na sua corrente sanguínea estas hormonas que podem ter um papel importante na diminuição dos seus níveis de dor e do stress provocado por alguns desafios.

Algumas vezes também pode acontecer que o bebé tenha algumas dores que, na maioria das vezes são, causadas por alguma alimento a que o bebé seja intolerante e que a mãe consome, passando assim no seu leite. Uma grande maioria das vezes este alimento são os lacticínios a que boa parte dos bebés não reage bem e que, se a mãe comer, irão passar através do seu leite. Mas, nestes casos há, quase sempre, outros sintomas associados: o bebé terá a barriga inchada, gases, pode haver alturas em que tem vontade de mamar mas não consegue fazê-lo porque começa a chorar com dores quando tenta mamar, podem surgir diarreias, refluxo, muitas vezes estes bebés têm um peso baixo e dificuldade em engordar, problemas de pele, etc. E, nestes casos também o que acontece é que, em vez de desaparecerem os sintomas, quando o bebé começa a comer esses mesmos alimentos tudo terá tendência para se agravar. Nestes casos a melhor forma de ter a certeza de que se está mesmo perante um caso de dores provocadas por alguma intolerância é eliminar totalmente esse ingrediente da alimentação da mãe pelo menos durante uma semana, o tempo mínimo para que desapareçam todos os sintomas.

Ansiedade por parte da mãe – nos primeiros tempos de vida os bebés vivem num estado de fusão total com a mãe. E, como já vimos, o seu organismo precisa mesmo desse estado de fusão para aprender a auto-regular-se. Então isto significa que o bebé também está muito permeável a todas as emoções da mãe. E, muitas vezes, não basta termos em conta apenas as necessidades do bebé para lidar com o seu choro. É fundamental que olhemos também para as da mãe. Se a mãe estiver muito ansiosa ou deprimida irá transmitir essas emoções ao seu filho e ele acabará por expressá-las da única forma que sabe: chorando. Então, por vezes, a melhor forma de lidar com o choro de um recém-nascido passa também por perceber se a sua mãe tem as condições necessárias para que não se sinta demasiado ansiosa, agitada ou deprimida enquanto cuida do seu bebé. Para que possa servir como um modelo ajustado e adequado para que o seu organismo imaturo possa aprender a regular-se. Se nos parece que o bebé tem tudo o que já  foi referido e não encontramos outras causas para o seu choro, por vezes, a única forma de lidar com ele é mesmo cuidar da mãe. Procurar perceber se há alguma coisa que a esteja a deixar particularmente ansiosa,
agitada ou deprimida e se há alguma coisa que se possa fazer para melhorar a situação. 

Em resumo: o mais importante é darmos ouvidos ao nosso instinto e prestar atenção ao choro do bebé, não o desvalorizar e responder sempre com a nossa presença física e disponibilidade emocional, ensinando-o que pode confiar em nós e nos seus próprios recursos para alterar aquilo que precisa de ser mudado. E, a verdade é que, ao contrário do que demasiadas vezes somos levados a pensar, para um bebé que tem tudo isto o choro frequente não é tão natural assim. A tendência é para que os bebés que vêem as suas necessidades satisfeitas com regularidade se tornem bebés que passam a chorar muito pouco e que demonstrem até uma maior tolerância em situações de stress que aconteçam ocasionalmente. 

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Estarmos presentes com os nossos filhos

Todos sabemos que as crianças precisam da atenção dos pais. Para uma criança, sentir a presença dos pais, é tão essencial como ser alimentada ou protegida do frio ou calor. Com os bebés esta atenção passa muito pela presença física que, nos primeiros meses, é mesmo essencial. Mas, à medida que as crianças vão crescendo, esse contacto físico - que deve ser quase constante nos primeiros meses - vai, gradualmente, começando a tornar-se um pouco mais espaçado. E, se tudo estiver a correr bem, as crianças vão, naturalmente, encontrando outros interesses no mundo para além do pai e da mãe. 

Acontece que, muitas vezes, principalmente com as crianças mais crescidas, caímos no erro de pensar que essas novas fontes de interesse podem substituir a nossa presença. Ou pensamos que, como elas já se entretêm com outras coisas, podemos até estar presentes do ponto de vista físico mas sem estarmos verdadeiramente presentes do ponto de vista emocional, porque vamos aproveitando para fazer outras coisas, como vir à internet, ao facebook, falar ao telefone, arrumar a casa, etc. 

Outras vezes o que acontece é que até gostaríamos de estar mais presentes mas sentimos que não somos capazes porque não podemos deixar de pensar nas coisas que ainda temos para fazer, ou de aproveitar para fazer algumas dessas coisas ou porque, simplesmente, não estamos habituados a estar no presente como as crianças naturalmente estão. Então podemos sentir que não é suficientemente estimulante ou interessante para nós tentarmos estar no mundo delas, podemos sentir que é aborrecido repetir o mesmo jogo vezes sem conta, ou ler a mesma história até já sermos capazes de a repetir de cor e salteado. 

Acontece que, mesmo com crianças mais velhas, a nossa presença é fundamental e faz toda a diferença do mundo. É através dessa presença que as crianças se sentem verdadeiramente vistas, ouvidas, acolhidas. É essa presença que lhes dá o sentimento de pertença e de que realmente fazem parte das nossas vidas que é essencial para que cresçam com a confiança e segurança de se sentirem dignas do nosso amor e de que estão no lugar certo. 

As crianças aprendem a ver-se a si mesmas através dos nossos olhos. Somos como uma espécie de espelho, através do qual os nossos filhos aprendem quem são. Então é muito importante que esse espelho lhes mostre que são pessoas importantes, dignas do nosso amor e da nossa atenção. E, a melhor forma de lhes mostrarmos isso, é simplesmente estando presentes. Quando não estamos presentes é como se lhes disséssemos que não são suficientemente importantes ou interessantes para cativar a nossa atenção. Mesmo que não seja nada disto que lhes queremos dizer. 

Mas estarmos verdadeiramente presentes e disponíveis nem sempre é fácil e, muitas vezes, não sabemos bem como fazê-lo. 

O mindfulness é um estado de atenção que pode ser traduzido como Atenção Plena e que é uma forma de treinarmos a nossa mente a estar mais presente, sem os julgamentos e as análises que normalmente surgem de forma espontânea e constante. (ver artigos sobre este tema aqui e aqui) Esse estado aprende-se melhor com uma prática de meditação formal mas o objectivo é que passe a ser aplicado a toda a nossa vida diária. E os momentos com os nossos filhos são uma excelente altura para treinar esta capacidade de simplesmente estamos presentes, sem julgamentos. 

A nossa presença total é mesmo o melhor presente que podemos dar um filho. É essa presença que nos permite sentir ligados à outra pessoa. É essa presença que pode fazê-los crescer e florescer no nosso amor e no conforto de se sentirem plenamente acolhidos por nós. 

Modelagem emocional e neuronal

Quando uma mãe está grávida, o bebé que tem dentro de si, é uma outra pessoa mas, de certo modo, ainda não o é completamente, ainda faz parte dela. É uma pessoa separada que começa a formar-se mas, no início das nossas vidas, ainda sentimos a vida praticamente só através daquilo que as nossas mães sentem. Quando o bebé nasce começa a formar a sua individualidade que, nos primeiros meses de vida, ainda quase não existe. Durante os primeiros tempos fora da barriga o bebé reflecte as emoções e sentimentos da mãe de uma forma ainda muito intensa. Só com o passar dos meses é que o bebé começa a diferenciar as suas emoções das de quem o rodeia. 

Alguns estudos mostram que os bebés precisam de estar em contacto com a mãe ou com o pai para regular o seu próprio organismo. A temperatura do bebé, por exemplo, é mais facilmente mantida se este estiver em contacto com o corpo da mãe o que significa que, através deste contacto, o bebé precisa de gastar menos energia para manter uma temperatura corporal estável. Este mecanismo é um dos responsáveis pelo sucesso do contacto pele com pele para salvar vidas de bebés prematuros. 

Da mesma forma também o sistema neurológico do  bebé é regulado pela presença da mãe ou do pai. Em relação às emoções - que são processadas no sistema límbico - vários investigadores já afirmam que a presença do pai ou da mãe e a ligação que existe entre estes e a criança, ajuda-a a regular o funcionamento do seu próprio sistema límbico e das suas emoções. É por isto que se torna fundamental a presença de um adulto que se mantenha calmo quando a criança está descontrolada, porque de facto, é como se o nosso sistema límbico - ao manter o seu estado de equilíbrio- ensinasse o da criança a regular-se e a voltar a um estado de equilíbrio. Quando a criança está num estado de desequilíbrio e não tem a presença de um adulto que a ajude, essa regulação acaba por acontecer mas não da forma mais eficaz. Quando as crianças são entregues a si mesmas em alturas de descontrolo o que acontece é que o seu sistema encontra a saída mais fácil para lidar com aquela emoção que, a maior parte das vezes, consiste numa espécie de desligar emocional que pode causar vários bloqueios e contribuir para um afastamento das emoções que se mantém pela idade adulta. Quando os pais estão presentes, disponíveis e calmos, a criança tem oportunidade de aprender a integrar aquela emoção e a passar de um estado de descontrolo para um estado de equilíbrio sem ter de bloquear ou de se desligar das suas emoções. 

Não se sabe exactamente como é que isto funciona mas o que é certo é que existe realmente uma espécie de modelagem, ao nível neuronal e do sistema nervoso, que faz com que as crianças aprendam a auto-regular-se através do contacto com os seus pais. Por isso também é importante que os pais sejam capazes de estar em contacto com as emoções da criança e de manter o seu próprio equilíbrio interno mesmo quando a criança está totalmente descontrolada. E aqui o mindfulness também pode ser uma ajuda preciosa porque nos ensina a aceitar e a acolher as nossas próprias emoções. O que acontece muitas vezes é que o comportamento descontrolado dos nossos filhos desperta em nós algum medo e alguns bloqueios que são fruto dos nossos próprios condicionamentos de infância e que, a prática do mindfulness nos poderá ajudar a conhecer e a ultrapassar. 

Os laços invisíveis que nos unem

Existem entre nós alguns canais de energia que nem sempre são visíveis ou reconhecidos. 

Quando fiz o meu mestrado, tive uma aula com um investigador inglês, chamado Rupert Sheldrake, que tem um trabalho muito interessante em que demonstra que todos os seres vivos possuem aquilo a que chama campos mórficos e que esses campos interagem entre si. Este investigador procurou demonstrar as suas teorias com experiências simples mas que mostram como todos estamos ligados. Uma das suas experiências mais célebres procurou demonstrar a existência de algo a que chamou the sense of being stared at - a sensação de que estamos a ser observados. Todos nós temos a experiência de querer observar alguém discretamente num transporte público, por exemplo, e de não conseguirmos fazê-lo porque a pessoa percebe sempre que estamos a olhar para ela. Sheldrake testou esta sensação com várias pessoas, em diferentes contextos, centenas de vezes, concluindo sempre que a probabilidade de sabermos que alguém está a olhar para nós é muito superior àquela que seria de esperar se isto se devesse apenas ao acaso. Este investigador fez também algumas investigações sobre transmissão de pensamentos, pedindo a pessoas que ligassem para outras ao acaso, em experiências em que quem atendia o telefone tinha, primeiro, de escrever quem achava que estaria a ligar-lhe. Nestas experiências o que Sheldrake observou foi que, quanto mais próxima fosse a ligação entre a pessoa que estava a ligar e a que estava a atender, maiores eram as probabilidade de que a pessoa que atendesse soubesse quem estava a ligar. 

Então isto demonstra que a ligação que estabelecemos com os nossos filhos cria realmente um canal para que algumas informações passem entre nós. 

Sempre que temos uma ligação muito forte com alguém criamos uma espécie de ressonância neuronal com essa pessoa que é muito importante para o nosso bem-estar. Isto é algo que acontece também em psicoterapia em que algumas investigações já observaram que, quando o terapeuta e o cliente estão em perfeita sintonia, as suas ondas cerebrais criam uma ressonância e até as suas expressões e posturas corporais se tornam quase idênticas. Na verdade é justamente esta presença total, aberta e livre de julgamentos que torna a relação terapêutica algo tão especial e poderoso. O facto de sentirmos que temos alguém, naquele momento totalmente disponível para nós, muitas vezes é, só por si, quase suficiente para ajudar a cicatrizar essas feridas da nossa infância em que sentimos falta justamente dessa presença. Carl Rogers, o pai da terapia centrada no cliente e uma figura central da Psicologia Humanista, dizia que a sua presença na relação terapêutica era mesmo o elemento chave para todas as mudanças que ocorriam na pessoa. Porque, infelizmente, muitos de nós cresceram sem nunca sentirem essa presença curadora e fundamental. Por isso precisamos de a procurar num consultório, numa relação terapêutica, onde nos sintamos seguros e livres para aprendermos a sermos nós mesmos. 

Rogers defendia também que, para uma criança crescer feliz e para que tenha oportunidade de desenvolver todo o seu potencial precisa de sentir o amor incondicional dos seus pais e a nossa presença genuína é uma das formas mais eficazes de comunicarmos esse amor. 

Os seres humanos nascem prontos e a precisar de estabelecer ligações. A presença dos nossos pais é a primeira forma de sentirmos que uma ligação foi estabelecida. Quando nos dispomos a estar presentes com os nossos filhos é como se abríssemos um canal entre nós e lhes déssemos a possibilidade de descansar nessa presença. Quando essa presença não é sentida de forma regular e constante as crianças precisam de encontrar formas de a procurar e, se ainda não tiverem desistido de vez - porque nos casos mais extremos é o que acontece - as crianças podem ser muito exigentes e criativas nas suas tentativas de nos levarem a estar mais presentes. E essas tentativas muitas vezes passam por vários problemas de comportamento que os nossos filhos percebem que servem para nos fazer olhar para eles. Porque esse olhar, mesmo que venha cheio de reprovações e julgamentos, é tão necessário, tão essencial para a sua sobrevivência afectiva e emocional que eles irão fazer tudo o que estiver ao seu alcance para o conseguirem. 

Meditação para crianças 

Então se formos capazes de lhes dar essa presença, sem que eles tenham de sentir que precisam de lutar por ela, podemos vê-los verdadeiramente a florescer. Sermos capazes de dar aos nossos filhos a capacidade de estarmos presentes de corpo e alma, de os vermos verdadeiramente e de os acolhermos é a melhor oferta que podemos fazer-lhes. E, muito mais do que procurar aulas de meditação ou de yoga para crianças, se formos capazes de estar presentes de forma verdadeira e regular nas suas vidas, eles aprenderão que vale a pena viver no presente e, mais importante ainda que vale a pena olharem para dentro de si mesmas que é justamente uma das coisas que a meditação nos ensina.

Hoje em dia fala-se muito em aulas de meditação para crianças mas é preciso termos consciência de que estas práticas podem ser muito válidas e com muitos benefícios mas não servem para resolver muitos dos problemas que os pais, tantas vezes, querem que resolvam. No caso das crianças muito ansiosas, agitadas, inseguras ou com problemas de comportamento e de integração os pais, por vezes, procuram na meditação ou no yoga formas de resolver esses problemas. E a verdade é que, apesar destas práticas terem benefícios, quando falamos de crianças, não há nada que tenha tantos benefícios como sentir a presença dos pais de forma incondicional e autêntica. 

Daniel Siegel um psiquiatra com muitos livros na área do mindfulness defende a ideia, apoiada em várias investigações, de que a prática do mindfulness ou atenção plena, activa no cérebro os mesmos circuitos neuronais que estão activos quando existe um apego seguro. Isto quer dizer que, nos adultos, esta prática tem um efeito de ajudar a corrigir a falta dessa presença na nossa infância. Porque, quando praticamos mindfulness o que fazemos é simplesmente voltar toda a nossa atenção para a nossa própria experiência, sem julgamentos, ou seja, estamos a dizer a nós mesmos que somos dignos e merecedores dessa atenção. Com o mindfulness treinamos-nos para ser capazes de dar a nós mesmos aquilo que muitas vezes sentimos faltar na nossa vida: essa presença especial, única, incondicional acompanhada de uma atitude de aceitação de de acolhimento para com toda a nossa experiência

Então, mais do que esperarmos que os nossos filhos aprendam a fazer isto por si mesmos, é fundamental que sejamos capazes de o fazer por eles. Aprender a meditar ou a fazer yoga tem outros benefícios que podem ser úteis para as crianças mas não podemos olhar para estas práticas como forma de resolver o problema que nós criámos em primeiro lugar. Sim, porque acredito que uma criança ansiosa, insegura, com problemas de comportamento ou de aprendizagem não ficou assim por acaso, mas por falta dessa presença incondicional. Porque provavelmente não teve oportunidades suficientes para se sentir verdadeiramente acolhida e aceite pelos seus pais. Então, não vale a pena procurar lá fora soluções para um problema que foi criado cá dentro. Basta experimentarmos estar presentes com os nossos filhos para vermos a diferença impressionante que esta presença pode fazer no seu comportamento. 

Mas, muitas vezes, não conseguimos estar presentes simplesmente porque nunca aprendemos a fazê-lo. Então nestes casos são os pais e não os filhos que devem aprender a praticar yoga ou meditação. Já houve mães que me perguntaram se eu achava indicada a prática de meditação para os filhos porque eram agitados ou ansiosos e o que lhes respondi foi que achava mais importante que encontrassem elas formas de praticar, para depois poderem simplesmente estar mais disponíveis para os filhos. Porque acredito sinceramente que esta disponibilidade verdadeira resolveria noventa por cento - para não dizer mais - dos problemas dos nossos filhos. 

Mas não podemos dar aquilo que não temos por isso, em primeiro lugar, precisamos de nos perguntar se existe alguma parte de nós que precise de ser aceite, acolhida, que precise de ser alimentada e nutrida porque só assim poderemos alimentar e nutrir os nossos filhos verdadeiramente e acolhê-los em tudo aquilo que são. Mostrar-lhes que toda a sua experiência é válida, importante, digna de amor e de ser acolhida e aceite. E só com essa certeza é que os nossos filhos podem crescer de forma plena, inteira e verdadeiramente realizada. 

E para além de todos os benefícios que esta prática de estarmos presentes tem para os nossos filhos também é importante lembrarmos aqueles que pode ter para nós. Porque não há nada mais gratificante do que sermos capazes de olhar para os nossos filhos e deixarmos-nos simplesmente ficar presentes no amor que sentimos por eles, nos sentimentos tão especiais que só um filho consegue despertar nos pais. E a ciência também já mostrou que esses bons sentimentos - que muitas práticas de meditação se dedicam também a cultivar - podem mesmo ter resultados espantosos na nossa saúde e na nossa satisfação com a vida. 


quarta-feira, 4 de junho de 2014

Pais Zangados

Já falámos neste artigo de como lidar com a zanga quando ela surge nos nossos filhos mas é importante sabermos lidar com ela também quando surge em nós. 
Todos os pais se zangam com os filhos de vem em quando. A zanga é uma emoção natural e que pode até ter um papel importante desde que saibamos lidar com ela. O que acontece muitas vezes é que escolhemos uma de duas atitudes: ou nos zangamos de forma descontrolada e deixamos que esta zanga acabe por prejudicar a nossa relação com os nossos filhos e com aqueles que nos são mais queridos; ou temos tanto medo de nos zangar que acabamos por engolir tudo e acabamos por causar prejuízos a nós mesmos mas também aos nossos filhos porque não somos capazes de lhes transmitir a melhor forma de lidar com esta emoção.

A zanga é uma resposta natural que acontece quando sentimos que algum comportamento ou atitude de outra pessoa pôs, de algum modo, em causa o nosso bem-estar. A zanga é muitas vezes alimentada pela percepção de ameaças ou pela crença de que, determinadas coisas, não deveriam acontecer. A zanga em si mesma não é algo negativo, é uma resposta natural que, em certas situações, pode até ser útil na medida em que nos dá o impulso para agir e tomar atitudes em relação ao que acreditamos que precisa de mudar. Tich Nhat Hahn, monge budista e professor de meditação que - de entre os vários livros que já escreveu- tem um dedicado à zanga, diz que devemos olhar para esta como se olhássemos para um bebé: quando um bebé chora paramos o que estamos a fazer para tentar perceber o que se passa com ele. Com a zanga é a mesma coisa: se estamos zangados devemos tentar parar para perceber o que se passa connosco e o que nos fez zangar mas, é importante que o façamos com uma atitude de compaixão. Assim como acolhemos um bebé que chora, também devemos acolher a nossa zanga para percebermos o que se passa connosco, de onde é que ela veio, o que a fez começar e, sobretudo, de que é que precisamos para que ela possa passar. E isto deve ser feito sem culpas e sem receios porque é a única forma de lidarmos verdadeiramente com esta emoção em vez de nos refugiarmos em comportamentos de fuga que servem apenas para desviar a nossa atenção do essencial: as nossas emoções e aquilo que precisamos de fazer. Marshall Rosenberg, pai da comunicação Não Violenta, afirma que a zanga é sempre a expressão trágica de uma necessidade que não foi satisfeita. Então, em primeiro lugar, precisamos de ser capazes de olhar para a nossa zanga para perceber que necessidade é essa e de que forma poderemos arranjar maneira de a preencher.

Assumir a responsabilidade 

            E uma coisa que é fundamental percebermos quando se trata de lidar com os nossos filhos (e não só) é que não nos zangamos por causa deles, zangamos-nos por causa de nós, mesmo. Isto pode parecer estranho mas é importante termos noção de que não é o comportamento dos nossos filhos que nos faz ficar zangados mas sim as crenças que temos em relação a esse comportamento. Alguns comportamentos dos nossos filhos despertam em nós determinados pensamentos, ou sentimentos, ou emoções com as quais é difícil lidarmos. Temos uma relação de grande proximidade com os nossos filhos por isso é muito natural que eles nos afectem de uma forma muito profunda com as suas atitudes. O problema é que muitas vezes não temos noção disto. Então é importante percebermos que há determinados comportamentos que nos fazem zangar não por causa do comportamento em si mas por aquilo que despertam em nós. 
      Cada um de nós terá os seus próprios gatilhos e é importante que os fiquemos a conhecer para sabermos lidar com eles. 
        Por exemplo, um dos meus gatilhos é a sensação de que estou a perder o controlo da situação. Isto está relacionado com a minha necessidade de manter uma certa ordem e programação na minha vida e, quando sinto que isso está a ser posto em causa e que não tenho qualquer forma de o impedir torna-se difícil não me zangar. Mais concretamente: gosto de me deitar cedo e gosto de ter algum tempo para mim antes de me deitar, por isso gosto que o meu filho adormeça cedo. Este hábito tem vindo a ser reforçado pelo facto de, a maior parte das vezes, o meu filho até colaborar com esta minha necessidade mas, como todas as crianças, tem fases de maior agitação, em que acaba por ter um pouco mais de dificuldade em adormecer à hora que eu gostava que ele adormecesse. E, quando isto acontece, dou comigo a zangar-me com ele, mesmo sabendo que ele não tem culpa de não ser capaz de adormecer. Na verdade, para além desta minha necessidade de dormir cedo e ter ainda algum tempo para mim, isto também está relacionado com o facto de, outra parte de mim, acreditar que as crianças deveriam dormir sempre cedo (nunca muito depois das nove da noite) e que sou uma péssima mãe se não conseguir adormecer o meu filho a essa hora. Então, só neste exemplo temos dois aspectos importantes desta minha necessidade de controlo: por um lado esta necessidade de sentir que posso controlar os meus dias e decidir a que horas me deito, por outro lado a necessidade de sentir que consigo controlar o meu filho e decidir a que horas ele adormece porque, se não for capaz de o fazer, estarei a falhar em algum aspecto como mãe.
        Então, é fácil de ver que o facto de eu me zangar não tem nada a ver com o facto dele não adormecer mas sim com a forma como eu interpreto essa incapacidade e como lido com tudo o que isso desperta em mim. Então, neste caso o que posso eu fazer para preencher essa minha necessidade de controlo? Posso tentar organizar tudo para que ele adormeça cedo mas, nos dias em que isso falha, posso simplesmente, por um lado tomar consciência da minha necessidade de dormir cedo que não está a ser preenchida e, por outro tomar consciência de que o facto dele não dormir tão cedo quando eu gostaria não significa que estarei a falhar em alguma coisa como mãe. 
      Isto faz toda a diferença na forma como sinto e como expresso a minha zanga, porque não a projecto no meu filho. O simples facto de ser capaz de olhar para mim própria com aceitação e de saber que é natural que me sinta frustrada já faz uma grande diferença na forma como me sinto e como me expresso. 
       Tenho o direito de me zangar e de me sentir frustrada porque as coisas não correm como eu previa, mas não tenho o direito de fazer com que o meu filho se sinta culpado por isso. Então é importante eu ser capaz de lhe transmitir que ele não tem culpa da minha zanga. É fundamental que as crianças não se sintam responsáveis pelas emoções dos pais e isto é o que acontece quando lhes dizemos que nos zangámos porque eles fizeram assim ou assado. Então se estamos zangados mas sabemos que a culpa não é deles, podemos simplesmente dizer que estamos cansados ou aborrecidos, ou sem paciência mas que isso não afecta nada o que sentimos por eles. Nem sempre somos capazes de o fazer na altura em que estamos tão identificados com a nossa zanga que não conseguimos separar-nos dela o suficiente para que isto seja possível, mas podemos fazê-lo depois. E nunca é tarde para o fazermos. Podemos e devemos mostrar aos nossos filhos que não nos zangámos por causa deles. Principalmente se falámos mais alto do que gostaríamos ou se dissemos algo que gostávamos de não ter dito é muito importante, tenham eles a idade que tiverem, que lhe digamos que não sentimos o que dissemos e que continuamos a gostar muito deles. Porque o que assusta uma criança quando um adulto se zanga com ela é sentir que pode perder esse amor. Para a criança, quando o pai ou a mãe se zangam parece que deixaram de gostar dela. E isto assusta e muito. Até a nós adultos nos assusta quando alguém se zanga a sério e grita connosco e, se escutarmos lá bem fundo o nosso coração, nessas alturas, o que apetece mesmo perguntar a essa pessoa é “já não gostas de mim?”. Então podemos simplesmente dizer aos nossos filhos que, mesmo quando estamos zangados, cansados, sem paciência continuamos a gostar sempre muito deles, que por trás de toda essa zanga e falta de paciência o amor continua lá, mesmo que não pareça, mesmo que fique escondido como o céu atrás das nuvens, mas ele está sempre lá, nunca se vai embora, nunca desaparece. E, se nos zangamos muitas vezes, é importante dizermos isto muitas vezes, tantas quantas forem precisas até percebermos que eles o sabem e sentem de verdade. 
     Isto dá também aos nossos filhos a possibilidade de saberem que se podem zangar, que têm o direito de ficar zangados e que não precisam de fugir dessas emoções, que podem lidar com elas. E ensina-lhes também outra coisa muito importante: que é possível reparar as relações. Que, quando alguém se zanga connosco e se afasta temporariamente, não quer dizer que essa pessoa está perdida e que já não gosta de nós. Ensina-lhes que podemos e devemos acreditar nas pessoas de quem gostamos e no amor que têm por nós.

Zanga como educação

      A zanga é uma emoção explosiva: tem um pico que acontece muito depressa, mesmo do ponto de vista fisiológico, mas que se extingue rapidamente. O que acontece é que, muitas vezes, nós escolhemos prolongar a nossa zanga porque acreditamos que ela tem alguma utilidade. Pensamos que precisamos da zanga para que os outros percebam o que não podem fazer. 
   Quando o meu filho começou a andar e a mexer em tudo e fazer todos os disparates característicos como meter mãos em tomadas – ou a ter ideias brilhantes como a de de enfiar uma palhinha no buraquinho da tomada para depois meter lá a boca - e a despejar todos os CDs das caixas, por exemplo, eu comecei por pensar que tinha de me zangar com ele para que percebesse que não poderia fazer estas coisas. E havia aquela parte de mim que tem tendência para repetir o que conhece, que se sentia na obrigação de se zangar para ele não fazer certas coisas. Acontece que, muitas vezes, eu não me sentia realmente zangada mas achava que tinha me forçar a ficar zangada para ele não pôr mais palhinhas em tomadas. Até que percebi que realmente não precisava de forçar uma zanga que não existia. E a zanga não existia nestes casos, porque ele não estava a activar nenhuma das minhas emoções mais primitivas, como no exemplo que dei acima. Porque eu sabia que ele estava simplesmente a ser criança, a descobrir o mundo, que não estava a fazer aquelas coisas para me chatear ou porque era especialmente mau ou mal educado. Então, nestes casos o comportamento dele não estava a desafiar a minha forma de ver o mundo nem a por em causa as minhas percepções ou a fazer-me sentir ameaçada. Por isso a zanga não surgia naturalmente, mas eu achava que tinha de a ir buscar ou inventar a algum lado para o ensinar. Mas, na verdade, percebi que a zanga não ensina nada e não precisamos de zanga para educar ninguém. A zanga serve apenas para nos educar a nós, para nos fazer compreender quais são os nossos gatilhos mas não serve para educar mais ninguém. Não é por nos zangarmos com os nossos filhos que eles aprendem a não mexer nas tomadas. Antes pelo contrário até. Se nos zangamos eles assustam-se, pensam que não gostamos deles. E, quando se assustam, entram num modo defensivo, nesse modo defensivo ficam muito menos receptivos ao que quer que seja que lhes tentemos ensinar. Então a zanga não só não funciona como ferramenta educativa como até atrapalha. No exemplo da palhinha na tomada será muito mais eficaz mostrar a minha cara de susto e explicar-lhe com firmeza que não pode repetir aquilo, que é perigoso, que se pode magoar a sério. No exemplo dos Cds, em que não há nenhum perigo envolvido mas não queremos realmente que ele os estrague ou misture todos, podemos simplesmente dizer-lhe com firmeza que não queremos que abra as caixas, que aqueles objectos são importantes para nós e preferimos que não lhes mexa. Isto deve ser feito de modo a que a criança não sinta que houve nada de errado em querer mexer-lhes, mas que é apenas uma preferência nossa. E ajuda se eles sentirem que isto não se repete com demasiadas coisas, ou seja, uma criança que sente que não pode mexer em nada, que está constantemente a ouvir nãos, começa a ficar ansiosa e torna-se difícil não sentir que está a fazer algo de errado. Mas se a criança sabe que até pode mexer em quase tudo, torna-se mais fácil respeitar essas preferências se forem expressas de forma correcta e perceber que há algumas coisas em casa com que é mesmo importante ter cuidado. Com crianças mais velhas podemos mostrar-lhes de que forma podem mexer nesses objectos, como podem fazer para que não os partam ou estraguem, se sentirmos que isto é possível. Com crianças mais pequenas, antes dos dois anos, geralmente resulta melhor tentar distraí-las com outras coisas em vez de lhes dizer simplesmente que não, porque a criança ainda não tem capacidade para compreender verdadeiramente o que isso significa. 
      Sempre que dizermos que não aos nossos filhos há duas coisas fundamentais: primeiro fazê-lo de forma a que a criança não se sinta desadequada por ter tido aquele comportamento e segundo, estarmos preparados para aceitar os seus sentimentos de frustração e de zanga, dando-lhes liberdade para os expressar e sendo capazes de os ouvir. 
      E é importante também termos noção que as crianças não aprendem logo à primeira estas coisas. É importante termos noção das nossas expectativas e sabermos que, o facto de termos de repetir muitas vezes a mesma coisa, não quer dizer que a criança não ouve mas que é natural que se ela volte a tentar algumas vezes, apenas para ter mesmo a certeza ou porque simplesmente não se lembra que não queremos que o faça. 

      Outro efeito da zanga, para além de nos fazer questionar o amor do outro, é também o de nos fazer sentir incapazes, incompetentes, desadequados. E estas são das emoções mais nocivas que uma criança pode ter e, que se forem sentidas com frequência, acabam por se tornar suas companheiras constantes ao longo da vida com todas as dificuldades e sofrimento que provocam. Então o melhor que podemos fazer pelos nossos filhos é assumir a responsabilidade pelas nossas zangas e arranjar formas de os fazer saber que, mesmo quando estamos zangados, eles continuam a ser o melhor das nossas vidas. 

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Bebés Interactivos

Quando o meu filho nasceu, algumas pessoas bem intencionadas avisaram-me de que ele iria pegar em tudo o que eu fizesse para perceber aquilo que resultava para chamar a minha atenção e aprenderia rapidamente as estratégias que resultavam para me levar a fazer o que ele queria. Estes quereres geralmente eram encarados como vontades não essenciais que não deveriam ser imediatamente satisfeitas sob pena de se gerar uma espécie de tirano que ficaria a acreditar que tem direito a colo sempre que lhe apeteça ou que o direito de mamar sempre que tem vontade, mesmo que ainda não tenham passado três horas da última mamada, ou o direito de só querer adormecer no colo ou na cama dos pais. E a tudo isto essas pessoas - que, na melhor das intenções, queriam apenas dar-me conselhos que tornassem a minha vida mais fácil e que, ao mesmo tempo, também me ajudassem a educar o meu filho de uma forma supostamente sensata – chamam normalmente as manhas que os bebés aprendem. E, a estas pessoas eu respondi algumas vezes que os bebés não têm manhas simplesmente porque não têm capacidade de perceber que as suas acções influenciam os outros ao ponto de os manipularem conscientemente porque um bebé não tem realmente a capacidade perceber de uma forma concreta que, se exibir o comportamento X os pais terão a reacção Y.
É verdade, sim, que os bebés não têm manhas, têm apenas necessidades mas, também é verdade que, a necessidade de estabelecerem uma ligação é tão forte como a própria necessidade de comer ou dormir e que, por isso mesmo, os bebés usam todos os recursos e estratégias ao seu alcance para tentarem estabelecê-la. 

Então, na realidade, estas pessoas que dizem que um bebé que está habituado a ser pegado ao colo sempre que chora ou a mamar sempre, têm alguma razão quando dizem que este se pode tornar um bebé mais exigente. Esta exigência não tem nada a ver com manipulações nem com choros despropositados ou com faltas de educação. Esta exigência vem simplesmente do facto de que, um bebé que está habituado a ver as suas necessidades respeitadas e respondidas é um bebé que sabe que as suas acções contam, é um bebé que aprende que tem algum poder no mundo, é um bebé que ganha confiança não só naquilo que o seu corpo lhe diz – quando este lhe mostra que algo não está bem – mas também na sua capacidade de alterar aquilo que precisa de ser mudado. Então, se este bebé está habituado a que respondam quando se manifesta é natural que tenha alguma tendência para se manifestar mais vezes. Isto não quer dizer que se torna um bebé que chora com mais frequência. A tendência é para que aconteça justamente o contrário provavelmente por duas razões: primeiro porque a mãe que está habituada a responder mais ao bebé cria uma ligação com este que lhe permite estar mais atenta e consciente das suas necessidades mesmo antes dele chorar e, por outro lado, porque o próprio bebé, ao crescer num ambiente em que sente que as suas necessidades são preenchidas e respeitadas, acabar por se tornar um bebé mais tranquilo e mais capaz de lidar com algum stress que, de vez em quando, possa surgir. 
Os bebés nascem prontos para estabelecer ligações e precisam dessas ligações para se desenvolverem de forma saudável. O trabalho de Ed Tronick mostra como são importantes essas ligações para os bebés e a forma como estas podem alterar a sua percepção do mundo. Este autor e investigador criou uma experiência clássica que já foi aplicada a bebés e crianças um mês de idade até aos 4 anos. Nesta experiência a mãe interage normalmente com o bebé, frente a frente, durante alguns minutos, para depois ficar durante algum tempo com uma cara neutra, ou seja, deixa de responder ao bebé e de reagir aos seus estímulos ficando apenas a olhar para ele com uma expressão neutra. Em apenas dois minutos nestas experiências, as crianças de todas as idades começam por tentar usar todas as suas estratégias para fazer a mãe reagir e, quando não conseguem fazê-lo, entram num estado de desespero e de ansiedade claramente visíveis. (Ver aqui vídeo da experiência)
Ao fim destes dois minutos em que a mãe mantém a expressão neutra, os investigadores pedem-lhe que volte a interagir com o bebé normalmente e, o que se observa é que, os bebés levam ainda algum tempo a recuperarem totalmente do stress causado pela interacção e voltarem a interagir de forma tão livre como a que se podia observar na primeira parte da experiência.
Esta experiência mostra como o facto do bebé se sentir ignorado pela mãe, mesmo num curto espaço de tempo, provoca uma perturbação tão grande no seu comportamento e até alguns danos nas interacções posteriores. 

O Modelo de Regulação Mútua

Com base nestas e noutras investigações, este autor criou aquilo a que chamou o MRM (Mutual Regulation Model ou Modelo de Regulação Mútua) segundo o qual o bebé e a mãe formam uma consciência diádica em que cada um responde e reage aos estímulos do outro. Neste modelo os bebés não são encarados como seres totalmente passivos que estão apenas à mercê da forma como as mães interagem com eles, embora seja o comportamento da mãe que tem de facto o maior peso na interacção. Mas, neste modelo o bebé também tem um papel activo na procura deste estado de ligação com a mãe e usa todas as suas estratégias para o conseguir. Para Ed Tronick a ligação entre a mãe e o bebé é feita daquilo a que chama matches and mismatches – encaixes e desencaixes. Este autor vê a comunicação entre a mãe e o bebé como uma série de pequenos episódios em que ambos procuram estar em sintonia um com o outro mas em que nem sempre isso acontece. Nas observações de Tronick nas relações que eram classificadas como de apego seguro, a mãe e o bebé estavam em sintonia aproximadamente metade do tempo em que interagiam. Isto quer dizer que há sempre períodos de tempo em que a mãe não percebe exactamente aquilo de que o bebé comunica e em que surgem os tais mismatches mas, o que ele também observou, foi que, neste tipo de relação existe uma grande taxa de reparações.
Para que isto fique mais claro podemos pensar num exemplo: a mãe está a brincar com o bebé que está no colo de frente para ela. O bebé faz um som e a mãe imita-o respondendo, o bebé fica satisfeito e faz um sorriso, a mãe fica contente com esse sorriso e sorri também mas, a certa altura, o bebé fica cansado da interacção e volta a cara para o lado, a mãe não percebe que o filho quer parar de brincar durante algum tempo e insiste um pouco. Esta insistência cria o tal estado de mismatch, ou de desencaixe, em que a mãe não percebe exactamente a necessidade do bebé naquela altura e o bebé não se sente verdadeiramente escutado ou acolhido. Isto faz com que o bebé fique mais desconfortável e reaja fazendo uma expressão de desagrado, aqui a mãe percebe que o bebé já não quer brincar mais e deixa-o descansar um pouco, mudando de actividade, mudando-o de posição ou, simplesmente, esperando, que o bebé mostre novamente vontade de interagir. Então, o facto da mãe ter percebido que o bebé estava cansado foi uma reparação nesta interacção, o que quer dizer que, a mãe ensinou ao bebé que é possível passar de um estado em que não estamos sintonizados com as necessidades do outro a um estado de sintonia e, com isto o bebé também aprendeu que é possível passar de um estado de stress a um estado de equilíbrio ou de bem-estar. E nisto a mãe mostrou também ao bebé que está disposta a ouvi-lo e mostrou-lhe que consegue comunicar com sucesso as suas necessidades dando-lhe o conforto de se sentir um agente da sua própria mudança e a capacidade de aprender a regular os seus estados internos. Nas investigações citadas por Tronick, nos casos de apego seguro, na grande maioria dos casos, quando as interacções eram dividas em vários passos, a reparação acontecia no passo logo a seguir ao desencaixe. 


Neste modelo de Regulação Mútua, o bebé precisa da presença da mãe para aprender a regular os seus estados internos e, se tiver que aprender a fazê-lo sozinho, isto acontecerá apenas à custa de muitos prejuízos que podem incluir vários atrasos no desenvolvimento e, em casos mais graves, podem mesmo levar aquilo que em inglês se chama faillure to thrive, que podemos traduzir como falha em desenvolver-se e que era o mecanismo que estava na origem das taxas elevadas de mortalidade em muitos orfanatos, por exemplo. 
Tronick usa o exemplo da regulação da temperatura: por vezes os bebés precisam do contacto com o corpo da mãe ou do pai para regularem a sua temperatura interna. Sem esse contacto o organismo do bebé é obrigado a despender uma parte demasiado grande da sua energia para conseguir essa regulação o que, se ocorrer demasiadas vezes, acabará inevitavelmente por provocar outros danos. Então Tronick diz que um mecanismo muito semelhante existe com a regulação das emoções ou dos sistemas afectivos. Ele usa a teoria dos sistemas para explicar que o bebé é um sistema aberto que tem uma tendência para querer atingir sempre estados de maior complexidade mas que essa complexidade só pode ser atingida através do estabelecimento deste estado de consciência diádica com a mãe. Isto quer dizer que, para o bebé se poder desenvolver de forma óptima e com todas as suas capacidades, precisa que lhe seja possível formar esse estado de consciência com a mãe, através do qual aprende a regular o seu próprio sistema. Isto quer dizer que, se esta possibilidade não lhe for dada, ele terá que voltar todos os seus recursos para a auto-regulação o que, mais uma vez, acabará por levar a um gasto demasiado grande de energia que limita todos os investimentos que pode fazer noutras áreas e pode mesmo chegar a provocar danos graves.

Depressão Materna e interacção com o bebé

O trabalho deste autor passou muito também pela observação e compreensão da forma como as mães que sofrem de depressão interagem com os seus filhos e da forma como esta interacção influencia o seu desenvolvimento. E, uma das suas descobertas é que o facto da mãe estar deprimida, para além de levar ao aparecimento de algumas características típicas do comportamento depressivo no bebé, também pode fazer com que este apresente algumas limitações ao nível cognitivo, como a perturbação do défice de atenção, por exemplo. (Ver artigo sobre este tema)
Aquilo que Tronick observou nos seu estudos foi que os bebés que tinham mães deprimidas, para além de apresentarem também alguns sintomas depressivos, mostravam uma menor capacidade de observação de objectos, como se a sua atenção não conseguisse encontrar uma âncora que os fizesse sentir seguros e precisasse de estar constantemente a mudar de um estímulo para o outro.
Este autor explica esta observação com base no facto de que o bebé, ao ser privado do estabelecimento desse estado de consciência dual com a sua mãe, passa a precisar de direccionar todas as suas energias para actividades de auto-regulação que lhe permitam manter alguma estabilidade ao nível fisiológico e afectivo e que limitam a sua capacidade de interagir com o mundo. Por outro lado, este autor também defende que, ao ser privado deste estado de consciência com a mãe, o bebé não tem oportunidade de experimentar estados de consciência mais complexos e que, por isso mesmo, também se tornam mais capazes de absorver o mundo do ponto de vista cognitivo.
Este autor dividia as mães deprimidas entre dois grupos de mães que interagiam de duas formas distintas com os seus bebés: aquelas que tinham um comportamento intrusivo e aquelas que tinham um comportamento de abandono. As que tinham um comportamento intrusivo eram as mães que, no exemplo que demos acima, não respeitavam os sinais do bebé para parar de interagir. Uma mãe intrusiva continuaria a insistir até que o bebé ficasse tão desconfortável que começaria a chorar. Neste exemplo a mãe provavelmente não perceberia porque é que o bebé chorava e acabaria por ficar frustrada com a interacção o que, por sua vez, criaria um ciclo vicioso de mismatches na interacção que se torna difícil de quebrar. As mães intrusivas também tinham maior tendência para se zangarem e falarem de forma ríspida ou mesmo agressiva com o bebé. 
As mães com comportamento de abandono são mães que interagem muito pouco com o bebé, privando-os da oportunidade de estabelecerem qualquer tipo de interacção e de vinculação consigo.
Aquilo que o autor observou foi que estas mães geravam também dois tipos de comportamento diferente nos seus bebés: os bebés de mães com comportamento de abandono eram bebés que mostravam aquilo a que Seligman – pai da Psicologia Positiva – chama de desesperança aprendida (ver artigo sobre este tema), um comportamento em que o bebé entra num estado de apatia em que até pode ter muito poucas manifestações de desconforto mas tem ainda menos expressões de contentamento. No caso das mães intrusivas os bebés pareciam um pouco mais reactivos e apresentavam mais expressões negativas e de desconforto e menos expressões positivas quando comparados com bebés filhos de mães sem depressão.
Os casos de abandono levam à tal desesperança aprendida em que a criança cresce sentindo-se incapaz de confiar em si e com a sensação de que as suas acções não têm nenhum efeito no mundo e num certo estado de apatia e tristeza crónica. No caso da intrusão a criança cresce geralmente com uma sensação de zanga e com uma certa rigidez que se torna crónica e pode mesmo manifestar-se do ponto de visa físico.
Estas diferenças de comportamento já eram visíveis nos bebés com apenas seis meses, demonstrando que, nesta altura, já parece existir um padrão bem definido de comportamento.  
Para este autor o comportamento de abandono tinha um efeito ainda mais grave do que o de intrusão porque, os bebés filhos de mães intrusivas, pelo menos, tinham oportunidade de estabelecer uma ligação com estas mesmo que esta não fosse uma fonte de satisfação durante a maior parte do tempo. 
Então, estas investigações mostram claramente que a forma como as mães interagem com os filhos moldam a forma como estes passam a reagir e a comportar-se.
Este autor defende que o bebé não é apenas um sujeito passivo destas interacções no sentido em que o bebé procura estabelecer relações mas procura também manter o seu equilíbrio fisiológico e emocional e, para que isso aconteça, ele começa a usar as estratégias que estiverem ao seu alcance de acordo com a forma que a sua mãe interage com ele e, desde muito cedo, começam a formar-se então determinados padrões comportamentais que reflectem a forma como aquele bebé está a desenvolver a sua visão do mundo e de si mesmo e a sua capacidade de manter o seu equilíbrio interno, que é fundamental. Nestas investigações Tronick também verificou que havia algumas diferenças entre rapazes e raparigas: os rapazes pareciam ser um pouco mais intensos nas suas demonstrações emocionais e, ao mesmo tempo, tinham uma menor capacidade para se auto-regularem o que acabava por fazer com dependessem mais da presença e da disponibilidade da mãe para o fazerem. Talvez por isso, porque os sentiam mais necessitados, as mães apresentavam uma maior percentagem de tempo em sintonia com os rapazes do que com as raparigas.

Então realmente os bebés a quem nunca ninguém pega ao colo e cujas necessidades são constantemente negligenciadas, como acontece no caso das mães deprimidas, são bebés que, à primeira vista parecem dar menos trabalho. São bebés que até podem chorar muito pouco e que, aos seis meses, já desistiram de pedir colo ou de exigir a presença de um adulto para adormecer, por exemplo. Mas é muito importante termos noção do preço que pagam para isso. E o preço que pagam é a possibilidade de se tornarem adultos felizes, confiantes, preenchidos, seguros do seu lugar no mundo e capazes de lutar por aquilo em que acreditam. O preço que pagam é um crescerem sem nunca sentirem que são verdadeiramente importantes para alguém e, por isso mesmo, sem nunca saberem verdadeiramente onde pertencem neste mundo. E o preço que nós, pais, pagamos por isso, é o preço de ter um filho que nunca nos verá como uma verdadeira fonte de conforto, de prazer e bem-estar. E é o preço também de ter um filho que nunca olhará para nós como alguém em quem pode confiar, como alguém com quem pode descansar. E, é importante também termos noção de que o pouco trabalho que até podem dar estes bebés que não exigem a nossa presença será compensado com todo o trabalho extra que darão à medida que forem crescendo porque serão com toda a certeza crianças que, mais cedo ou mais tarde, apresentarão sempre algum tipo de problema no seu desenvolvimento. 

Referências

Ed Tronick (2007) - The Neurobehavioural and Social-Emotional Development of Infants and Children. Norton 

Gabor Maté (2000) - Scattered - How Attention Deficit Disorder originates and what you can do about it. Plume Books. 

terça-feira, 13 de maio de 2014

Pais culpados

No fim de semana passado fizeram-me um convite simpático para apresentar uma palestra num seminário organizado pela associação de pais da escola Gomes Freire de Andrade, em Oeiras. No final da apresentação, estava presente uma jornalista que deveria ter moderado uma mesa redonda entre os intervenientes mas, como houve alguns atrasos, esse debate acabou por ter de ser encurtado e fiquei sem possibilidades de responder a um tema que essa jornalista trouxe e acerca do qual gostaria de ter dito algumas coisas. Esta jornalista falou naquilo que considerou ser algo muito presente na maioria dos pais da nossa cultura e sociedade: a culpa. Culpa por não terem tempo para estar com os filhos ou por se sentirem responsáveis pelos problemas dos filhos ou por não serem os pais que gostariam de ser. E, de acordo com esta jornalista, esta culpa era responsável por um mal-estar grande e que, na verdade, se eu bem percebi, não teria grande razão nem necessidade de existir.
Para compreendermos melhor o que está aqui em jogo, é preciso primeiro distinguir dois tipos de culpa: a culpa que vem misturada com a vergonha, que nos faz sentir infelizes, indignos e incapazes e que tem um efeito paralisante porque nos faz sentir totalmente incompetentes e incapazes nas nossas funções e a culpa que é apenas um sinal da nossa consciência de que não estamos a agir de acordo com o nossos valores.
Então, no primeiro caso, esta é uma emoção que, realmente, traz mais prejuízos do que benefícios. Esta culpa paralisante que nos faz sentir vergonha de quem somos, a maior parte das vezes, tem a sua origem justamente na nossa infância. Quando os nossos pais nos fazem sentir totalmente desadequados no nosso comportamento surge uma resposta de vergonha, potenciada pela libertação de uma grande quantidade de hormonas, como o cortisol – associado à resposta de luta ou fuga – e que nos dá uma sensação de não sermos dignos de amor, de não sermos dignos de existir. Porque, quando não nos sentimos dignos do amor dos nossos pais a sensação é mesmo de que não somos dignos de existir. E, se isto se repetir muitas vezes na nossa infância, acabam por ficar gravadas estas sensações de não sermos capazes, de não sermos competentes, de não sermos dignos. E, muitas vezes, transferimos isto para os nossos relacionamentos mas também para o trabalho ou outro tipo de tarefas que temos de desempenhar. Então numa relação tão importante como a que temos com os nossos filhos, é natural que, nestes casos, possam também surgir esse tipo de sentimentos de incapacidade e incompetência. A única forma de lidarmos com estes sentimentos sem que eles se tornem verdadeiramente paralisantes é reconhecermos que têm provavelmente mais a ver com os nossos pais e com o que aprendemos com eles do que propriamente com os nossos filhos. E que estamos apenas a projectar ou a reavivar com eles essas aprendizagens da infância porque, quando não tomamos consciência destes padrões que fomos estabelecendo ao longo da vida, o mais provável é que continuem a influenciar a forma como nos relacionamos ao longo da vida e são grandes as probabilidades de que venhamos a reproduzi-los com os nossos filhos. 
No segundo tipo de culpa aquilo que está em causa é o facto de sentirmos que não estamos a viver de acordo com os nossos valores. E, infelizmente, isto é cada vez mais comum nos dias de hoje. Porque todos sentimos que é importante passarmos tempo com os nossos filhos e temos cada vez menos possibilidades de o fazer, porque todos sentimos que é importante cuidarmos da nossa relação com os nossos filhos e também temos cada vez menos possibilidades de o fazer. Uma mãe que tem um filho de meses e precisa de trabalhar o dia todo longe do filho sente-se naturalmente culpada. Mas esta culpa é apenas fruto da sua consciência que lhe diz que não está poder seguir o seu instinto de mãe. Uma mãe que quer pegar no filho ao colo sempre que chora ou dar-lhe mama, ou que quer pô-lo na cama consigo mas que resiste à ideia de o fazer por medo que se torne dependente ou por outros receios que lhe são incutidos muitas vezes pelos especialistas e sociedade em geral, é natural que se sinta culpada porque, em alguma parte de si, sabe que não está a seguir os seus instintos e a ser fiel aos seus valores. 
E, na minha opinião o problema é este: é que cada vez mais somos obrigados a passar por cima dos nossos instintos mais básicos e a separarmos-nos cada vez mais dos nossos filhos. E, nestes casos, a culpa não só é inevitável como até acredito que seja desejável porque é ela que nos pode lembrar de que podemos fazer mais pelos nossos filhos, porque é ela que nos pode fazer lembrar que ao esquecer os nossos filhos estamos a esquecer-nos também de nós e a deixar de lado os nossos valores, os nossos instintos, e a nossa consciência que sabe e que quer fazer melhor.
Então aqui o importante não é eliminar a culpa mas sim perceber de onde é que ela vem e tentar eliminar não o sentimento mas as circunstâncias que o provocam. Nem sempre podemos eliminar directamente essas circunstâncias mas podemos arranjar formas de as contornar para que se torne possível estarmos mais alinhados com os nossos valores. Por exemplo, se não podemos deixar de trabalhar para estar com os nossos filhos, podemos, pelo menos, tentar aproveitar ao máximo todo o tempo que temos com eles.
Por vezes também me sinto culpada quando não tenho toda a paciência que gostaria de ter sempre com o meu filho, ou quando me zango em situações em que acho que não me deveria zangar, ou quando lhe falo alto e sei que não o deveria fazer. Mas, cada vez que sinto esta culpa não acho que ela é que está errada ou que deveria desaparecer. Quando esta culpa aparece sei que ela está presente porque me comportei de uma forma que não condiz com os meus valores, que não está de acordo com os meus instintos nem com aquilo em que acredito. Então a solução não será eliminar esta culpa mas sim pensar que, da próxima vez, espero conseguir estar mais alinhada com esses valores. E, se sinto que fiz mesmo algo que não gostei de fazer, então posso tentar reparar aquilo que fiz, por exemplo, explicando ao meu filho que estava cansada, sem paciência mas que, por baixo de todo esse cansaço e falta de paciência continuava a estar presente todo o amor que tenho por ele. Que, mesmo que fale alto e faça cara feia em alguns momentos, continuo a gostar sempre dele. Porque, para mim, isso é o mais importante: que o meu filho saiba que, por muito pouca paciência que eu tenha ou por muito grande que seja a asneira que ele fez, o amor que sinto por ele não foi minimamente afectado. Porque é quando duvidamos desse amor dos nossos pais, especialmente nos momentos em que se zangam connosco, que surgem os tais sentimentos de vergonha e de incapacidade que podem levar também justamente a essa culpa paralisante e tão nociva quanto desagradável.
Poderia pensar simplesmente que não vale a pena sentir-me culpada porque as minhas acções não são assim tão importantes, porque zangar-me uma vez ou outra ou gritar de vez em quando não faz mal nenhum. Mas faz mal, sim. Faz mal, em primeiro lugar, porque não é quem gosto de ser e faz mal, em segundo lugar, porque não é isso que o meu filho merece. E se o nosso marido ou mulher nos tratassem mal de vez em quando e nos dissessem simplesmente que temos de aguentar porque a vida é assim mesmo e não estamos sempre bem-dispostos? É verdade que é natural perdermos a paciência uns com os outros de vez em quando, é verdade que uma zanga de vez em quando não prejudica assim tanto uma relação. Mas também é verdade que, depois dessa zanga, precisamos sempre de saber que há qualquer coisa que tem de se reparada na relação. Porque quando outro adulto se zanga connosco também precisamos de saber que ele ainda gosta de nós. Porque quando um adulto de quem gostamos se zanga connosco e nos trata mal, esperamos, no mínimo, uma atitude de quem está disposto a fazer alguma reparação para que as coisas possam voltar ao normal. Então é verdade que não é grave zangarmos-nos com os nossos filhos mas, também é verdade que, por uma questão de respeito e de consideração, é importante estarmos dispostos a reparar a relação depois dessa zanga. E a culpa é a forma da nossa consciência nos dizer que essa reparação é precisa, é necessária e importante. 
Outro aspecto desta culpa, segundo esta jornalista, seria o facto dos pais nem sempre terem culpa dos problemas dos filhos, ou seja, se um filho tem problemas, se se porta mal na escola, se escolhe uma vida de delinquência, por exemplo, a culpa nem sempre seria dos pais. Aqui é importante não falarmos em culpa mas sim em responsabilidade e, para mim, a responsabilidade é sempre dos pais, sim. Mas é diferente ser responsável ou ser culpado. Porque ser culpado, neste contexto, implicaria que não quiséssemos fazer melhor e, é claro que cada pai faz o melhor que sabe pelos seus filhos. É verdade que as crianças nascem com temperamentos diferentes e também é verdade que têm algum papel na forma como interagimos com elas mas também é verdade que somos os nós os adultos quem tem verdadeiramente escolha nessas interacções. Por isso, somos nós, verdadeiramente os responsáveis pela forma como elas correm. E somos nós também os responsáveis pelas primeiras experiências mais marcantes dos nossos filhos que ajudarão a moldar todas as outras experiências importantes das suas vidas. Então, somos nós, em grande parte, sim, os responsáveis por todo o seu futuro. Mas isto só é um peso se não sentirmos que fazemos o melhor que podemos. Se sentirmos que todos os dias estamos alinhados com os nossos valores e fazemos o melhor que podemos e sabemos pelos nossos filhos então essa responsabilidade não tem nada a ver com culpa e não se torna nada pesada porque, mesmo que alguma coisa corra mal pelo caminho, sabemos que demos o melhor de nós aos nossos filhos e sabemos que tudo o fizemos foi feito com a consciência de que lhes demos tudo o que podíamos ter dado. E quando damos tudo o que temos não há lugar para culpas paralisantes nem daquelas que nos pesam e incomodam porque, quando damos tudo o que temos, os nossos filhos podem crescer com a consciência de que podem cometer todos os erros do mundo que continuam a ser dignos do nosso amor e, só isso, por si só, acredito que é suficiente para criar um ser humano digno, com valores e respeito e uma relação feliz e harmoniosa com os nossos filhos para toda a vida. E, quando fazemos tudo o que podemos fazer alinhados com os nossos valores e com a nossa consciência, mais do que algo que precisa de ser eliminado, a culpa pode ser mesmo uma boa ajuda e algo que precisamos de ouvir para saber o que é que precisa de ser mudado. 


terça-feira, 15 de abril de 2014

Comportamentos de risco


We advocate a precautionary principle regarding caregiving practices. If we take to heart our evolved caregiving practices and the evidence we have thus far, then we must reframe some current childrearing practices as “risky”, such as formula feeding, sleeping in isolation, institutional daycare, “crying-it-out”, lack of skin-to-skin contact and parenting in isolation. 

Darcia Narvaez, Jaak Panksepp, Allan Schore, Tracy Gleason (2013) - Evolution, Early Experience and Human Development

Este parágrafo foi retirado das conclusões de um livro onde, vários autores com diferentes perspectivas, falam daquilo a que chamam o Ambiente de Adaptabilidade Evolutiva (AAE). Este ambiente é aquele em que a espécie humana evoluiu e se desenvolveu ao longo de milhares de anos, é o ambiente que encontramos ainda nas sociedades tradicionais e existem também algumas semelhanças deste ambiente com aquele que podemos observar nos mamíferos, principalmente os primatas, que vivem em liberdade. Este ambiente de adaptabilidade evolutiva é o ambiente para o qual estamos programados para viver, é o ambiente que esperamos encontrar quando nascemos e é o ambiente em que mais facilmente um bebé humano se adapta e onde encontra tudo aquilo de que necessita para viver e crescer de forma saudável e equilibrada. Os editores deste livro juntaram assim artigos de vários autores que, com base nos estudos mais recentes do desenvolvimento infantil, da neurociência e até da antropologia, demonstram que o ambiente em que hoje - nas sociedades ocidentais - criamos as nossas crianças é muito diferente deste ambiente de adaptabilidade evolutiva que seria desejável recriarmos. E, como demonstram cada vez mais estas investigações o facto de nos estarmos a afastar cada vez mais deste ambiente comporta riscos que podem ter consequências bastante negativas, como mostram também os números cada vez maiores de perturbações psicológicas que encontramos tanto nos adultos como nas crianças hoje em dia.
Uma das bases para o conteúdo deste livro e destas pesquisas é o facto de todas as crianças nascerem com uma necessidade fundamental de estabelecerem vínculos, de estabelecerem uma relação de apego com a(s) pessoa(s) que cuida(m) de si. Já explorámos aqui a importância deste vínculo. 

Estas são as principais diferenças que encontramos na sociedade de hoje em dia, quando comparada com as sociedades tradicionais em que estava presente o Ambiente de Adaptabilidade Evolutiva:

·    Contacto da criança com a mãe nos primeiros tempos de vida – o que se observa nas
sociedades tradicionais, tal como acontece nos primatas, é que – pelo menos durante o primeiro ano de vida – o contacto do bebé com a mãe é muito frequente. Nestas sociedades os bebés passam a esmagadora maioria do seu tempo na presença da mãe. Ao longo do segundo ano, em algumas sociedades, a mãe pode começar a afastar-se um pouco mais deixando a criança ao cuidado de outras pessoas mas ainda continua a ser a presença mais frequente e regular no dia da criança. A partir do terceiro ano de vida, muitas vezes, esse tempo em que a mãe não está tão perto pode começar a aumentar um pouco mas nunca de forma a que uma mãe passe dias inteiros sem ver os filhos, como frequentemente acontece nas nossas sociedades em que as mães passam facilmente 8, 9, 10 ou até mais horas do seu dia sem ver os filhos.
  • O contacto pele com pele logo após o nascimento - nestas sociedades, geralmente, a criança é posta em contacto com o peito da mãe imediatamente depois do nascimento. Este contacto pele com pele sabe-se que pode ser muito importante para promover a libertação de hormonas que têm um papel fundamental no estabelecimento do vínculo quer da parte da mãe quer da parte da criança e também um papel essencial para o estabelecimento da amamentação por parte de ambos. Muitas das dificuldades que acontecem hoje no campo da amamentação podem ter origem justamente no facto deste contacto ser tantas vezes interrompido por procedimentos desnecessários e que não teriam lugar no AAE. Estas interrupções podem fazer com que o instinto de procurar naturalmente a mama, que todos os bebés têm, seja mais dificilmente despoletado levando ao surgimento de dificuldades que podem persistir sobretudo durante os primeiros tempos da amamentação.  
·       Esta presença da mãe traduz-se num contacto físico quase constante durante o primeiro ano de vida, com recurso a porta-bebés tradicionais e à cama compartilhada. A partir do momento em que a criança começa a andar este contacto físico pode diminuir um pouco mas os porta-bebés continuam a ser usados com frequência sempre que a criança precisa de ser transportada e o sono continua, geralmente, a ser feito na mesma cama ou no mesmo espaço em que se encontram a mãe e o pai durante os primeiros anos de vida de cada criança.
  
·       A presença da mãe também se traduz em períodos de amamentação muito mais prolongados do que aqueles que estamos habituados a ver hoje em dia, nas sociedades ocidentais. As investigações mostram que, de acordo com a nossa fisiologia e, a partir do que se conhece
da observação de sociedades tradicionais e de outros primatas, a idade natural do desmame deveria ocorrer entre os dois e os sete anos de idade. Alguns autores sugerem um período um pouco mais limitado entre os dois e meio e os cinco anos de idade mas, a verdade é que, de acordo com vários aspectos, não há nenhuma evidência de que um desmame forçado antes dos dois anos de idade possa trazer algum tipo de vantagem do ponto de vista da adaptação fisiológica ou psicológica da criança. Na verdade tudo indica o contrário: que as crianças nascem biologicamente preparadas para mamar, pelo menos, até aos dois anos de idade e que, por isso mesmo, é um risco para a sua saúde física e mental que não lhes seja permitido fazê-lo. A amamentação continua ter muita importância na saúde da criança e a ser um importante veículo para toda uma série de nutrientes que são essenciais para o crescimento mas também permite à criança receber uma série de anti-corpos que são também muito importantes visto que o seu sistema imunitário ainda está em formação até cerca dos seis anos de idade. Do ponto de vista emocional a amamentação também tem um papel importante de fazer com que a criança se sinta ligada e próxima da mãe e, quando a privamos dessa ligação essencial, sem que ela esteja pronta para a deixar por si mesma, é muito provável que isso tenha implicações negativas do ponto de vista do vínculo entre a mãe e a criança. 
Por outro lado, a amamentação prolongada – ou natural - para além dos benefícios que traz à criança do ponto de vista da saúde física e emocional traz ainda um benefício acrescido que é o prolongamento natural do período de amenorreia na mãe, o que contribui para um maior espaçamento entre os filhos, garantindo assim que a mãe tem tempo e disponibilidade para tratar das necessidades de proximidade com um filho antes de vir o próximo.

·       A cama partilhada – nestas sociedades, bem como em todas as espécies de mamíferos, as crias dormem perto dos pais até terem maturidade suficiente para dormir sozinhas. Nas sociedades ocidentais - com os novos hábitos de consumo e um certo desafogo económico, bem como a diminuição do número de filhos - que nos permitem ter um quarto separado para as crianças, levaram a que nos habituássemos a ver bebés e crianças pequenas a dormirem em camas e quartos separados dos pais. Mas, ao contrário do que pensamos, isto não tem nada de natural e alguns autores já questionam se será de facto saudável, sendo que, já há algumas estatísticas que comprovam que o facto dos bebés dormirem sozinhos podem aumentar significativamente o risco de morte súbita. A partilha da cama com o bebé ou criança, para além de ser uma boa forma de preencher as suas necessidades de contacto físico, também contribui muito para o sucesso e facilitação da amamentação.
  
·    Presença de múltiplos cuidadores – apesar de a mãe ter um papel de destaque nas sociedades tradicionais e no AAE, a verdade é que esta não vivia de forma tão isolada como hoje acontece. Os seres humanos não estão programados para o tipo de isolamento que acontece hoje nas nossas sociedades e isso pode ter consequências graves para o estado de espirito das mães e para a sua capacidade de cuidar dos filhos. Uma mãe que passa o dia inteiro sozinha com o filho bebé em casa, tendo apenas a companhia do marido aos fins de semana e ao final do dia, não é um quadro natural e pode muito facilmente levar a sentimentos de isolamento, de tristeza, de incapacidade e de grande cansaço. Nas sociedades tradicionais as pessoas vivem de forma mais comunitária por isso há sempre uma irmã, uma mãe, uma tia, uma vizinha para cuidar da criança alguns minutos enquanto a mãe descansa ou faz qualquer outra coisa. Estes pequenos intervalos ao longo do dia que a mãe pode ir fazendo no seu papel de cuidadora principal são importantes para que possa descansar sem que, para isso, precise de passar muito tempo longe dos filhos. Por outro lado, para a criança, esta diversidade de cuidadores também lhe permite estar muito mais exposta a todo o tipo de estímulos e - visto que a mãe nunca está longe e funciona como uma base segura e estável de apoio - ela pode ir criando vínculos com várias pessoas diferentes o que também poderá ser muito enriquecedor para o seu crescimento.

·    Presença de várias crianças de idades diferentes – nestas sociedades é comum que as crianças brinquem juntas em grupos de crianças de várias idades diferentes o que também pode ter um papel importante no seu desenvolvimento. Nestes grupos, o facto de estarem presentes crianças mais velhas também permite que as brincadeiras decorram de forma mais livre e com menos intervenções dos adultos. 

·    Resposta rápida ao choro – neste tipo de contexto o choro das crianças é, geralmente, rapidamente atendido. Porque nestas sociedades este choro é valorizado, ao contrário do que muitas vezes é divulgado hoje em dia, nestas sociedades, sabe-se que, se a criança chora é porque algo não está bem. E, resolver esse algo -principalmente em sociedades onde a mortalidade infantil é muito mais elevada que na nossa- é importante e pode mesmo ser vital para a sobrevivência da criança, por isso nunca passaria pela cabeça de uma mulher tribal deixar o filho a chorar sem que tentasse fazer algo para perceber e resolver esse choro.

Então que lições devemos retirar daqui?

O mais importante disto é percebermos que, hoje em dia, proporcionamos aos nossos filhos um ambiente que não é muito natural e que isso pode ter consequências. De acordo com estes estudos e observações e também de acordo com tudo o que se vai cada vez mais descobrindo no campo das neurociências e da psicologia do desenvolvimento a verdade é que deixar crianças pequenas e bebés em escolas, aos cuidados de estranhos durante todo o dia, retirar-lhes a mama quando ainda são bebés, passeá-los em contentores de plástico e deixá-los a dormir sozinhos, em quartos separados dos pais e ignorar o seu choro, podem mesmo ser considerados, tal como diz a citação acima, comportamentos de risco. Isto quer dizer que podem ter consequências graves. Não significa que terão necessariamente consequências negativas mas que há uma grande probabilidade de isso acontecer. Significa também que quanto mais comportamentos destes adoptarmos maior será o risco que estamos a correr, logo, maiores serão as probabilidades de que as consequências negativas apareçam. E essas consequências podem ir desde a criação de uma criança mais insegura que dará origem a um adulto com uma maior propensão para estados de ansiedade e depressão e maior dificuldade em lidar com o stress até ao aparecimento de patologias mais graves. Ou pode simplesmente significar que, como adultos, teremos de nos esforçar mais para nos conseguirmos sentir bem e para sermos capazes de auto-regular as nossas emoções. Esta foi a conclusão de um estudo* inovador, publicado este ano, que acompanhou 54 sujeitos, desde os 18 meses até aos 22 anos de idade e que demonstrou que um apego inseguro pode ter consequências vísiveis ao nível neuronal fazendo com que os adultos que cresceram com uma relação de apego insegura com os seus pais, se tenham tornado em adultos com uma maior dificuldade em gerir e regular as suas emoções. Este estudo observou que, nos casos das crianças que cresceram com um apego inseguro com as suas mães, aos 22 anos, quanto tentavam auto-regular as suas emoções mostravam uma maior actividade em determinadas zonas do cérebro envolvidas no controlo cognitivo ao mesmo tempo que mostravam uma actividade reduzida noutras partes ligadas às emoções. Os autores concluem que, nestes casos, estas pessoas não tinham desenvolvido uma forma eficaz de regular as suas emoções o que significava que tinham de se esforçar significativamente mais do que aquelas que tinham um apego seguro para serem capazes de passar de um estado negativo para um positivo. Ao mesmo tempo, as pessoas que tinham crescido com esse apego inseguro, tinham também uma maior dificuldade em sentir afectos positivos e acabavam por se tornar adultos com maior dificuldade em se sentirem psicologicamente ajustados. Era como se estas pessoas nunca tivessem tido oportunidade de criar no seu cérebro uma forma eficaz de lidar com as emoções negativas, de as transformar e integrar e, ao mesmo tempo, como se também nunca tivessem aprendido a integrar verdadeiramente as positivas. Hoje sabe-se que a única forma que as crianças têm de aprender a regular as suas emoções é através do contacto próximo com a mãe e com o pai. Na verdade é como se o sistema nervoso da criança, enquanto é ainda muito imaturo, precisasse de aprender com o sistema nervoso dos pais quais os caminhos certos para lidar com as emoções. Mas esta aprendizagem só se dá se houver alguma proximidade da criança com os pais e um apego seguro entre eles. Se os pais deixarem a criança entregue a si mesma e às suas emoções então o seu sistema nervoso não tem possibilidade de encontrar o melhor caminho para fazer esta auto-regulação e, ao que tudo indica, os caminhos que acaba por encontrar não serão os melhores para fazer esse trabalho.

Qual é a relevância deste estudo relativamente a estas práticas?

             Todas estas alterações ao AAE põem justamente em risco a nossa capacidade de estabelecer um apego seguro com os nossos filhos. E, como demonstram já vários estudos, ao porem em risco essa capacidade de estabelecermos um vínculo seguro que represente uma base estável para o crescimento dos nossos filhos, acabamos por por em risco também as suas probabilidades de crescerem como adultos felizes, capazes de se sentirem bem e de lidarem da melhor forma com todos os desafios e dificuldades da vida.


* Christina Moutsiana, Pasco Fearon, Lynne Murray, Peter Cooper, Ian Goodyer,

Tom Johnstone, and Sarah Halligan (2014) - Making an effort to feel positive: insecure attachment in infancy predicts the neural underpinnings of emotion regulation in adulthood. The Journal of child Psychology and Psychiatry