quinta-feira, 23 de abril de 2015

Mindfulness para pais

Mindfulness significa prestar atenção, de propósito e sem julgamentos ao momento presente. Este é um estado de atenção que pode ser mais facilmente aprendido através de uma prática de meditação mas que pode (e deve) ser integrado na nossa vida diária. Nos últimos anos este estado tem vindo a conhecer cada vez mais popularidade à medida que a ciência vai descobrindo os seus benefícios e cada vez mais profissionais – médicos, psicólogos e psiquiatras – o vão divulgando como uma excelente forma de combater o stress e de lidar com os desafios na nossa vida.

É um facto que são cada vez mais os desafios que precisamos de enfrentar nas nossas vidas e também é um facto que cada vez existem mais pessoas a sofrer com problemas relacionados com ansiedade, depressão e outras perturbações. Então é natural que se procurem cada vez mais alternativas. E existem também cada vez mais estudos a comprovar os benefícios do mindfulness, ou atenção plena, em português, para uma vida mais feliz, mais saudável e mais preenchedora. 

Com o avanço que tem acontecido no campo das neurociências estas já vieram demonstrar que, uma prática regular de mindfulness, pode até contribuir para modificar algumas estruturas do cérebro relacionadas com a resposta de stress mas não só: parece que o mindfulness pode contribuir para um retardamento de alguns sinais comuns do envelhecimento ao nível cerebral, aumentar algumas zonas relacionadas com a criatividade e até com a inteligência. Estes estudos demonstram aquilo que já se sabia há algum tempo: que a meditação pode realmente tornar-nos mais saudáveis, felizes, criativos e até mais inteligentes.


Outra das grandes vantagens do midfulness que, em boa parte, deve a sua popularidade ao trabalho de um médico dos E.U.A., Jon Kabat-Zinn, é que, desde que este médico o começou a divulgar nos anos 70 que se tornou mais fácil perceber que este é um estado ou uma prática acessível a qualquer pessoa, de qualquer idade e condição social. Antes do importante trabalho de divulgação e de investigação deste médico nesta área havia muito mais a noção de que a prática da meditação era algo difícil ou exigente e que seria apenas acessível a determinados grupos religiosos ou espirituais. Mas kabat-zinn deu um grande contributo para demonstrar que para meditar não precisamos de estar ligados a nenhuma tradição religiosa nem em nenhum tipo de retiro espiritual.

Para aplicarmos o mindfulness nas nossas vidas e para colhermos os seus muitos e variados benefícios precisamos apenas de alguns minutos de prática diária e de estarmos dispostos também a tentarmos estar presentes na nossa vida diária, seja a trabalhar, a brincar com os nossos filhos ou simplesmente no trânsito a conduzir.

Com esta prática percebemos também que a meditação não tem de ser algo demasiado trabalhoso ou inacessível a pessoas mais agitadas ou com mentes mais preenchidas, como tantas vezes se julga. Percebemos que qualquer pessoa pode meditar e que não precisamos de parar os pensamentos, como por vezes pensamos, para sentir todos os benefícios desta prática.

Benefícios do Mindfulness específicos para pais

Ser pai ou mãe é um dos maiores desafios que podemos enfrentar na nossa vida adulta.

O midfulness é uma óptima ferramenta para lidar com esses desafios porque, por um lado nos permite lidar da melhor forma com todo o stress que, tantas vezes está associado a este processo. E, por outro lado, pode ser também uma excelente ferramenta para criarmos um relacionamento com os nossos filhos que nos permita sentir verdadeiramente realizados nesta relação e que nos permita também perceber que podemos crescer juntamente com os nossos filhos e aprender a criar relações mais felizes, harmoniosas em que seremos mais facilmente capazes de transformar a nossa relação com eles numa fonte de prazer e de gratificação para ambas as partes mas também num espaço onde eles possam crescer de forma mais livre,  feliz e harmoniosa.

Para criar uma boa relação com os nossos filhos, em primeiro lugar, precisamos também de ter uma boa relação connosco. Precisamos de ter alguma capacidade de reflectir sobre a nossa própria história e de dar algum significado às experiências que vivemos. As investigações mostram que existe uma grande probabilidade de repetirmos com os nossos filhos o tipo de experiências que vivemos e de termos com eles o mesmo padrão de vinculação que tivemos com os nossos pais, a menos que alguma coisa na nossa vida, nos permita tomar consciência de tudo o que vivemos e encontrar algum tipo de significado para as nossas experiências, mesmo as mais negativas.

Todos conhecemos histórias daqueles pais que, durante toda a adolescência e início da idade adulta juraram nunca fazer com os filhos aquilo que os seus pais fizeram mas que, assim que se tornam pais, acabam por repetir exactamente os mesmos padrões. Por certo houve também alturas em que todos nos sentimos a agir exactamente como os nossos pais agiam connosco, ou pelo menos com bastante vontade de o fazer. Porque existem determinados padrões de relacionamento e de vinculação que ficam estabelecidos na nossa infância, ficam gravados na nossa memória implícita (que armazena todas as experiências importantes da nossa vida e que influencia diariamente o nosso comportamento de forma inconsciente, através da repetição de determinados padrões ou de comportamentos automáticos e certos mecanismos de defesa.

Então, precisamos de encontrar na nossa vida formas de tomar consciência destes padrões. O mindfulness pode ser uma boa ferramenta para essa tomada de consciência, porque nos permite um conhecimento mais profundo de quem somos e de como funcionamos mas, mais importante talvez, pode ser também uma excelente forma de quebrar esses padrões. Tem sido demonstrado que uma prática de mindfulness pode ajudar, por exemplo, a quebrar o ciclo da depressão crónica que é tão difícil de interromper, justamente porque permite a criação de novos padrões de funcionamento, mesmo ao nível cerebral.

Por outro lado a nossa presença, inteira, completa e livre de julgamentos é o melhor presente que podemos dar aos nossos filhos mas também a nós próprios. O mindfulness ensina-nos que podemos estar connosco independentemente do nosso estado interno. Ensina-nos a ter uma atitude de compaixão e de aceitação para connosco próprios que é fundamental para a saúde mental e para nos sentirmos felizes e bem connosco mesmos. Esta aceitação é mesmo a base da verdadeira auto-estima, de que tanto se fala hoje em dia. 


E, ao aprendermos a estar bem connosco podemos aprender a estar bem também com os nossos filhos. E, quando conseguimos estar verdadeiramente presentes na nossa relação com eles podemos ver que tudo muda. A nossa presença, inteira e de corpo e alma é o melhor presente que podemos dar aos nossos filhos. e, muitas vezes, esta presença é mesmo suficiente para vermos desaparecer tantas coisas que nos incomodavam, é suficiente para vermos a criança crescer, abrir-se e florescer verdadeiramente á nossa frente. Quando somos capazes de estar presentes com os nossos filhos, de verdade, sem julgamentos, sem preocupações, quando conseguimos estar verdadeiramente presentes de coração mas também de cabeça, na nossa relação com eles, estamos a dar-lhes liberdade de crescer, de se sentirem seguros. Estamos a dizer-lhes que eles são importantes, que a sua vida é importante para nós, estamos a dizer-lhes que eles valem a pena, que merecem todo o nosso amor. E, quando fazemos isto é verdadeiramente extraordinário perceber que, a partir daí, tudo se torna mais fácil, tudo passa a a fluir muito mais facilmente. A partir dessa nossa presença, quando nos tornamos capazes de criar para os nossos filhos um lugar seguro a partir do nosso coração, a partir dessa nossa presença completa e inteira, desaparecem os problemas de comportamento, as lutas de poder, as sessões de choro interminável. Desaparecem os gritos, as ansiedades, os medos e as culpas. Porque quando nos tornamos presentes com eles, para eles, estamos presentes também para nós. E quando estamos presentes percebemos que aqui agora está tudo bem, está tudo certo. E quando percebemos isto podemos descansar e, mais importante ainda, podemos deixar que os nossos filhos descansem no nosso amor – uma expressão de Gordon Neufeld que me faz todo o sentido. 

E quando permitimos que os nossos filhos descansem no nosso amor, quando lhes damos a certeza de que o merecem e de ele está sempre presente, eles podem também abandonar as suas lutas, ansiedades, medos, receios, agitações. Porque se sentem seguros na nossa presença e aprendem assim eles próprios a estar presentes. E ensinar um filho a estar presente, ensinar um filho que é seguro estar presente, ensinar que é possível viver sem cair na armadilha da agitação permanente, da tristeza profunda ou a ansiedade constante, é a melhor oferta que lhes podemos dar para crescerem capazes de ser felizes e com segurança que de que podem ser quem são, em qualquer situação por mais desafiadora que seja. 

Saiba mais aqui sobre o próximo curso de mindfulness para pais no Espaço Vida: http://www.espaco-vida.com/cursos/cursos-workshops.html#pais

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Educar sem bater

Há poucos dias, conversando com uns amigos que são pais de um filho um pouco mais velho que o meu surgiu uma questão que, para dizer a verdade, acho que nunca me tinham feito: se alguma vez, eu ou o meu marido, tínhamos batido no nosso filho de três anos e meio. Ainda não me tinha ocorrido escrever aqui sobre este tema, porque, para mim, é tão claro que não temos o direito de bater nos nossos filhos que, por vezes, quase me esqueço que há muitas pessoas para quem isto não é assim tão consensual. Mas esta pergunta serviu para me lembrar que, infelizmente, para muitas pessoas, a palmada ainda é realmente um recurso válido e até essencial da educação parental.

Nesta questão aquilo que estava subentendido era que, se não batemos, então como fazemos para controlar o seu comportamento? Ou que, se não batemos agora, mais tarde podemos ter alguns problemas, sobretudo quando ele chegar à adolescência. Já ouvi alguns pais de adolescentes dizerem que tinham problemas com os filhos justamente porque eles não teriam apanhado o suficiente. 

Então há aqui várias questões, dentro desta simples pergunta, a que é importante responder. 

Em primeiro lugar, é importante afirmar que considero que realmente não temos o direito de bater nas crianças. Tal como eu não tenho o direito de bater no meu marido ou em quem me chateia por essa vida fora. E podíamos ficar por aqui porque, para mim, realmente esta é uma questão básica e fundamental: não acho que as crianças sejam menos merecedoras de respeito que os adultos e se faltamos ao respeito quando batemos num adulto fazemos exactamente o mesmo quando batemos numa criança, seja  lá porque motivo for. 

Mas, se ficássemos por aqui haveria ainda outras questões fundamentais que ficariam sem resposta. 
Então, é importante também perceber o que é acontece quando batemos numa criança e quais as consequências que isso poderá ter. 

Muitos adultos que batem nos seus filhos fazem-no com a justificação de também apanharam em crianças e isso não lhes fez mal nenhum. Acredito que o dizem porque já não são capazes de entrar em contacto com aquilo que sentiram nessas alturas. Porque um dos mecanismos de defesa mais comuns para nos defender das nossas feridas antigas é justamente a negação: queremos muito acreditar que não há ali nada que ainda nos incomode ou que ainda nos doa, porque se tivermos de voltar atrás e lidar com essa dor e com toda essa mágoa que ficaram esquecidas e guardadas durante tantos anos temos muito medo de não ser capazes de lidar com isso e nos perdermos nesse sofrimento que temos andado a conter durante tanto tempo. Ou então, à custa de tanto negarmos os nossos sentimentos, acabamos mesmo por nos esquecer que eles existem, a tal ponto que já nem somos capazes de imaginar o contrário. É verdade que algumas pessoas apanham e muito e mesmo assim conseguem construir uma vida digna e minimamente equilibrada mas a verdade é que não foi por terem apanhado que o conseguiram mas sim apesar de terem apanhado, porque provavelmente houve outras circunstâncias de vida que lhes permitiram ser capazes de ser felizes, independentemente das suas feridas de infância. 

Então o que é que acontece quando batemos numa criança? 

A criança tem um instinto básico para criar uma relação de apego com os seus pais. Hoje sabemos que, desde o primeiro momento em que nascem, os bebés já demonstram uma grande predisposição para criar laços, para estabelecer vínculos com as figuras que cuidam de si. Então o bebé tem um instinto muito forte para procurar um sentimento de protecção nos seus pais. A natureza é sábia e um bebé humano sozinho nunca sobreviveria, por isso todos os bebés e crianças têm esse instinto básico que lhes diz que devem procurar segurança e protecção junto dos seus pais. Acontece que, quando um pai ou mãe batem numa criança esse instinto é posto em causa: porque afinal a pessoa que deveria proteger a criança é justamente aquela que a está a agredir fisicamente. Porque uma palmada, por mais bem intencionada que seja, não deixa de ser uma agressão física, algo que por si só, traz sempre consigo uma sensação de ameaça. Se isto acontecer demasiadas vezes a criança fica perante um dilema que, para ela, não tem solução: a mesma figura que a deveria proteger é aquela que a faz sentir-se em perigo. Então isto coloca a criança perante um conflito interno que ela não tem capacidade de resolver.

Só as crianças já bem crescidas é que começam a ser capaz de acomodar a ideia de que duas coisas aparentemente contraditórias possam co-existir, ou seja, enquanto adulta eu sou capaz de pensar que a minha mãe gosta de mim mas que ás vezes fica sem paciência ou que eu gosto muito dos meus pais mas que às vezes também me chateio com eles. Isto requer uma capacidade de pensamento elaborada, que uma criança pequena não tem. Para as crianças pequenas as coisas ou são pretas ou brancas: uma criança pequena não tem capacidade de assimilar o facto de que as coisas não são apenas boas ou más, não consegue perceber que podem existir dois lados na mesma moeda e que existem uma série de cinzentos na vida. Na verdade, existem até muitos adultos que ainda não são capazes de perceber isto de uma forma muito sofisticada. Por isso a única estratégia que a criança encontra para lidar com isso é tentar bloquear todas as sensações provocadas por aquele acontecimento e tudo o que está associado a este. A criança cria uma certa dissociação daquilo que está a sentir porque não tem capacidade de integrar de outro modo aquela situação e ela é demasiado ameaçadora, intensa e assustadora para que possa aceitar a sua presença. Este mecanismo de dissociação poderá ser justamente aquilo que está na base do facto de muitos adultos que foram agredidos pelos pais já serem capazes de sentir o sofrimento que esse comportamento provocou neles e poderá ser o que está na base dessa crença de que não lhes fez mal nenhum apanhar.

Acontece que, se abusamos muito deste mecanismo de dissociação - o que poderá acontecer se a criança está sempre a apanhar - ele acaba por se tornar uma parte integrante da nossa forma de lidar connosco e com o mundo e é muito provável que nos tornemos pessoas com uma grande dificuldade em lidar com os nossos sentimentos e em integrá-los de forma saudável. 

Por outro lado, se a criança é agredida demasiadas vezes isto pode mesmo por em causa esse seu instinto básico para se ligar e vincular à mãe ou pai e, nos casos mais sérios, isto poderá estar na base daquilo a que se chama o apego desorganizado que hoje se sabe estar na base de muitas patologias que podem manifestar-se só na idade adulta. 

Mas, mesmo nos casos mais leves - quando falamos daquilo a que erradamente se chama a palmada pedagógica por vezes - a verdade é que esta continua a ser uma agressão. Sempre que nos provocam dor, mesmo que seja ligeira, isso é sentido como uma ameaça à nossa integridade porque, para além deste instinto de vinculação, também temos um instinto básico de protecção que nos leva a evitar a dor e todas as potenciais ameaças à nossa integridade física.

Para além disto, quando um pai ou mãe batem numa criança, geralmente fazem-no por causa de uma sensação de frustração da sua parte, pela sensação de que, naquele momento, não conseguem fazer mais nada para chegar aos filhos e para modificar o comportamento destes. Geralmente, quando os pais batem nos filhos é porque a sua zanga se tornou tão intensa que não foram capazes de controlar esse impulso então, para além da questão física, há aqui também a questão psicológica: a criança sente também toda essa agressividade que acaba por interiorizar sentindo que foi por sua culpa que o adulto perdeu o controlo. O que, por sua vez, a faz sentir-se com uma má pessoa, ou uma má criança, faz com que sinta que é tão má que os pais nem conseguem manter a calma consigo. Isto transmite à criança a mensagem de que há algo de profundamente errado consigo o que se pode tornar num sentimento devastador que acaba por acompanhá-la toda a sua vida.  

As crianças nascem realmente com esse instinto básico de quererem sentir-se amadas e protegidas pelos pais, isto quer dizer que têm também um instinto básico de querer agradar aos seus pais. E quer dizer também que os pais são a sua referência e que elas aprendem a ver-se exactamente da mesma forma que sentem que são vistas. Todos nós temos o desejo básico de nos sentirmos aceites, integrados e reconhecidos. Todos temos necessidade de sentir que pertencemos a um grupo, neste caso à nossa própria família e, para isso, temos necessidade de sentir que os outros nos aceitam, nos acolhem na sua presença. Sempre que um pai ou mãe perde a paciência e o controlo com um filho seu aquilo que ele sente é que, nesse momento, ele não tem o direito de existir na sua presença, nesse momento ele não é acolhido na sua presença e perde esse reconhecimento e essa necessidade de pertença o que, para uma criança pode ser um sentimento verdadeiramente destrutivo. 

Esta sensação de que há algo errado consigo, ou de que não é aceite, gera na criança um sentimento forte de vergonha. Que muitos pais pensam que será benéfico porque assim a criança não voltará a repetir aquele comportamento. Acontece que isto não é verdade. Esse sentimento de vergonha é das coisas mais corrosivas que podemos fazer uma criança sentir. Esse sentimento tem uma fisiologia muito concreta: ele desperta a chamada resposta de luta ou fuga (neste caso, mais a fuga) que é uma resposta ao stress que prepara o corpo para lidar com uma ameaça produzindo uma série de alterações fisiológicas como uma elevação grande dos níveis de cortisol, por exemplo. Isto quer dizer que toda a fisiologia da criança se altera e este sentimento de vergonha, quando é activado deste modo, pela sensação de ameaça, é das coisas mais nocivas que a criança pode sentir porque a leva a sentir-se indigna do amor dos seus pais e faz com que ela sinta que todos os seus instintos mais básicos, de integração e de acolhimento estão a ser frustrados e que ela não tem capacidade para os satisfazer. Isto é um sentimento duro para qualquer adulto mas ainda mais para uma criança que tem ainda tão forte este instinto de ligação aos pais e essa necessidade tão grande de se sentir aceite por eles.

Então se a criança não consegue satisfazer esses instintos, se tantas vezes eles são os causadores desse sofrimento e dessa angústia intensas que a criança sente sempre é vítima desse comportamento agressivo por parte dos pais, o melhor será procurar alguma forma de minimizar essa dor, tentando ignorar esses instintos.

Se isto acontecer com alguma frequência, o que vai acontecer é que será tão difícil à criança lidar com este sentimento que o melhor será proteger-se dele procurando não sentir esse vínculo com os seus pais, ou seja, tentando o mais possível ignorar esse instinto básico que lhe diz que deveria querer agradar aos pais e sentir-se aceite por eles. Isto quer dizer que, no futuro, a tendência será para que a criança se porte ainda pior. Mas, o pior de tudo, é que quer dizer que a criança será forçada a aprender a ignorar os seus instintos e os seus sentimentos mais básicos com medo de ser magoada e de se tornar demasiado vulnerável. E aqui cresce então o típico adulto que bate nos filhos e que repete que também apanhou muito e isso não lhe fez mal nenhum.

Uma das razões que leva os pais a bater nos filhos é o facto de sentirem que precisam de os controlar mas, ao porem em causa o instinto de vinculação das crianças, as palmadas repetidas têm o efeito exactamente contrário. 

Na cabeça destes amigos estava também a questão: então como é que controlas o teu filho se nunca lhe bateste? 

Para responder a isto, em primeiro lugar é preciso abandonar esta ideia de que as crianças precisam de ser controladas. Uma criança precisa de ser aceite, precisa de ter uma boa ligação com o pai ou com a mãe e, se isso acontecer, nas coisas importantes, a criança irá deixar-se facilmente guiar. Porque, se ela ligação existir, se for sólida, se não for constantemente posta em causa, a criança sabe que pode confiar nos seus pais e confiar nos pais implica que, nas decisões importantes, a palavra destes conta muito. Confiar nos seus pais não implica necessariamente que a criança esteja pronta para desligar a televisão quando lho pedimos, ou que esteja pronta para sair de casa exactamente na hora em que achamos que deveria sair e não significa que a criança obedeça cegamente a todas as nossas ordens. Até porque uma criança que confia nos pais e que se sente acolhida, protegida, aceite e segura também é uma criança com mais espaço para manifestar as suas preferências que nem sempre correspondem às nossas. Mas, uma criança que confia nos seus pais é uma criança que, nos momentos importantes, sabe que são estes que têm a última palavra e, nos momentos em que se sinta de algum modo posta em risco, sabe que pode contar com eles para lhe mostrarem a direcção a seguir. 

E, quando os pais confiam na criança, também sabem que esse instinto está presente. Quando os pais confiam na criança e deixam que a sua natureza floresça podem encontrar uma criança que até resiste em muitas coisas mas encontram também uma criança que se torna fácil de orientar quando é mesmo preciso fazê-lo e de educar porque é uma criança que se entrega e que deixa o seu instinto funcionar e que também confia nos pais.

Uma criança a quem os pais batem sempre que lhe querem mostrar que não pode fazer algo, ao fim de algum tempo até pode deixar de ter esse comportamento mas, o mais certo, é que apareçam outros ainda mais graves porque a criança deixou de se sentir segura e acolhida pelos pais e se deixou de se sentir segura então é muito fácil que deixe de confiar nos pais. E deixar de confiar nos pais é, por um lado, deixar de os aceitar como guias ou orientadores mas também é deixar de confiar em si própria e nos seus instintos. E uma criança que deixa de confiar nos seus instintos é uma criança com muito mais tendência para fazer coisas erradas. Porque é uma criança que perdeu a sua bússola, é uma criança que deixou de procurar referências nos adultos e que não tem capacidade para as encontrar em si própria. 

Então nenhuma criança ou adolescente se porta mal por ter apanhado pouco. Mas há muitas crianças e adolescentes que se portam mal justamente porque apanharam demais e, cada uma dessas palmadas, deixou uma marca na sua capacidade de criar vínculos saudáveis e de confiança e na sua capacidade de se sentir bem, seguro e feliz consigo mesmo. E cada uma dessas marcas é mais um passo na direcção de um comportamento menos ajustado, mais desadequado e sobretudo, cada uma dessas marcas é mais um passo no caminho de um coração que sofre e que, muitas vezes, sofre tanto que precisa de se desligar de si próprio para não ter de lidar com essa dor diariamente. E quando nos desligamos de nós também nos desligamos dos outros e aí nada mais importa, deixamos de querer agradar a quem quer que seja. E uma criança que já perdeu todo o desejo de agradar é uma criança que já ninguém conseguirá controlar. Mesmo que até sejamos capazes de arranjar uma maneira de eliminar um determinado comportamento, se não formos capazes de encontrar o caminho para o coração das crianças, então não haverá maneira de os fazermos verdadeiramente seguir nenhum tipo de orientação nossa. 

Então quando achamos que uma criança se porta mal vezes demais, em primeiro lugar, precisamos de olhar para a ligação que temos com ela. Precisamos de perceber se ela se sente segura connosco, como diz Gordon Neufeld, psicólogo cujo trabalho admiro, precisamos de saber se ela se sente convidada a existir na nossa presença. E é tão simples ou tão complicado como isto: a única forma que temos de influenciar o comportamento de uma criança é certificando-nos de que ela nos quer agradar e que ela nos aceita como guias e, para isso, temos que ter a certeza de que esse vínculo ainda está intacto. Não adianta querer corrigir comportamentos sem nos focarmos no contexto em que eles acontecem: a relação. 

E é esta relação, a relação que temos com os nossos filhos e que eles têm connosco que deverá estar sempre na base de tudo e que deverá ser sempre o foco central da nossa preocupação. Se eu um dia tiver vontade de bater no meu marido uma das coisas que provavelmente me impedirá de o fazer será justamente essa preocupação com a relação. Porque se eu lhe batesse sei que esta seria fortemente afectada, como é óbvio. Então é nisto que também precisamos de pensar sempre que batemos nos nossos filhos: mais do que pensar se isso irá eliminar ou não aquele comportamento (e a maior parte das vezes não elimina, pelo menos, não à primeira) deveremos pensar no que é que isso fará à relação. 

E, se já batemos nos nossos filhos alguma vez, é sempre tempo de olhar para trás e perceber se isso alterou alguma coisa, se alguma coisa mudou dentro deles para connosco ou para com eles próprios. Se for esse o caso também é sempre tempo de falar sobre isso, de pedir desculpa e dizer que não sabíamos fazer melhor. 
Nunca é tarde para mudarmos a forma como nos portamos com os nossos filhos e nunca é tarde para reparar as relações. 

Isto é válido para todas as vezes que batemos mas também para todas as vezes que gritámos ou que nos descontrolámos e dissemos coisas que não queríamos ter dito. As crianças não precisam de pais perfeitos, que não gritam e não perdem o controlo mas, quando isso acontece, precisam muito de saber que não foi por culpa delas que isso aconteceu. Quando nos zangamos mais do que gostaríamos é importante que os nossos filhos saibam que não são eles que estão errados mas que fomos nós que não fomos capazes de nos controlar. Isto faz toda a diferença. 
E assim as criança também aprendem que, apesar de todos os conflitos, é possível reparar as relações uma lição que também pode ser valiosa para os seus relacionamentos futuros. 

Não bater numa criança não quer dizer que temos de aceitar todos os seus comportamentos, não quer dizer que, por vezes, não tenhamos de lhes impor certas coisas mas, significa que quando o fazemos assumimos toda a responsabilidade pelo nosso comportamento e não os fazemos sentir que foi só por culpa deles que perdemos o controlo. 

E isto não quer dizer que temos de fingir que gostamos de tudo o que eles fazem mas é importante mostrar-lhes que, quando não gostamos de algo, não os estamos a por a eles em causa. Não gostar de um comportamento é muito diferente de não gostar de uma criança. Acontece que os nossos filhos nem sempre sabem ou sentem isso. Por isso, sempre que os queremos corrigir é muito importante que façamos primeiro esta distinção para nós próprios e depois que encontremos forma de o por em prática.

Então, não bater não quer dizer que não podemos disciplinar ou educar mas quer dizer que temos consciência de que o nosso papel de orientadores dos nossos filhos é demasiado importante para ser posto em causa por causa de uma palmada. 

Gordon Neufeld, no seu trabalho, fala também muito da importância de não castigar as crianças com os chamados time-out's em que a criança fica durante um tempo, supostamente a pensar naquilo que fez. Porque, da mesma forma que uma palmada, o que este tipo de castigos fazem é usar a necessidade que a criança tem de se sentir próxima de nós para a atingir de algum modo. Acontece que, como este psicólogo explica, quando fazemos isto estamos a atingir a criança no seu ponto mais vulnerável: a sua necessidade de de sentir ligada a nós. E, quando o fazemos repetidamente, tal como acontece com uma criança que está sempre a apanhar a única forma que a criança tem de lidar com essa dor profunda que abala todos os seus instintos mais básicos é tentando ignorar, desligar esses instintos. E, mais uma vez ficamos com uma criança que se distancia cada vez mais de nós e de si mesma e que se torna cada vez mais difícil de educar ou orientar. 

Então como se educa sem castigos ou sem palmadas? 

Fazendo exactamente o contrário do que estes dois actos provocam: fortalecendo a ligação e convidando a criança a sentir-se segura connosco. Quando as crianças estão constantemente a fazer coisas que nos provocam não estão à procura de limites, como tantas vezes se diz, no sentido de perceberem o que podem ou não fazer. Quando uma criança faz repetidamente coisas que nos provocam e que mexem connosco significa que estamos perante uma criança que, pelo menos naquele momento, não se está a sentir acolhida. Uma criança que, pelo menos naquele momento, não se está a sentir muito ligada a nós. E, por isso a criança precisa de nos provocar porque os seus instintos lhe dizem que essa ligação é essencial e porque a única forma que ela está a ser capaz de encontrar naquele momento de preencher esses instintos e de nos sentir mais presentes é quando nos zangamos com ela. Porque, nessa altura, pelo menos toda a nossa atenção se volta para a criança e ela pode sentir que, ainda que pense que há algo de errado consigo, pelo menos nós importamos-nos com ela, tanto que até nos descontrolamos por sua causa.

Nestes casos não precisamos de aceitar o comportamento da criança mas precisamos mesmo de encontrar formas de lhe mostrar que a aceitamos a ela, que estamos presentes, sem que ele precise de procurar estratégias para sentir essa presença. Precisamos de lhe mostrar que, para usar mais uma expressão de Neufeld, ela pode descansar no nosso amor. Só assim a criança poderá seguir a sua natureza e confiar o suficiente em nós para se deixar guiar e orientar sem precisar de nos provocar.

E quando damos mais atenção a uma criança que se portou mal não quer dizer que estamos a premiar esse comportamento, mas quer dizer que confiamos na criança, que reconhecemos a sua necessidade de nos ter por perto, de nos sentir e que confiamos nos seus instintos. Estamos a dizer-lhe que confiamos nela e isso é o melhor presente que podemos dar a uma criança. Porque se nós confiamos nela ela pode confiar em si própria e uma criança que confia em si própria é uma criança que, mais facilmente, sabe fazer as escolhas certas. E só uma criança que se sente acolhida e segura é que poderá ter a confiança necessária para perceber que errou e que poderá ter também a segurança necessária para tentar um novo comportamento.


domingo, 1 de fevereiro de 2015

Palestra - Défice de Atenção e Hiperactividade

Deixo aqui os vídeos da palestra que dei no Jardim de Infância do Prior Velho, a partir de uma  iniciativa de alguns pais e educadores, para falar de Défice de Atenção e Hiperactividade. Uma visão das causas, das características e de como lidar com esta limitação.







quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Fantasmas nas nossas camas - Pais que dormem com os filhos

Há pouco tempo li uma entrevista de uma conhecida especialista do sono que criticava o facto de, segundo ela, haver casos de adultos com trinta anos a dormir com os pais. E, segundo a própria, isso começava, é claro com o problema dos pais não os terem ensinado a dormir sozinhos em crianças.

Então há aqui várias coisa que merecem ser questionadas. Em primeiro lugar, a velha crença de que precisamos de ensinar as crianças a dormir. Aqui estou plenamente de acordo com o pediatra Carlos Gonzalez quando afirma que não se ensina ninguém a dormir. Tudo que podemos fazer é criar as condições ideais para que uma criança durma e essas condições podem variar um pouco mas há uma que será fundamental em todos os casos: segurança. Porque dormir é uma espécie de abandono. Para dormir precisamos de ser capazes de abandonar o mundo, sabendo que ele estará seguro e o voltaremos a encontrar quando acordarmos mas, acima de tudo, precisamos de nos abandonar a nós. Ninguém decide adormecer, ninguém controla racionalmente o sono. Se assim fosse não teríamos tantos problemas de insónias. Dormir é simplesmente algo que deixamos que aconteça e, para que isso aconteça, precisamos de estar tranquilos e seguros. Muitos adultos têm insónias justamente por falta de segurança: porque não conseguem parar de pensar nos problemas do trabalho, ou nas contas para pagar, ou na discussão que tiveram com o marido ou mulher nesse dia.

Porque para dormir precisamos acima de tudo de confiar: precisamos de confiar que o mundo estará cá de manhã quando acordarmos e que tudo irá estar bem e precisamos de confiar que não nos acontecerá nada de mal enquanto estivermos nesse estado de inconsciência que é o sono e que implica alguma vulnerabilidade, até mesmo do ponto de vista físico. Qualquer animal, para dormir, procura um sítio seguro e qualquer mamífero procura sítios seguros para as suas crias dormirem, porque sabem instintivamente que dormir é um estado vulnerável.
E, de um ponto de vista mais fisiológico, para dormir precisamos de desligar o nosso sistema de alerta, precisamos de ser capazes de desligar o sistema de resposta ao stress que se activa sempre que nos sentimos perante uma potencial ameaça e que nos impede de dormir, excepto quando já estamos num estado de total exaustão, porque dormir seria ficarmos vulneráveis aos perigos.

Então, enquanto pais a única coisa que podemos fazer para que os nossos filhos durmam é criar um ambiente seguro. E essa segurança pode ser diferente de criança para criança. Os bebés precisam de mais contacto físico mas, por vezes esse contacto pode não chegar. Alguns bebés precisam também de movimento e isso não está errado. Muitos pais se questionam o que estarão a fazer de mal porque os bebés, para além de precisarem de colo para adormecer, também precisam de ser embalados. Isto é natural, o embalo recria as condições do útero onde o bebé se sentia tão bem e, por outro lado, o embalo activa mesmo determinadas partes do cérebro que detectam o movimento e que, só assim, podem produzir uma sensação de relaxamento e tranquilidade, desligando o tal sistema de alarme. Por algum motivo um movimento típico das crianças autistas ou com outros problemas de desenvolvimento é aquele movimento do corpo para trás e para a frente, como se se estivessem a embalar a si próprias. Isto acontece porque a criança encontra neste mecanismo algum tipo de controlo dos seus estados de stress e uma forma de reduzir um pouco a sua tensão. Este movimento também se via muito nas de crianças institucionalizadas a quem não era permitido nenhum tipo de contacto físico.

Talvez este mecanismo seja fruto da herança genética que partilhamos com outros mamíferos que andam a maior parte do tempo agarrados às suas mães, ou talvez seja herança dos nossos próprios antepassados que também estavam muito mais em movimento, porque andavam muito mais ao colo do que nós. O que é certo é que, o facto de ser universal que o movimento acalma os bebés significa que isto não pode estar errado. Logo também não será errado dar a um bebé aquilo que ele precisa. E poderá haver dias em que isto faz mais falta do que noutros, ou crianças que precisam mais desse movimento do que outras porque não somos todos iguais e não nos sentimos sempre da mesma forma.

Por outro lado também há crianças que precisam de mais contacto físico do que outras e crianças que continuam a precisar dele por vários motivos. Então, se a criança, precisa deste contacto o que é que ganharemos em tirar-lho? Apenas mais insegurança.

Outra coisa em que também é preciso pensar quando falamos de pais que dormem com os filhos é que, apesar de tudo, existe uma diferença grande entre os pais que dormem com os filhos por opção e aqueles que o fazem porque sentem que não têm outra alternativa.

Em tempos falava de co-sleeping com uma colega que trabalha num serviço de pedopsiquiatria e ela dizia-me que, nesse serviço, todas as crianças dormiam com os pais. Isto é um argumento muitas vezes usado pelos médicos que lidam com muitas famílias disfuncionais e que constatam que esta é uma realidade dessas famílias. Mas, aqui, precisamos de pensar que a partilha de cama dessas crianças com os pais não tem necessariamente de ser a culpada dos problemas da criança: antes pelo contrário, o que acontece é que, nestas famílias, existem outros problemas que esta partilha de cama pode ajudar a minimizar. Por um lado se a criança tem algum problema de relacionamento ou de desenvolvimento é natural que isto lhe cause alguma ansiedade e alguma insegurança, então também é natural que essa criança não queira ficar sozinha de noite, um momento de maior vulnerabilidade. E, por isso, o mais natural é que procure o conforto do corpo dos pais, para se sentir mais segura e protegida. Por outro lado, se os pais também sentem que há algo que não está certo com a criança, se sentem que a sua relação com ela não funciona bem também podem querer dormir com a criança como forma de se sentirem um pouco mais tranquilos em relação a isso. Sim, porque os adultos, por vezes, também precisam desse contacto físico para se sentirem seguros.

E, depois os efeitos da intenção com que se partilha a cama com uma criança também são muito diferentes. É diferente o caso de um pai que partilha a cama com o filho porque sente que esta é a única forma de conseguir descansar ou um pai que partilha a cama com o filho por opção e porque sente que esta é uma forma positiva de relacionar com a criança. No primeiro caso o que acontece geralmente é o sentimento de culpa e de medo. Na verdade as famílias em que os pais dormem com os filhos são muito mais comuns do que aquilo que se pensa mas, o que acontece, é que justamente por causa desta culpa e deste medo associados à vergonha, as pessoas acabam muitas vezes por esconder este comportamento.

Então é muito importante que se desmitifique esta ideia de que a partilha de cama é culpada de coisas muitos graves no desenvolvimento das crianças. E é fundamental que os pais percam o medo de dormir com os filhos.

Muitas vezes os pais de crianças mais crescidas perguntam-me se acho que ainda podem dormir com os filhos, dizem-me que os filhos não querem dormir sozinhos e fazem-no, quase sempre, com este misto de culpa e de vergonha de quem acha que fez alguma coisa de errada. A resposta que dou normalmente nesses casos é que, se a criança precisa realmente daquele contacto será muito mais prejudicial negá-lo do que dar-lhe simplesmente aquilo de que ela precisa - livres de culpa e de vergonhas - até que um dia ela deixe de precisar.

É verdade que um bebé precisa mais de contacto físico e da nossa presença do que uma criança mais velha. Também é verdade que será natural que uma criança mais velha consiga mais facilmente adormecer sozinha que um bebé. Mas o facto de isto ser o mais esperado não quer dizer que tenha de ser forçado. Todas as crianças têm necessidades diferentes. Há uns dias ouvi uma frase do educador do meu filho com que me identifiquei e que faz todo o sentido aqui, a propósito de outra coisa, ele dizia que não era apologista de autonomias forçadas. E realmente não se pode mesmo forçar a autonomia de uma criança. Ainda por cima as crianças são muito mais atentas aos sentimentos e às expressões não verbais mais subtis do que os adultos, isto significa que, uma criança que precisa de dormir com os pais que se sentem culpados de o fazer, sente essa culpa e acaba por interiorizar essa vergonha. Um pai que acredita que há algo de errado com o seu filho por não conseguir dormir sozinho, acaba por transmitir ao filho essa visão fazendo com que, por sua vez, esse filho acabe por interiorizar que há algo de errado consigo. Por sua vez isso acaba por gerar ainda mais insegurança, ansiedade e vergonha e, mais uma vez, procurar o conforto do corpo dos pais pode ser justamente uma maneira de minimizar o desconforto provocado por esses sentimentos.

Então, a única solução, será confiar nos nossos filhos. Saber que não é negando as suas necessidades que estas algum dia irão desaparecer.

Mais uma questão em que este artigo me deixou a pensar foi esta: e porque será que queremos assim tanto que estas necessidades desapareçam? Porquê esta necessidade de querermos afastar os nossos filhos de nós? Porquê este medo da dependência e estes fantasmas da autonomia que assombram tantas casas por aí? 


Ao ler este artigo lembrei-me da abertura de um livro do Kabat-Zinn - Everyday Blessings - que descreve a noite em que um dos filhos voltou a casa depois de ter passado a sua primeira temporada na faculdade e os pais já estavam deitados. Kabat-Zinn descreve de forma comovente a maneira como o filho foi ter com eles ao quarto e se deitou, na cama dos pais, ao comprido, em cima deles e abraçando os dois ao mesmo tempo. Nesse livro, comovente e inspirador, ele descreve esse como um dos momentos mais ricos e significativos na sua vida de pai. E fala da felicidade de sentir aquele corpo, daquele jovem adulto - que ele diz que, em bebé, carregou nos seus braços durante todo o tempo que lhe foi possível -  e da felicidade de sentir que existia ainda essa intimidade entre os dois e de sentir que esse reencontro o deixava a ele tão feliz como aos pais. Confesso que esta  imagem do filho crescido deitado em cima dos pais que estavam na cama me comoveu e marcou desde o dia em que a li e pensei que gostaria muito de ter essa relação com o meu filho, um dia, quando ele for crescido.  E, quando li este artigo foi uma das imagens que me veio à memória e que me fez perguntar que tipo de relação é que queremos ter com os nossos filhos afinal? Uma em que eles sintam que os pais estão tão distantes e afastados que mal podem tocar-lhes ou outra em que, mesmo adultos, sintam que é possível ter a proximidade e o conforto de um abraço daqueles que só damos às pessoas mesmo especiais para nós. Porque é através do corpo que damos e recebemos afecto. É através do corpo que estabelecemos relações e dormir com alguém ou simplesmente estar um pouco na cama de alguém pode ser uma maneira muito íntima de expressar esse afecto. Então, se queremos ter uma relação verdadeiramente próxima e significativa com os nossos filhos, porquê negar-lhes esse contacto?

Porque é que, para tantas pessoas, é tão chocante pensar num adulto de trinta anos a entrar na cama dos pais?

Os Fantasmas da Psicanálise 

Na minha opinião isto são ideias que vêm dos fantasmas deixados pelas teorias psicanalíticas mais antiquadas. As ideias defendidas por Freud, em relação ao édipo e a toda a excessiva sexualização da infância que este descrevia. Há algum tempo li uma entrevista de um conhecido psiquiatra, Daniel Sampaio, que dizia que as crianças que dormem com os pais acabam por exibir comportamentos sexuais precoces. Então, mesmo quando não é isto que os médicos dizem, na verdade é isto que pensam: que os pais que deixam as crianças dormir consigo, ou que as mães que dão de mamar até tarde acabam por fazer com que a criança crie algum tipo de trauma no campo da sexualidade que irá impedir o seu desenvolvimento normal e natural.

Acontece que a psicanálise - que tantos especialistas tomam como certa -  é apenas uma visão do ser humano, não é a única, não é a melhor e, em muitas coisas, nem sequer considero que seja a mais certa ou a mais útil. É uma visão do ser humano criada por outro ser humano que, na altura, se baseou nas suas próprias observações ou seja, nem sequer, podemos dizer que tenha uma base muito científica. E, se há muitas coisas que tiveram muito mérito nestas teorias - como o conceito de inconsciente que ninguém nega e que realmente foi um contributo importante para estruturar a nossa visão da consciência - existem também outras coisas que podem não fazer tanto sentido e que, na verdade nem sequer são muito úteis quando falamos de crianças e de educação. Freud tinha uma visão muito negra do ser humano, para Freud o ser humano tinha uma natureza má e egoísta que a sociedade precisava de corrigir através da educação. E, por isso, as crianças precisavam de ser domadas e educadas para não ficarem apenas a funcionar com base no princípio do prazer. Segundo Freud se as crianças não fossem educadas de uma forma relativamente rígida e com muitos limites estar tornar-se-iam uma espécie de animais insaciáveis e passariam a orientar todos os seus esforços na busca do prazer.

Freud tinha também uma preocupação excessiva com a sexualidade na infância. Se as suas teorias tiveram o mérito de reconhecer as crianças não são seres totalmente assexuados como até então se pensava, também caíram no excesso de resumir todo o desenvolvimento infantil a uma fase do desenvolvimento sexual. E, atrás disto vêm as teorias do édipo que, se por um lado também têm algum fundo de verdade, na medida em que é natural que a criança use o progenitor do sexo oposto como uma espécie de aprendizagem para lidar com esse sexo, também acho que é exagerada no sentido de acreditar e defender que a criança tem fantasias de natureza sexual com esse progenitor e que, todos os comportamentos que encorajem a proximidade física estão a dar azo a essas fantasias. E aqui acabamos por cair no excesso de fazer com as mães tenham medo de dar de mamar aos filhos ou de dormir com eles porque podem estar a contribuir de algum modo para essas fantasias e a alimentar o famoso édipo na criança. Gordon Neufeld é um psicólogo canadiano que passou trinta ou quarenta anos da sua vida a estudar o desenvolvimento infantil e a tentar perceber os vários modelos existentes e com base nisso criou um modelo do desenvolvimento que se estrutura em torno do conceito de apego e que me parece muito mais sensato e completo e bem organizado e estruturado do que o de Freud e é ele próprio que afirma que esta visão do Èdipo de que Freud falava é apenas uma má interpretação da natureza profunda do vínculo que as crianças estabelecem com os pais. Porque a partir de uma certa idade, quando tudo corre bem no seu desenvolvimento, é natural que as crianças comecem a verbalizar que querem ficar com os pais para sempre e a forma mais natural nas nossas sociedades de alguém ficar junto e declarar esse amor é o casamento, por isso, quando percebem isto, muitas vezes elas começam a dizer que querem casar com a mãe ou com o pai e geralmente escolhem o progenitor do sexo oposto porque ainda é esse o modelo de casamento que prevalece, mesmo nos nossos dias.
Então não podemos associar estes comportamentos naturais e instintivos apenas à sexualidade, porque é muito limitativo fazê-lo. Afinal se Freud, por um lado, veio libertar a mente de vários dos seus contemporâneos para quem o sexo era um tabu e veio permitir-lhes reconhecer que este era uma parte muito mais presente e muito mais importante da vida do que até então era aceite, por outro lado, hoje em dia, muitas vezes caímos no erro da sexualização excessiva. E, na verdade, isto revela até um comportamento quase esquizofrénico da nossa sociedade que vive tanto com o sexo que está presente em tantas coisas  hoje em dia - até para vender carros - e que tenta promover cada vez uma sexualidade livre e liberta de tabus mas que, ao mesmo tempo, fica cheia de medo de estar a incentivar nas crianças comportamentos perigosos nesse campo. Quando, convenhamos, uma criança que dorme com o pai ou a mãe, uma criança que mama até tarde está apenas a fazer aquilo que é biologicamente natural e os pais que cedem a esse instinto estão também a fazer apenas aquilo que a sua consciência lhes pede e, a verdade é que, a negação desse contacto físico numa altura em que a criança precisa dele é justamente o caminho mais seguro para uma sexualidade que poderá não ser muito saudável. Porque uma criança que cresce com a segurança de poder contar com a presença física dos pais quando precisa dela é uma que cresce bem e em paz com o seu corpo e isso será um dos ingredientes mais importantes para uma sexualidade saudável e feliz.

A psicanálise foi uma grande influência na psicologia, foi das primeiras teorias coerentes sobre o funcionamento humano e foi também a base das primeiras intervenções psicoterapêuticas no ocidente. Talvez por isso, ainda hoje em dia, tem uma grande influência. A psicanálise desenvolveu-se muito também no meio médico, Freud era médico neurologista e, durante os primeiros tempos do aparecimento desta teoria apenas os médicos podiam fazer psicanálise. Não sei se será esta a razão pela qual nas faculdades de medicina me parece que esta é a base de todas as cadeiras viradas para as questões psicológicas e do desenvolvimento infantil e, muito provavelmente, será por isso também que tantos médicos e pediatras ainda ajudam a levar estes fantasmas para dentro de tantas casas.
A verdade é que Freud deu um ênfase excessivo às questões da sexualidade infantil o que, por um lado, poderá ter tido o mérito de quebrar alguns tabus mas, por outro, veio criar muitos fantasmas totalmente inúteis e desnecessários.

Rogers e Bowlby - uma visão mais positiva 

Acontece que, depois de Freud, surgiram muitas outras teorias acerca do desenvolvimento humano. Uma das que com mais de identifico foi desenvolvida por Carl Rogers, o pai da psicologia Humanista e que tem uma visão um pouco oposta à de Freud: para este psicólogo, que faleceu em 1987 - tal como já defendia Rousseau, filósofo do século XVIII - o homem tem uma natureza intrinsecamente boa e precisa apenas de encontrar as condições ideais para que possa desenvolver todo o seu potencial. Uma dessas condições é aquilo a que chamou a aceitação positiva incondicional que as crianças precisam de sentir por parte dos seus pais. Segundo Rogers esta aceitação era o ambiente base de que todas as crianças necessitavam para serem capazes de desenvolver todas as suas capacidades e para viverem de acordo com a sua natureza.

Isto enquadra-se um pouco melhor na teoria de John Bowlby que desenvolveu o conceito de apego (ver artigo sobre este tema), um marco orientador e fundamental na psicologia do desenvolvimento. Na verdade Bowlby também tinha formação em psicanálise mas ele próprio fez algumas alterações no modelo psicanalítico original defendido por Freud, passando a defender muito mais a importância do estabelecimento de um vínculo seguro com a mãe na formação de toda a personalidade futura da criança. Observações essas que aconteceram com base no seu trabalho com crianças institucionalizadas e também na leitura e observações que foi fazendo até de estudos do comportamento animal, algo que também o influenciou bastante.

Acontece que, as teorias de Rogers e de Bowlby, para além de serem mais recentes que as de Freud, estão muito mais em sintonia com todas as descobertas recentes que a psicologia vai fazendo - principalmente no campo das neurociências - acerca do desenvolvimento infantil. Além de que Bowlby apoiou-se bem mais na ciência e no trabalho de outros investigadores do que Freud, desenvolvendo uma teoria que, na minha opinião, é bastante mais fundamentada.

Então é pena que estes fantasmas da psicanálise ainda se façam ouvir tanto e é pena que assombrem ainda tantas casas levando tantos pais a terem medo de fazer coisas que são e sempre foram perfeitamente naturais. E é pena que tantos profissionais de saúde e tantos supostos especialistas de desenvolvimento infantil não consigam livrar-se dos seus próprios medos e dos seus próprios fantasmas quando falam com os pais e com as crianças que, supostamente, deveriam ajudar.

E tenho mesmo muita pena que, em nome destes fantasmas que já vêm de outros séculos, haja tantos pais com medo de dar colo, de dar mama, com medo de por os filhos na cama consigo. Tenho mesmo muita pena que haja tantos pais que se assustam com os medos que estes especialistas espalham ao ponto de deixarem de ouvir o seu coração e de seguirem o seu instinto que, sem sombra de dúvidas, lhes dirá que podem confiar nos seus filhos, que os seus filhos são bons e não são monstros manipuladores a quem precisam de dizer não constantemente. Tenho mesmo muita pena que haja tantos pais que tiveram eles próprios tanta falta de colo e contacto a fazerem os filhos passar pelo mesmo em nome de uma suposta autonomia que, às vezes, parece tão importante que se sobrepõe a tudo o resto.

Então precisamos mesmo de começar a tirar estes fantasmas das nossas cabeças e das nossas camas e começar a fazer aquilo que simplesmente é mais natural para nós e para os nossos filhos. Precisamos de perder o medo e de seguir o instinto e de a acreditar nos nossos filhos e naquilo que eles nos pedem.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Yoga e ansiedade nas crianças

Muitos pais falam comigo preocupados com os comportamentos ansiosos que vêem nos seus filhos. Porque, infelizmente, são cada vez mais os casos de crianças que sofrem com a tensão em que vivem quase diariamente e são cada vez mais os comportamentos que o demonstram como, por exemplo, dores de cabeça constantes como acontece com algumas crianças que conheço.

E, a maior parte das vezes, estes pais que chegam até mim que, na maior parte dos casos, são pessoas informadas, preocupadas e atentas já ouviram dizer que o yoga pode ser uma boa solução e muitas vezes esta é mesmo a recomendação do médico de família ou do pediatra que segue a criança. Como, além de psicóloga também sou professora de yoga e também já dei aulas de yoga a crianças, então muitas vezes estes pais vêm falar comigo na esperança de encontrarem no yoga uma solução para a ansiedade dos filhos. Mas  verdade é que fico sempre com sentimentos ambivalentes nestes casos, que vou tentar explicar porque surgem.

Benefícios do Yoga para crianças


É verdade que uma prática de yoga pode ter vários benefícios para uma criança. Por um lado, do ponto de vista físico, é importante que as crianças ganhem uma maior consciência do corpo e que aprendam o que podem fazer para o manterem saudável ao mesmo que podem também aprender a ter algum prazer com isso. Também é verdade que as crianças passam cada vez mais tempo sentadas e têm cada vez menos oportunidades de mexer o corpo e de entrar em contacto com ele e de explorar os seus limites, pelo que as aulas de yoga podem ser uma boa altura para o fazerem. Uma vantagem do yoga em relação a outros desportos é o facto de não ter a vertente competitiva que está presente nos outros e que pode ser uma fonte de tensão e de ansiedade para as crianças que, cada vez mais, já estão sujeitas a tantas pressões para serem capazes e para serem as melhores em tantas áreas da sua vida. O yoga pode ser também uma boa forma da criança entrar mais em contacto com as suas emoções e de aprender a adquirir algumas estratégias e ferramentas que lhe permitam geri-las da melhor forma. Através de alguns exercícios de respiração, de relaxamento e de concentração a criança pode aprender a libertar alguma tensão, a estar mais em contacto com o seu mundo interno a ser mais capaz de gerir os seus estados. O yoga pode também ajudar na capacidade de concentração levando a criança a perceber que é possível direccionar a sua atenção e a não ficar tão à mercê das distracções. Se o professor for capaz de transmitir à criança uma atitude de aceitação e de respeito pelo próprio corpo isto pode também ter um papel importante na auto-estima da criança e na criação de uma auto-imagem positiva. Todos estes benefícios têm vindo a ser comprovados por algumas investigações que vão sendo feitas nesta área.

No entanto não acho que o yoga deva ser encarado como a primeira solução para lidar com a ansiedade e insegurança nas crianças. Até porque, as crianças mais ansiosas, são justamente aquelas que terão mais dificuldade em retirar verdadeiros benefícios de uma aula de yoga.


As crianças vivem ainda muito em relação. Os adultos também mas, nas crianças, isto está ainda mais presente. Na infância os relacionamentos que formamos com as pessoas significativas são a fonte mais poderosa de experiências e a que mais contribui para moldar o nosso cérebro e a nossa forma de lidar com o mundo e connosco próprios. As crianças nascem totalmente predispostas para estabelecer relações significativas com as pessoas que cuidam de si. E nascem também com uma tendência inata para confiar nessas pessoas e para verem o mundo através daquilo que elas lhes mostram. Assim, as crianças são autênticos espelhos da forma dos seus pais estarem no mundo. Uma criança procura nos seus pais referências para a forma como se deve comportar, para a forma como deve agir, para a forma como deve lidar com as emoções e sentimentos. 

Os bebés quando nascem passam os primeiros meses num estado de fusão emocional com a mãe, isto quer dizer que, para além de precisarem muito da sua presença e da sua disponibilidade quase constante também acabam por ser um bom reflexo das suas emoções e daquilo que a mãe vai sentido. Se a mãe está ansiosa, por exemplo, os bebés demonstram muito rapidamente essa ansiedade passando a ter um comportamento mais agitado e com mais choro. Observações feitas com mães deprimidas mostraram que os bebés dessas mães apresentavam eles próprios um comportamento semelhante ao da depressão: mostravam muito mais expressões de desconforto de mau-estar do que expressões positivas, tinham episódios de choro mais frequentes do que os filhos de mães não deprimidas e tinham uma maior tendência para se tornarem bebés que mostravam muito pouca vontade de interagir. Isto demonstra que os bebés aprendem com as mães como devem olhar para o mundo e também como olhar para si próprios. Também do ponto de vista neurológico há estudos que mostram que o organismo do bebé tem tendência para se regular através do contacto com o organismo da mãe. Por exemplo, se o bebé está a chorar é muito mais fácil acalmá-lo se a mãe estiver com ele no colo e se mantiver ela própria calma. É como se o organismo mais maduro da mãe mostrasse ao bebé como pode passar de um estado de tensão e mal-estar para um outro estado diferente, de equilíbrio.

Por outro lado, a forma como respondemos aos nossos filhos também vai moldando o seu organismo. Por exemplo, sabe-se que os bebés que são repetidamente expostos a situações de stress - como nos casos em que são deixados a chorar sozinhos – acabam por ter os seus organismos inundados de cortisol, o que faz com o seu hipocampo perca a sensibilidade a esta hormona e deixe de ser capaz de avisar o cérebro que já foi produzida em excesso, o que quer dizer que, o hipotálamo se torna incapaz de desligar a produção de cortisol e a criança passa a viver com a resposta de stress ligada quase de forma permanente. Isto significa que esta será uma criança que terá sempre muita dificuldade em lidar com os desafios. Porque o seu organismo está já num estado permanente de sobrecarga que acaba por provocar um desgaste e fazer com que lhe sobre muito pouca energia extra para lidar com desafios.

Sobretudo durante os primeiros dois anos de vida, o cérebro das crianças está em constante formação. Nesta altura são perdidas e criadas milhares de ligações neuronais. É como se a criança, durante estes dois anos, estivesse a tentar perceber em que tipo de mundo irá viver e tentasse adaptar-se o melhor possível a este. Isto quer dizer que através das experiências que os pais proporcionam ás crianças, ela vai moldando o seu  organismo e o seu cérebro de forma a criar determinados padrões. E estas experiências incluem não só a forma como os pais respondem às suas necessidades mas também a forma como vê os seus próprios pais a lidar com as emoções. As crianças aprendem mais por imitação do que pelo que ouvem e, sobretudo nos primeiros tempos de vida, elas são peritas a sentir mesmo o que não foi dito. Nos dois primeiros anos a criança usa principalmente o lado direito do seu cérebro que está ligado ás emoções e, só a partir dos dois anos de vida, com o desenvolvimento da linguagem é que a criança começa a ser capaz de usar o lado esquerdo que lhe permite racionalizar, analisar e interpretar de forma  mais elaborada o que sente. Isto quer dizer que, nestes primeiros dois anos de vida, criança absorve muita coisa e faz muitas aprendizagens apenas através daquilo que sente com os pais.



Então, quando penso em crianças ansiosas, inseguras ou com alguma dificuldade em lidar com as situações da vida, é inevitável pensar que isso estará, de algum modo ligado ás experiências que viveu com os seus pais. E, se é verdade que os primeiros dois anos de vida são determinantes no que toca a essa moldagem que vai acontecendo, também é verdade que, durante toda a infância continua a existir alguma permeabilidade que permite à criança alterar esses padrões que foram criados. Também é verdade que esta capacidade de alterar esses padrões se mantém até na vida adulta mas, acontece que, na infância, esses padrões ainda não estão tão consolidados o que facilita essa alteração.

Uma das formas mais eficazes de alterarmos os nossos padrões de funcionamento é através das relações que estabelecemos com os outros e criam determinadas experiências dentro de nós, que nos fazem segregar hormonas e neuropéptidos – substâncias que segregamos em função daquilo que sentimos e que têm o poder de influenciar e de alterar a nossa fisiologia. E, se isto é verdade ao longo de toda a vida é ainda mais verdade durante a infância: uma altura em que estamos mais receptivos, mais predispostos a estabelecer relações e deixarmos-nos moldar por elas. Na meditação do tipo mindfulness, por exemplo, que tem vindo a ser comprovada como uma excelente forma de quebrarmos determinados padrões e de alterarmos o nosso funcionamento mesmo ao nível cerebral, o que acontece é justamente o facto de nos tornarmos capazes de estar verdadeiramente em relação connosco próprios e é isso que pode fazer toda a diferença na forma como encaramos a vida.

Então, isto quer dizer que, antes de decidirmos que uma criança ansiosa tem um problema e que precisamos de encontrar estratégias para a ajudar a lidar com ele, podemos pensar que ela está apenas a fazer aquilo que aprendeu connosco ao longo dos seus anos de vida e que, por isso mesmo, uma forma muito eficaz de a ajudar a lidar com a sua ansiedade é aprendermos a lidar com a nossa.

Sem culpas, porque cada pai ou mãe faz exactamente o melhor que sabe fazer com os seus filhos e sem culpas porque apenas podemos dar aos nossos filhos aquilo que aprendemos a dar a nós próprios. Então, se queremos verdadeiramente quebrar o ciclo e ajudar os nossos filhos a lidarem da melhor forma com as suas emoções, precisamos primeiro de aprender a lidar com as nossas. Por isto, dou comigo muitas vezes a dizer aos pais que, em vez, de porem os seus filhos a praticar yoga deviam pensar em ser eles próprios a praticar. Porque, honestamente, se é verdade que as crianças ansiosas ou inseguras podem encontrar no yoga algumas ferramentas que lhes permitam lidar melhor com essa ansiedade, também é verdade que essas crianças aprenderam a sê-lo por causa de todas experiências que viveram com os pais. Então, acredito que a melhor forma de eliminar de vez essa insegurança ou ansiedade é modificar essas experiências.

Muitas vezes, justamente por causa dos nossos receios ou ansiedades acabamos por acreditar que são as pessoas de fora que podem ajudar os nossos filhos  quando a melhor ajuda é nós simplesmente estarmos dispostos a estar presentes, verdadeiramente presentes na relação que temos com eles. Então, muitas vezes os pais fazem o esforço de levar o filho a algum lado para fazer aulas de yoga, incluindo mais uma actividade nas suas agendas já tão preenchidas e atarefadas quando esse tempo seria muito mais bem empregue se o passassem com a criança, criando espaço e oportunidade para estarem verdadeiramente com ela.


A nossa presença, inteira, completa de corpo e coração é o melhor presente que podemos dar a uma criança. E, quando nos tornamos capazes de lhe dar essa presença de forma regular, com que ela possa aprender a contar, estamos a criar-lhe a possibilidade de crescer no verdadeiro sentido do termo. Essa presença dos pais tem um efeito terapêutico muito mais profundo e completo do que aquele que qualquer aula de yoga ou qualquer outra relação lhe pode proporcionar. Uma criança precisa, mais do que tudo de sentir a presença e a aceitação incondicional dos seus pais. É a falta dessa presença - que acontece, a maior parte das vezes, por causa das nossas próprias ansiedades - que está na base de todas as inseguranças com que os nossos filhos lidam. Então, antes de procurarmos no exterior a correcção e a solução para esses medos ou dificuldades que os nossos filhos enfrentam, acredito que faremos muito melhor se as procurarmos em nós mesmos. E isto implica uma grande responsabilidade, sim, é verdade. Mas é uma responsabilidade sem culpa. É uma responsabilidade apenas de nos tornarmos conscientes do nosso poder enquanto pais ou mães de uma criança mas uma responsabilidade onde não entram culpas porque, enquanto pais, também já fomos filhos e fazemos apenas o melhor que nos foi possível aprender com os nossos pais. E sem culpas também porque é essencial que saibamos que é sempre tempo de mudar aquilo que ensinamos e transmitimos aos nossos filhos. Basta tomarmos consciência de que é tempo de lidar com as nossas feridas, é tempo de quebrar o ciclo e basta tomarmos consciência de que os nossos filhos estão sempre prontos, disponíveis para nos receber e para aceitar o que temos para lhes dar, sobretudo quando conseguem sentir que estamos realmente dispostos a tentar fazer diferente. 

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Crianças Hiperactivas e Pais Ausentes

Hoje em dia fala-se muito de hiperactividade com défice de atenção (PHDA) um termo que se tem vindo a tornar cada vez mais comum, principalmente quando aplicado às crianças.

O diagnóstico 

Há vários aspectos importantes que é preciso focar sobre esta questão. Em primeiro lugar é importante falar da questão do diagnóstico e de como este é feito. Os diagnósticos, em psicologia, são feitos com base na DSM (Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders) que, com base na investigação e no trabalho de vários psiquiatras e psicólogos fornece uma lista dos sintomas mais comuns nas várias perturbações e dos critérios necessários para se decidir que alguém tem uma perturbação mental.

Então para se decidir que alguém tem uma perturbação mental é necessário que essa pessoa se encaixe nesses critérios que são definidos pela DSM. Mas, acontece que, em avaliação psicológica as coisas não são assim tão simples e, neste caso, uma das coisas que é preciso o avaliador decidir é se esses comportamentos são de facto adequados para a idade e para as circunstâncias da criança e, logo aqui, encontramos um certo grau de subjectividade que pode influenciar e muito o diagnóstico.

Por exemplo, estes são alguns dos critérios de diagnóstico que, diz o manual, devem persistir durante, pelo menos, 6 meses: dificuldade frequente em manter a atenção nas tarefas, com frequência parece não ouvir quando alguém lhe fala directamente, com frequência fala em excesso, com frequência se levanta e anda em actividades onde se esperaria que estivesse sentado, ou com frequência interrompe as actividades dos outros. Ora todos estes critérios podem ser interpretados de formas diferentes consoante a visão que tiver a pessoa que faz o diagnóstico acerca daquilo que será um comportamento esperado ou natural para uma determinada criança.

Por isso acredito que uma das razões que contribui para a fama desta perturbação é o facto de estar, muito provavelmente, a ser sobrediagnosticada incorrectamente. Porque as crianças têm cada vez menos tempo e espaço para serem crianças e, por isso é muito natural que tenham cada vez mais dificuldade em portar-se como os adultos gostariam que se portassem. Quando as crianças passam os seus tempos livres em casa, a ver televisão ou a jogar computador em vez de estarem na rua a mexer o corpo, a correr ou a jogar, quando as escolas muitas vezes nem sequer têm um recreio decente onde possam correr à vontade e pular e quando o tempo de aulas em que têm de estar sentadas a ouvir a cumprir tarefas é cada vez maior é muito natural que, uma boa parte dessas crianças, tenha dificuldade em estar sentada e em fazer o que lhe pedem e em ouvir o que lhe dizem.


Li uma vez uma notícia em que o presidente da sociedade portuguesa de pediatria dizia que estamos a criar uma geração de analfabetos do corpo porque as crianças têm cada vez menos tempo para brincarem livremente e para explorarem o corpo e os seus limites. Hoje em dia, a única oportunidade que a grande maioria das crianças tem para sentir o seu corpo é em actividades desportivas estruturadas que não lhe dão uma verdadeira oportunidade de o conhecer e explorar da mesma forma que acontece se lhes for permitido brincar livremente na rua ou em espaços amplos.

Então, isto gera realmente uma grande dificuldade em estar quieto, em ouvir, em obedecer, gera uma certa dose de mau-estar que vem de um corpo que está em crescimento e que precisa de espaço e de tempo para se mexer, para se descobrir, para se explorar à vontade sem outros limites que não os próprios que se vão descobrindo a cada dia. E estas crianças que dizemos que têm bichos carpinteiros e que preferem levantar-se e falar com os colegas do lado do que estar sentadas o tempo todo, neste contexto, apesar de tudo, são as crianças mais saudáveis. Porque aquelas que se limitam a estar caladas e a obedecer são as que já desistiram de si e do seu corpo. São aquelas que, não sendo hiperactivas, são muito provavelmente deprimidas. Mas as crianças deprimidas não perturbam os professores, não interrompem as aulas, não fazem perguntas a torto e a direito, não passam o tempo a falar e por isso não dão tanto que falar.

As causas 

Mas, por outro lado também acredito que haja realmente hoje em dia uma maior quantidade de crianças com PHDA,(que dito assim me parece um grande palavrão mas parece que as pessoas que sabem do que estão a falar usam sempre siglas e não quero ficar atrás) porque também há uma série de factores ambientais que, muito provavelmente, contribuem para isso. E quem diz crianças diz adultos também porque esta perturbação não é exclusiva das crianças.

Gabor Maté é um médico que escreveu um livro onde apresenta uma explicação muito interessante sobre esta perturbação. Este autor, que também sofre de défice de atenção, defende que esta é uma perturbação que tem origem na infância e na forma como as crianças se relacionam com os pais. Todas as crianças nascem com uma necessidade inata de estabelecer relações e de sentirem protegidas, seguras e cuidadas pelos pais (ou pelos cuidadores principais).

A neurociência mostra que a forma como os pais respondem às necessidades da criança molda a forma como o seu cérebro se desenvolve. Se uma criança é exposta a repetidas situações de stress o seu organismo começa a segregar quantidades anormais de cortisol e tem sido demonstrado que este cortisol em excesso na corrente sanguínea pode chegar a provocar uma diminuição de tamanho de algumas zonas do cérebro, nomeadamente do Cortéx Orbito-Pré Frontal (OFPC, em inglês, para usar mais uma sigla) que algumas investigações mostram que é consideravelmente mais pequeno em crianças que foram severamente negligenciadas nos primeiros anos de vida.

Então aqui a chave é esta ligação entre o desenvolvimento cerebral e a negligência que provoca um estado de stress ainda mais severo do que os maus tratos ou abusos, que já de si causam grandes perturbações. Porque tudo indica que não há nada mais grave para um cérebro em formação do que a falta da possibilidade de estabelecer relações com alguém e tudo indica que esta falta é ainda mais grave do os maus tratos que também já sabemos que podem ser muito prejudiciais. 

E é importante sabermos que esta negligência pode ser extrema, como a que acontecia em algumas instituições em que os bebés eram deixados sozinhos horas a fio sem terem ninguém com quem interagir ou pode ser mais suave quando, em casa, os bebés são repetidamente ignorados simplesmente porque os pais não têm disponibilidade para eles. As crianças nascem com uma necessidade enorme de estabelecer relações, esta necessidade é tão grande que, nessas condições de negligência extrema que eram típicas em muitos orfanatos da antiga união soviética, por exemplo, as crianças tinham uma taxa de mortalidade muito superior ao normal mesmo quando eram mantidas todas as condições de higiene e não faltavam alimentos e cuidados de saúde. Outro dos sinais desta negligência - para além de inúmeros atrasos físicos e psicológicos - encontrado na maioria destas crianças era o facto de não crescerem o que seria normal ou esperado para a sua idade mesmo quando comiam até mais do que seria normal (é relativamente comum as crianças em instituições comerem em excesso quando isso lhes é possibilitado). Estes atrasos no crescimento mostram que, quando a criança nasce num tipo de ambiente em que não lhe é permitido estabelecer relações o seu corpo desenvolve uma resposta de stress extrema, é como se partisse do princípio que o meio à sua volta não é seguro e por isso toda a sua energia tem de ser preservada para poder sobreviver. 

A resposta de Stress 

Stephen Porges, desenvolveu a teoria do Sistema Polivago, esta teoria explica que, desde que nascemos que começamos a moldar  o nosso sistema de resposta ao stress e quando o bebé ou a criança vivem em condições de stress extremo, é como se esse sistema de resposta ficasse moldado para estar ou num estado de alerta constante - despoletando a chamada resposta de luta ou fuga; ou, em casos ainda mais graves, o organismo entra numa espécie de shut-down, um mecanismo que herdámos dos répteis, os nossos ancestrais, que se fingem de mortos quando encontram uma ameaça. Este mecanismo de shutdowm que é o mais primito a que podemos recorrer e que, geralmente, é despoletado nestes casos mais extremos, pode ser o responsável por vários problemas, entre eles os atraso cognitivos e de crescimento que se encontram nestas crianças.

Mas é importante reter aqui que esta negligência não precisa de ser tão extrema para causar danos. 

Ela pode acontecer também em casa, na família, ou porque os pais estão demasiado envolvidos com os seus próprios problemas - como é o caso das mães deprimidas que tem sido bastante estudado - ou por uma questão de ignorância acerca das necessidades de um bebé ou, outras vezes, por receios que podem ter a ver também com a sua própria infância e que os impedem de estar verdadeiramente disponíveis e presentes na relação.

Porque as crianças nascem a precisar de estabelecer relações e, segundo explica Porges, quando o sistema de alerta é activado, fica desactivado o sistema de interacção social, o que quer dizer que se torna cada vez mais difícil estabelecer relações significativas porque a criança fica em modo de alerta. E aqui pode começar um ciclo vicioso em que se torna cada vez mais difícil estabelecer relações porque uma criança em estado de alerta é uma criança que chora mais e que se torna mais díficil de acolher e, quanto mais difícil é manter essa relação e fazer a criança sentir-se segura, mais intensas se tornam as tais reacções de stress que podem chegar até ao tal ponto de activar o tal mecanismo mais primitivo de shut-down em que a criança entre num estado de conservação em que apenas as funções mínimas essenciais para a sobrevivência serão mantidas.

É muito importante termos noção de que a criança nasce com uma grande necessidade de se sentir segura e protegida através do vínculo que procura estabelecer com os pais. Então tudo o que prejudique esse vínculo acaba por provocar um estado de stress e de alerta que, se for repetido várias vezes, pode ter consequências nefastas no desenvolvimento cerebral da criança. Sabe-se que é mais difícil a criança estabelecer relações de apego seguras quando a mãe está deprimida, por exemplo, porque uma mãe deprimida tem menos disponibilidade para falar com a criança e para estar presente quando ela precisa. Um dos aspectos fundamentais para se estabelecer um apego seguro é sermos capazes de responder aos sinais da criança, sermos capazes de estar em sintonia com as suas necessidades durante a maior parte do tempo. 

A criança e a mãe criam uma espécie de sintonia em que os ritmos fisiológicos da mãe ajudam a regular os do bebé. É como se o organismo mais maduro da mãe mostrasse ao bebé como deve comportar-se, ajudando-o assim a aprender a caminhar para a sua própria auto-regulação. Se a mãe não está presente, se não está disponível, se não tem nenhum contacto físico com o bebé, ou se está muito preocupada com os seus próprios problemas, esta sincronia não tem possibilidade de acontecer e o bebé precisa de começar a regular sozinho o seu organismo o que, para um bebé pequeno, é uma tarefa difícil e que obriga a despender muita energia. Por isso o seu organismo entende que não está num ambiente seguro e desencadeia a tal resposta de stress.

Isto é o que acontece também com muitos métodos de treinamento do bebé, principalmente aqueles que pretendem que o bebé durma a noite toda, porque afastam a mãe do bebé, impedem-na de ler os seus sinais e quebram essa sincronia essencial que precisa de existir entre os dois.
Então aquilo que acontece é que um bebé em stress, um bebé que não se sente seguro, não pode gastar muitas energias a desenvolver o seu organismo e por isso este desenvolvimento passa a estar limitado ao mínimo essencial. E, podem acontecer então essas alterações ao nível cerebral em que determinadas zonas não se desenvolvem porque, naquele momento, não são essenciais para a sobrevivência da criança.


E o que é que isto tem a ver com a hiperactividade? 

Gabor Maté, explica que esta zona do cérebro - o cortéx orbito pré frontal - é uma espécie de polícia sinaleiro do cérebro (outros autores chamam-lhe o controlador aéreo) o que quer dizer que é uma área que está ligada à capacidade de analisar, avaliar, seleccionar e estruturar a informação. Então, quando esta zona não se desenvolve totalmente, é natural que passe a haver algumas falhas neste mecanismo e torna-se muito mais difícil seleccionar a informação e manter a concentração nas tarefas como é típico do défice de atenção que pode ser, ou não, acompanhado pela famosa hiperactividade.

A hiperactividade pode ser uma consequência motora de não se ser capaz de seleccionar e de controlar minimamente os estímulos porque somos invadidos a cada momento, uma espécie de fuga para o desconforto e tensão que se geram quando não somos capazes de exercer este controlo interno, esta capacidade de auto-regulação. Mas, também acontece muitas vezes, que existe apenas o défice de atenção mesmo sem a parte da hiperactividade, ou esta pode ser também mais discreta, como uma tendência para roer as unhas, ou para abanar a perna constantemente, por exemplo.

Por causa desta deficiência no OFPC é que os medicamentos que geralmente se dão para esta perturbação, para espanto de muitos pais, são estimulantes, como café, por exemplo. Porque estas substâncias têm a capacidade de activar o tal polícia sinaleiro que, sem elas, é como se estivesse a dormir, para que este possa começar a fazer a tal selecção e organização.

Mas isto não quer dizer que a medicação seja a melhor solução porque, na realidade, esta só mascara o problema. Então aquilo que é preciso é, em primeiro lugar, compreender que uma criança pequena ainda tem o cérebro em formação por isso nem sequer faz sentido falar desta perturbação antes dos 3 ou 4 anos de idade. Depois é preciso também compreender que o nosso cérebro mantém uma grande plasticidade durante a infância mas também na idade adulta. O que quer dizer que a forma mais duradoura de alterar a sua estrutura não são os medicamentos mas as experiências que temos porque são estas que moldam realmente o nosso cérebro e o nosso sistema nervoso.

O que fazer? 

Em primeiro lugar então é necessária alguma cautela no diagnóstico e ter a certeza se não estamos apenas perante uma reacção à falta de espaço e de tempo para brincar e correr livremente bem como a um sistema de ensino que nem sempre é o mais adequado.

Depois, concordo com O Gabor Maté quando diz que deve ser a criança a decidir se quer ser medicada. Porque esta perturbação pode trazer consigo muito sofrimento, a incapacidade de estar presente mesmo nas brincadeiras, pode trazer consigo muitas dificuldades no relacionamento com os outros e é importante termos consciência de que a criança tem o direito de querer ver-se livre desse sofrimento. Então é importante termos noção de que a medicação pode ajudar a criança ser capaz de estabelecer melhores relações mas deve ser sempre encarada como uma ajuda temporária e nunca como uma solução permanente. Também é importante que a criança tenha verdadeiramente a possibilidade de decidir se quer ser medicada, procurando explicar-lhe as implicações deste gesto de forma a que ela as perceba e seja capaz de não se sentir diferente ou incapaz por querer recorrer a esta ajuda durante algum tempo.

Também é essencial que se perceba que, se esta é uma perturbação que tem a sua origem num sentimento de insegurança, então o que é mais importante para a reverter é encontra formas de dar à criança essa segurança. No caso de uma criança isto passa acima de tudo pela mudança na sua relação com os pais, pela construção de uma verdadeira sincronia com estes que lhe permita sentir-se ouvida, acolhida, aceite e segura na presença deles, pelo menos durante a maior parte do tempo. São as nossas experiências que moldam o nosso cérebro e as experiência mais marcantes acontecem na nossa relação com os outros, então, antes de qualquer outra coisa é aqui que devemos procurar soluções sobretudo para as crianças. Nunca é tarde para mudar a relação que temos com os nossos filhos, desde que haja vontade para isso.

Quando não é possível à criança obter essa segurança na relação com os pais, como acontece em famílias muitos desestruturadas, esta pode ser obtida com outro adulto com quem haja possibilidade de estabelecer uma relação significativa e que possa ter um papel activo e estável na vida da criança.

É verdade que práticas como a meditação ou o yoga podem também ter algum efeito porque podem ajudar a adquirir esta capacidade de nos auto-regularmos. Mas isto é válido sobretudo nos adultos. Porque nas crianças, todo o seu organismo, toda a sua natureza, está programada para obter esta regulação do contacto com os pais, da relação que estabelece com eles e esta deve ser a fonte primária e prioritária para a estabelecermos, tudo o resto são apenas pensos rápidos que podemos colocar nas feridas: até podem ajudar a sará-las mas nunca resolvem a causa.

Por último é preciso também termos noção de que, quando dizemos a um pai ou mãe que ele é responsável pela hiperactividade do filho, não significa que o estejamos a acusá-los de falta de amor. Sabemos que todos os pais amam os filhos e todos os pais fazem o melhor que sabem com as possibilidades que têm ao seu alcance. O que acontece é que os próprios pais muitas vezes também têm feridas e mágoas por resolver que afectam a sua confiança nos seus próprios instintos e na sua capacidade de lidar com os filho. Por isso, para termos a certeza de que não estamos a perpetuar um ciclo de sofrimento com os nossos filhos a primeira e a mais importante que temos a fazer quando nos tornamos pai ou mãe de alguém é cuidar das nossas feridas. Arranjar forma de deixá-las sarar, porque só assim poderemos ser realmente os pais que nossos filhos merecem.

Aqui fica uma palestra de Janeiro de 2015, sobre este mesmo tema, para quem preferir o vídeo: http://parentalidadecomapego.blogspot.pt/search/label/V%C3%ADdeo%20-%20palestra%20sobre%20D%C3%A9fice%20de%20Aten%C3%A7%C3%A3o%20e%20Hiperactividade