quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Crescer em grupo


Ultimamente tem-se falado muito de um acontecimento trágico que também me tem dado que pensar. Tem-me dado que pensar, em primeiro lugar, porque desde que sou mãe que me sinto muito mais impressionada por todos os relatos de pais que perdem os filhos e nem consigo imaginar o sofrimento porque estarão a passar os pais dos jovens que morreram tragicamente na praia do Meco há cerca de um mês atrás.
Mas tem-me dado que pensar também por causa do suposto contexto de praxes em que tudo parece ter ocorrido. E tem-me dado que pensar sobretudo porque acredito que se vivêssemos numa sociedade onde fossem mais divulgados os benefícios de uma parentalidade com apego e nos preocupássemos menos com a suposta independência das crianças os comportamentos que vemos em tantas praxes não aconteceriam. Pelo menos não tão facilmente.

O ser humano tem uma necessidade instintiva de pertencer a um grupo. As praxes que vemos nas universidades são fruto dessa necessidade numa sociedade em que é cada vez mais difícil sentirmos-nos verdadeiramente inseridos em grupos e vivemos cada vez mais solitários. Antigamente, nas sociedades mais tradicionais, nascíamos e estávamos naturalmente inseridos no grupo da família alargada que vivia mais ou menos próxima e no grupo da aldeia de que faziam naturalmente parte uma série de rituais que reforçavam esse sentimento de pertença. Hoje em dia tudo isso se perdeu, a família vive cada vez mais distante, os pais passam cada vez menos tempo com as crianças e, na maior parte dos casos, já não há rituais que nos façam sentir que pertencemos a grupo nenhum. Jonathan Haidt, um psicólogo e investigador na área da psicologia Moral, defende que o homem é parte macaco e parte abelha, ou seja, estamos de facto programados para viver em grupo e funcionamos muito melhor quando conseguimos fazê-lo. Não é por acaso que gostamos da sensação de estar num concerto, num jogo de futebol ou numa manifestação, por exemplo, sempre que temos oportunidade de nos sentir parte de um grupo de pessoas com os mesmos ideais ou os mesmos objectivos, o nosso lado abelha fica mais activo e podemos facilmente experimentar uma sensação de realização ou até de euforia, por vezes. Então o fenómeno das praxes passa por isso mesmo, por um grande desejo de pertença e de entrada num grupo.
Tudo isto é natural e, até certo ponto desejável, porque é justamente este nosso desejo de pertença e de sermos aceites que nos permite trabalhar bem em conjunto e pensar no bem comum e é também através da tomada de consciência de que temos este lado gregário, de abelha que podemos encontrar formas saudáveis de o preencher, tornando a nossa vida mais feliz e preenchida.
Mas, acontece que se passamos a infância dos nossos filhos a negar essa interdependência para a qual estamos programados e a querer torná-los independentes o mais cedo possível então estamos apenas a criar-lhes um vazio que, mais tarde ou mais cedo, terá que ser preenchido. E, quando estamos muito desesperados para preencher esse vazio, às vezes fazemos até coisas que nos podem por em perigo. Não estou a dizer que foi isto que aconteceu com os seis jovens do meco porque não conheço todos os factos para fazer tal afirmação mas estou a dizer que, o que aconteceu com eles, poderia ter acontecido com tantos outros jovens sedentos de aprovação e desse sentimento de pertença.
Também não estou a culpar os pais dos jovens que se envolvem neste tipo de comportamento. Mas, a verdade é que, como sociedade, todos nos devíamos sentir não culpados mas sim responsáveis pelo que aconteceu. Todos nos devíamos perguntar que tipo de jovens estamos a criar que precisam de se envolver  em comportamentos daqueles que vemos associados às praxes mais violentas para obterem algum sentimento de realização pessoal. Enquanto pais e cidadãos todos nos devíamos questionar sobre o que é precisa de ser mudado quando vemos jovens, ano após ano – porque este comportamento não é de agora – envolvidos em comportamentos que metem violência, humilhação e até riscos para integridade física dos seus colegas.
E, para mim, aquilo que precisa urgentemente de ser mudado é a forma como vivemos a infância dos nossos filhos. Porque, em primeiro lugar, os nossos filhos precisam de sentir que pertencem quando estão ao nosso colo, quando estão junto a nós. O primeiro grupo em que nascemos é a família e é fundamental que os nossos filhos saibam que pertencem à nossa família, é essencial que se sintam parte desse grupo antes de mais. Depois, podemos ensiná-los a encontrar outros grupos à medida que vão crescendo mas sempre com a segurança de saberem que a base, pelo menos, está formada. Com a segurança de saberem que, pelo menos, àquele grupo da família pertencem.
Precisamos também de lhes ensinar que os seus sentimentos, contam, são válidos, são importantes e preciosos. Um bebé que chora e que vê o seu choro respondido, ou uma criança que está zangada ou frustrada e sente que os pais acolhem esses sentimentos, cresce a saber identificar as suas emoções, a reconhecê-las e a dar-lhes valor. Um jovem que está habituado a valorizar as suas emoções é alguém que muito dificilmente se deixar levar por algum comportamento que as agrida. Um jovem que está habituado a estar em contacto com as emoções é alguém que, dificilmente, as ignorará ao ponto de por em risco a sua integridade física ou emocional apenas para preencher esse sentimento de pertença ou por outros motivos.
Para além disso uma criança que cresce com pais atentos às suas necessidades também é uma criança que tem muito mais probabilidades de ter um comportamento empático o que a impedirá de colocar outros em risco ou de retirar algum tipo de prazer do seu sofrimento ou humilhação. Uma criança que cresce com pais atentos às suas necessidades muito mais facilmente estará atenta às necessidades dos outros, porque vendo as suas necessidades atendidas e satisfeitas sobra-lhe muito mais disponibilidade para reparar nas dos outros. Ao contrário do que que muitas vezes pensamos aquilo a que chamamos crianças mimadas não são crianças que tiveram pais que respeitaram as suas necessidades, são justamente o oposto: são crianças com falta de mimos.
Porque tudo começa na infância, porque acredito que tudo começa na forma como tratamos os nossos filhos, também acredito que se queremos uma sociedade onde não sejam aceites comportamentos violentos, agressivos ou de humilhação, então temos que primeiro não o fazer com os nossos filhos. Ficamos chocados quando vemos jovens aos gritos uns com os outros, a dar ordens, a chamar nomes, a humilhar, então porque é que tantas vezes achamos que esta é a forma de educar os nossos filhos. É verdade que, no caso das praxes, não há nenhum ensinamento importante por trás e, com os filhos, muitas vezes achamos que gritamos porque precisamos de lhes ensinar qualquer coisa. Mas, a verdade é que, quando gritamos, batemos ou humilhamos a única coisa que estamos verdadeiramente a ensinar é que estes são modos válidos de tratar alguém. Então se queremos uma sociedade onde este tipo de coisa não aconteça, se queremos uma sociedade sem praxes violentas ou humilhantes, comecemos por não o fazer com os nossos filhos.
Isto não quer dizer que devemos sentir-nos culpados se por vezes gritamos ou damos ordens de forma um pouco mais agressiva - afinal todos fazemos o melhor que sabemos com as possibilidades que temos e todos os pais querem o melhor para os seus filhos - mas quer dizer que, sempre que o fizermos, devemos ter consciência de que o fizemos porque não soubemos fazer melhor. Quando gritarmos com os nossos filhos devemos ter noção de que o fazemos por nossa causa, porque não fomos capazes de encontrar outra estratégia para lidar com a situação, e não por causa deles. E, sempre que o fizermos, podemos e devemos mais tarde pedir desculpa, reparar a relação. É importante ter noção de que cada grito, cada castigo, cada humilhação os afasta mais um pouco de nós e lhe retira esse sentimento precioso de pertença. E se não fizermos nada para os aproximar de novo, se não formos capazes de fazer qualquer coisa para reparar a relação como dizer-lhes simplesmente que compreendemos a sua zanga, a sua frustração ou que não soubemos fazer melhor - ou não dizer nada mas apenas dar-lhes um beijo e um abraço - então vamos estar a afastá-los cada vez mais de nós. E com cada afastamento corremos o risco de que um dia a distância seja tão grande que eles já não saibam voltar. 
Acredito que todos os pais querem o melhor para os seus filhos mas também acredito que acontecimentos trágicos como este precisam de nos fazer pensar. E, para pensar, não adianta apenas encontrar consequências ou proibições para os envolvidos em comportamentos mais violentos mas é preciso encontrar as causas e perceber o que é que todos podemos fazer diferente para que não voltem a repetir-se. 
Porque mesmo que a morte trágica destes seis jovens tenha sido apenas um acidente e não esteja directamente relacionada com as praxes - não temos informação suficiente para saber o que realmente se passou - o que é certo é que veio despertar a atenção para comportamentos que, infelizmente, se tornaram comuns nas nossas universidades e que podem facilmente vir a acabar noutras tragédias parecidas. 

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