segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Birras filmadas e como podemos ajudar os nossos filhos a lidar com as emoções

Tem circulado nas redes sociais por estes dias um vídeo de um pai que filmou a filha a ter um episódio de grande descontrolo que, ao que parece, durou cerca de 45 minutos. O vídeo é bem mais curto que isso, mas confesso que não o consegui ver da primeira vez, porque me fez muita impressão. Mas, entretanto, resolvi vê-lo agora até ao final porque senti que era importante falar sobre isto. 

Primeiro, uma das questões que não pode ser ignorada é o facto desta criança ter sido filmada num momento de grande fragilidade e de ter sido exposta desta forma, que foi uma das coisas que me incomodou. Além disso num momento destes os nossos filhos precisam de apoio e da nossa presença e disponibilidade total e não me parece que esse apoio possa considerar-se total quando existe uma câmara a filmar e a preocupação com todos os que irão ver depois essa filmagem. 

Mas, depois de ver tantas pessoas a partilhar este vídeo e de perceber que muitas até apoiavam e louvavam a atitude do pai, fiquei ainda mais incomodada e foi por isso que decidi escrever este texto. 

No vídeo vemos uma criança muito aflita, com grande dificuldade de integrar e regular as suas emoções, como é perfeitamente normal e natural nesta idade. O que já não me parece tão natural assim é a duração deste episódio e o comportamento tão passivo do pai. Na verdade aquilo que vi no vídeo, para além de uma criança em sofrimento, foi também um pai perdido. Sem querer julgar o pai e a forma como educa a filha, sem fazer ideia daquilo que poderá ter levado aquela situação e sem duvidar das suas boas intenções ao tentar estar presente e dar algum espaço à filha para expressar o que estava a sentir, a verdade, é que me pareceu que ele não fazia ideia daquilo que deveria fazer para acalmar a criança. E isso é grave porquê? Porque passa para a criança uma sensação de medo e de insegurança acerca dos seus próprios sentimentos - que são tão intensos que nem os adultos sabem lidar com eles - e acerca da sua relação com o pai - que é tão frágil que ele nem sabe o que pode fazer para a acalmar. E se isso se repetir muitas vezes irá facilmente criar na criança um sentimento mais ou menos permanente de ansiedade e insegurança. 

As crianças não lêem as nossas intenções mas sentem as nossas emoções e observam o nosso comportamento, sem fazerem ideia das razões que estão por trás dele. E, o comportamento do pai, neste caso o que mostrou à filha, foi que não podia fazer nada que a ajudasse a regular as suas emoções e a sair daquele estado. A certa altura a criança aproxima-se dele e agarra-se ao pescoço do pai. O contacto físico é uma forma de ajudar a acalmar uma criança mas, neste caso, nem isso parece ter resultado muito porque foi a criança que precisou de o procurar. É verdade que quando as crianças estão assim nem sempre querem que as abracemos ou peguemos ao colo e, por vezes, temos de lhes dar algum espaço, sim. Mas isso é diferente de esperar que sejam elas a procurar-nos. Porque isso passa uma mensagem de que não sabemos ler as suas emoções, não as conhecemos assim tão bem e não sabemos como ajudá-las. E pior ainda, passa uma mensagem, de que são elas que têm de nos procurar, mesmo nos momentos mais difíceis. São elas que têm de estar no controlo da situação. E isso impede-as de descansar e relaxar. Como é que podemos relaxar e descansar de verdade nos braços de alguém quando sentimos que somos nós que temos sempre de pedir ajuda e de procurar essa pessoa? Quando a pessoa mostra que não nos conhece, que não sabe o que fazer, como lidar connosco? 

Enquanto pais e mães somos nós que temos sempre de assumir a responsabilidade da relação e isso implica também que sejamos  nós, sobretudo nos momentos mais difíceis, a assumir o controlo. Para isso temos de estar atentos e perceber quando é que já podemos aproximar-nos e dar um abraço ou um colo, não apenas ficar à espera que a criança o procure. 

Temos a obrigação de ajudar os nossos filhos a lidar e a regular as suas emoções. E, se isso demora 45 minutos a acontecer então também temos a obrigação de nos questionar sobre o que poderá estar a correr mal e talvez pedir ajuda. 

É verdade que é importante que as crianças chorem e é verdade que é natural que se descontrolem de vez em quando. E também é verdade que precisamos de aceitar e acolher as suas emoções. Mas, nada disto implica ficarmos quietos à espera que tudo passe. Aceitar e acolher emoções não tem nada a ver com passividade. Não significa que não podemos fazer nada para as modificar e, sobretudo, não significa que, enquanto pais, não temos obrigação de ajudar os nossos filhos a sair desses estados intensos que eles simplesmente não têm capacidade para regular sozinhos. E ficar ao lado de um filho que está nesse estado sem fazer nada não ajuda porque uma criança não tem capacidade para perceber que estamos ali por ela se não lho mostramos claramente com gestos, palavras e atitudes. 

Na verdade, mesmo como adultos, nessas situações precisamos que sejam os outros a assumir o controlo e mostrar que são capazes e estão dispostos a ajudar-nos. Nessas alturas não chegam as palavras bem intencionadas, precisamos mesmo de acções, de gestos que mostrem que os outros sabem lidar connosco e que estão dispostos a fazer o que for preciso para nos ajudar. 

Porque nestas alturas são as partes mais primitivas do cérebro que estão no comando, estamos em pleno modo de alerta e, nesse modo de alerta não respondemos às coisas mais subtis, precisamos mesmo de gestos e atitudes concretas e bem visíveis para que tenham algum efeito. 

Aquilo que uma criança precisa numa situação destas, acima de qualquer outra coisa, é de sentir que o adulto assumiu o controlo e sabe o que fazer. E quando não sabemos então precisamos de fingir porque não é possível acalmar uma criança se não nos sentirmos no controlo da situação. E foi isso que me pareceu faltar muito neste vídeo. 

Então o que fazer nestas situações? 

Primeiro acolher os sentimentos e emoções dos nossos filhos significa que somos capazes de nos colocar no lugar deles, de perceber minimamente o que os fez ficar assim. E depois temos de ser capazes de lhes transmitir isso sem uma atitude de julgamento, sem lhes transmitir que aquela emoção é errada. Isto faz-se dizendo que compreendemos que eles se sintam zangados, frustrados, tristes ou que acharmos mais adequado. Mas precisamos de fazer isso com empatia e para isso também não será natural que estejamos completamente calmos e tranquilos. 

É verdade que ajuda muito a controlar o episódio se os pais mantiverem o seu auto-controlo. Mas manter o auto-controlo não é ficar totalmente passivo. Precisamos de entrar em contacto com a emoção da criança, para sermos capazes de lhe mostrar que não faz mal sentir aquilo e que aquela emoção pode ser transformada e integrada. Para isso precisamos de não ter medo de a sentir. Só assim podemos ser verdadeiramente empáticos. Há uma diferença entre sentir a emoção e deixarmos-nos arrastar por ela. A criança é arrastada por ela porque ainda não desenvolveu o seu cortéx-pré-frontal que nos permite reflectir sobre o que estamos a sentir. Por isso ainda ficam completamente à mercê das emoções nestas alturas e por isso é que nós temos obrigação de as ajudar a controlarem-nas. Nós, idealmente, já o teremos desenvolvido e por isso podemos mostrar aos nossos filhos que é possível sentir medo, raiva, tristeza, frustração, etc. e não perder o controlo. 

Quando falamos aos nossos filhos sobre o que estão a sentir também ajudamos a desligar as partes mais primitivas do cérebro e a ligar as mais racionais o que também irá contribuir para a sua auto-regulação e para o desenvolvimento do tal cortéx-pré-frontal. 

Então não precisamos de nos manter completamente calmos quando os nossos filhos estão a perder a cabeça e, na verdade, isso nem sequer é realmente adequado. Porque as nossas emoções também têm que espelhar as deles, um pouco, de preferência com o auto-controlo que eles ainda não têm. Claro que não adianta nada se perdermos a cabeça também, mas é preciso encontrar o equilíbrio entre sentir aquilo que eles sentem (num grau um pouco menor, é claro) mas manter o auto-controlo necessário para perceber e explicar a situação aos nossos filhos e mostrar-lhes como se pode fazer esse caminho para regular e integrar as emoções. 

E precisamos de lhes mostrar que é seguro expressarem essas emoções connosco mas essa segurança só pode existir se nós também sentirmos que conseguimos lidar com a situação, que não precisamos de nos retirar para um lugar de passividade total nem precisamos de reprimir completamente aquela emoção ou a sua manifestação.

Falo também disto com mais pormenor na última parte do meu livro Amar não Basta. 


quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Autoridade, amor e autonomia

Ultimamente tenho tido mais contacto com algumas crianças que, apesar das suas diferenças têm uma coisa em comum: a ansiedade provocada por uma educação em que não existe autoridade o que faz com que elas acabem por ficar numa posição de liderança em que uma das consequências é essa ansiedade que vem da incapacidade de relaxarem que só acontece quando sentem que existe, pelo menos, um adulto que é capaz de cuidar das suas necessidades. Porque os instintos da criança lhe dizem que deve procurar nos adultos uma figura de protecção e de orientação se, por algum motivo, ela não consegue encontrar isto nos pais e em nenhuma outra pessoa, essa criança ficará numa posição muito difícil, num estado de alerta constante porque sente que precisa de se proteger a si mesma. Muitas vezes aquilo a que chamamos crianças mandonas e mimadas, que não conseguem lidar com a frustração ou que não são capazes de cumprir ordens nem obedecer e que, mesmo com os amigos, procuram sempre mandar, são crianças que vivem numa ansiedade profunda, porque sentem que precisam de cuidar de si mesmas e isto não está de acordo com o que o instinto lhes pede. E isto acontece quando há uma ausência total de autoridade por parte dos adultos que cuidam delas. (Já falei disto aqui.) 

Essa ausência pode acontecer por vários motivos diferentes. Vou aqui falar resumidamente de alguns. 

1. Quando os pais tiveram uma educação autoritária e querem fazer melhor 

Por vezes acontece que os pais destas crianças tiveram eles próprios pais muito autoritários e sempre cresceram com a consciência de que não queriam fazer o mesmo aos filhos.
Mas é importante percebermos que uma educação autoritária pode deixar tantas feridas como uma educação em que não existe autoridade nenhuma. 
Naquilo a que chamamos uma educação autoritária, que era um modelo comum há pouco tempo atrás, o que acontece é que a criança não é realmente vista, acolhida ou protegida. Porque os pais estão demasiado preocupados em impor a sua vontade para serem capazes de acolher os sentimentos da criança, é fácil ela crescer com um sentimento de solidão e tristeza. E, quando o adulto associa esses sentimentos negativos a essa atitude autoritária é natural que não a queira repetir. 

Mas é preciso tomarmos consciência que neste caso, a parte que está a tomar esta decisão ou a adoptar esta atitude, é a nossa parte ferida. É a parte da criança que ainda está zangada com os pais porque não foram capazes de a acolher e que por isso jurou ser diferente. Então isto quer dizer que estamos a tomar essa atitude mais por nós, do que propriamente pelos nossos filhos. 

Este tipo de educação também pode ter deixado gravado na nossa memória implícita que tomar uma atitude forte é algo mau, quando os nossos pais nunca foram capazes de fazê-lo com respeito e com afecto. Quando sentimos na pele os danos e as feridas de não sermos acolhidos, compreendidos e aceites por pais muito autoritários, fica gravado na nossa memória implícita que a autoridade é algo negativo e que prejudica as relações, porque é só assim que a conhecemos. Mas o problema, nestes casos, não estava na autoridade em si e sim na forma como ela foi exercida. 

Então é preciso desmontar isto e perceber que podemos exercer autoridade sem sermos autoritários e que é possível encontrar esse equilíbrio que nos permite impor a nossa vontade quando é preciso fazê-lo mas, ao mesmo tempo, respeitar, aceitar e acolher os nossos filhos. 

É preciso que tenhamos a coragem de entrar novamente em contacto com essa criança ferida que ainda vive em algum lugar dentro de nós e explicar-lhe que agora está tudo bem, que podemos exercer a nossa autoridade a partir de um lugar de amor. Quando somos autoritários, geralmente, estamos a fazê-lo a partir do medo, do medo de não sermos respeitados, obedecidos, do medo de não sermos suficientemente capazes e competentes. Então é preciso distinguir entre a autoridade que vem do amor e de saber que temos um lugar importante na vida dos nossos filhos e o autoritarismo que vem do medo de perdermos esse lugar importante. E perceber que a verdadeira autoridade só pode ser exercida através do amor e que é possível exercê-la com todo o respeito e carinho pelos nossos filhos. 

Na verdade, exercer esta autoridade na vida dos nossos filhos significa justamente respeitar e compreender a sua natureza. 

No meu livro contei um episódio, que aconteceu quando um dos meus filhos tinha seis anos, que ilustra bem a forma como os nossos filhos sabem que é suposto serem guiados e orientados por nós, quando estão ligados ao seu instinto. 

"Passou-se um dia, à hora de jantar, alguns dias depois dele ter estado a tomar antibiótico por causa de uma infecção num dente. As primeiras tomas foram bastante difíceis, porque ele não gostava do sabor e era preciso que insistíssemos muito e repetíssemos que aquilo era importante e tinha mesmo de beber até ao fim. Alguns dias depois disto....teve alguns problemas de intestinos e, por isso, a médica recomendou que lhe déssemos um probiótico. Então, nesse dia ao jantar, já tinha juntado a água ao probiótico e estava  pedir-lhe que o bebesse, coisa que ele não queria fazer. Nesta altura esses problemas já estavam resolvidos e era apenas uma questão de reforçar um pouco mais a flora intestinal, mas não era realmente imprescindível. Como estávamos já os dois cansados, eu acabei por lhe dizer que se não o queria tomar, não tomava e pronto, com um ar entre o frustrado, o impaciente e o aborrecido. Mas, perante esta minha atitude, ele fez uma cara triste e disse com uma voz sumida e lágrimas nos olhos: mas assim não estás a fazer o que é melhor para mim." in Amar não Basta. 

2. Quando os pais estão demasiado feridos

Por vezes acontece que os pais estão tão feridos pela sua própria infância que não têm simplesmente capacidade de por as necessidades dos filhos à frente das suas. Quando vivemos uma infância com faltas demasiado grandes e constantes fica uma espécie de buraco negro dentro de nós que nos impede de focar nas necessidades dos outros porque as nossas são tão grandes que aparecem sempre primeiro. Nos casos mais extremos temos os psicopatas que são verdadeiramente incapazes de considerar as necessidades das outras pessoas. 

Mas podemos ter também aqui as personalidades narcisistas, em maior ou menor grau, em que também existe uma certa dificuldade para se focarem nas necessidades das outras pessoas. Uma mãe ou pai narcisista age, a maior parte do tempo, em função das suas próprias necessidades e não das dos filhos. E isto gera insegurança na criança que não se sente realmente acolhida e protegida e faz com que ela sinta que precisa de cuidar de si mesma. E muitas vezes também dos pais. 

Mas, em casos menos graves, também pode acontecer que, simplesmente ainda não fomos capazes de sarar as nossas feridas e acabamos por ficar demasiado presos a elas. Quando uma mãe ou pai estão demasiado preocupados, ansiosos ou deprimidos, torna-se muito mais difícil focarem a sua atenção na criança porque os seus próprios problemas acabam por ocupar demasiado a sua atenção. Isto também transmite à criança que não é seguro confiar naquela pessoa e que tem de cuidar de si mesma e por isso acaba por ter necessidade de ficar no lugar do controlo, com toda a ansiedade que isso lhe traz. 

Isto também pode acontecer quando os pais estão demasiado inseguros e com medo de assumirem o seu papel de liderança. 

Nestes casos por vezes o que acontece é que passam os filhos a sentir que precisam de cuidar dos pais porque os vêem como sendo demasiado frágeis. Porque o instinto das crianças lhes diz que precisam de assegurar essa ligação importante, elas acabam, inconscientemente, por assumir esse cuidado com os pais, o que muitas vezes se torna um peso que carregam toda a vida. 

Muitas vezes acabamos por estimular isto inconscientemente quando dizemos constantemente aos filhos que precisam de nos ajudar. Lembro-me de uma vez ter ouvido uma professora dizer a duas crianças gémeas que se estavam a portar mal que precisavam de ajudar a mãe porque ela estava doente e não era capaz de cuidar deles assim. Esta mãe estava com alguns problemas de saúde e a professora estava a querer ajudá-la ao ver os rapazes a fazerem uma série de disparates que a mãe não estava a conseguir controlar. Isto foi há muitos anos, antes ainda de eu ser mãe, mas não me esqueci porque senti que, apesar de a intenção ser a melhor, aquela professora ainda complicou mais as coisas àquela mãe. Porque a última coisa que qualquer criança precisa de sentir é que os pais não estão capazes de tomar conta de si. Claro que não tem mal nenhum dizer-lhes que estamos doentes uma ou outra vez, quando existe uma boa relação e a criança sabe que aquilo passa. O problema neste caso é que a doença daquela mãe era crónica e, se as crianças já estavam agitadas e ansiosas, ainda ficaram mais ao ouvir dizer que a mãe não era capaz de cuidar delas. É muito bom sermos honestos com os nossos filhos mas há casos em que a insegurança ou a nossa fragilidade precisa de ser escondida para sermos capazes de cuidar das necessidades deles. Queremos que os nossos filhos colaborem connosco mas não que nos ajudem, porque pedir ajuda coloca-nos num papel frágil e dependente quando deveríamos transmitir o contrário. 

Também pode acontecer quando lhes transmitimos demasiadas vezes que não sabemos o que fazer com eles ou quando desabafamos sobre a forma como nos sentimos tristes ou perdidos por causa deles. Claro que é importante que os nossos filhos nos vejam tristes quando estamos tristes ou zangados e que tomem contacto com uma forma autêntica de expressar os sentimentos, mas isto é diferente de lhes dizer que eles nos deixaram tristes ou desorientados com o seu comportamento. Porque quando isto acontece coloca-nos a nós numa posição de fragilidade ao mesmo tempo que lhes dá uma sensação de responsabilidade e de peso que eles não estão preparados para carregar porque ainda não tem capacidade para assumir essa responsabilidade. 

Também acontece quando temos medo de lhes dizer que não apenas porque não sabemos se vamos ser capazes de lidar com as reacções. Muitos pais, principalmente em público, têm medo de lidar com o choro dos filhos e preferem ceder em algumas situações apenas para não terem de o enfrentar. Mas é preciso aprendermos a lidar com as lágrimas dos nossos filhos e é preciso também que eles saibam que não temos medo da sua zanga, da sua frustração e da sua tristeza, para que eles próprios não tenham medo do que sentem e para que nos encarem como um porto seguro. Se temos medo das demonstrações mais intensas dos nossos filhos estamos a transmitir-lhes a mensagem de que esses sentimentos são perigosos mas também de que não somos capazes de os acolher. E isso gera insegurança, por isso é preciso convidar as lágrimas também de vez em quando e mostrar-lhes que é seguro chorar e também é seguro zangarem-se connosco quando não fazemos o que querem porque continuamos a amá-los e a aceitá-los mesmo com esses sentimentos demonstrados. 


3. Quando a autonomia se torna num objectivo em si mesma

Por vezes acontece pensarmos que é preciso dar espaço a uma criança para tomar as suas próprias decisões e deixá-la fazer sozinha tudo o que consegue para estimular a sua autonomia. Há alguns modelos educativos que se baseiam um pouco nesta premissa de que não devemos fazer pelos nossos filhos nada que eles já consigam fazer sozinhos. 

Mas a verdade é que isto pode provocar alguns estragos. Acredito que devemos ouvir as crianças e tentar conhecer os seus gostos e as suas motivações e que é muito importante saber escutá-las mas não acredito que as devemos deixar tomar todas as decisões e nem sequer acredito que as devamos deixar tomar as decisões mais importantes. Isto quer dizer, que devemos sempre ouvir a criança nas decisões importantes e saber o que ela sente, mas não devemos deixar essas decisões nas suas mãos. E, em tudo aquilo que envolve a relação, a iniciativa tem de partir de nós mesmo. Por exemplo, não acredito que devemos esperar até que uma criança nos diga que tem fome para lhe dar comida, nem sequer devemos dar liberdade a uma criança pequena para ir à cozinha servir-se sempre que tem vontade. Fazer isto de vez em quando até pode não ter grandes implicações mas, por norma, é bom que a criança sinta que somos capazes de a alimentar, que somos capazes de conhecer as suas necessidades e de as adivinhar mesmo antes dela as expressar. A comida tem um valor muito simbólico e muito emocional ao mesmo tempo. Alimentar os nossos filhos não passa apenas pelo valor nutritivo mas também pelo gesto simbólico mas com bastante peso de mostrar que somos capazes de cuidar dele e que estamos disponíveis e atentos para o fazer e também que os conhecemos e sabemos do que precisam. 

A verdadeira autonomia acontece espontaneamente. Não podemos impedir uma criança de crescer mais do que impedimos uma semente de se tornar árvore, quando encontra as condições ideias para fazê-lo. Então se criarmos essas condições a criança terá o desejo de se tornar autónoma espontaneamente e não precisamos de fazer nada para o estimular, tal como não fazemos nada para uma árvore crescer a não ser regá-la e ter a certeza de que tem tudo o que precisa. 

E uma das condições essenciais para o crescimento saudável dos nossos filhos é sentirem que somos capazes de os proteger, cuidar e orientar. Só assim eles podem verdadeiramente relaxar. Enquanto isto não acontecer terão de estar sempre em alerta e tensão e a carregar um peso muito maior do que aquele que deveriam enfrentar e é daqui que vêm muitos problemas de ansiedade e de comportamento que nem sempre sabemos resolver. 

Muitas vezes os pais ou até educadores deixam as crianças entregues a si mesmas a tomar várias decisões diárias, desde a roupa que vestem até outro tipo de coisas e depois queixam-se que elas não conseguem seguir orientações e nunca querem cumprir ordens. Quando deixamos a criança demasiado entregue a si mesma é natural que ela crie muitas resistências a seguir as nossas orientações porque está num papel de liderança. E, se muitas vezes isto é confundido com autonomia, a verdade é geralmente nestas situações depois aparecem alguns problemas com que os pais não sabem lidar como discussões constantes e várias explosões e problemas de comportamento que mostram uma grande dificuldade de gerir toda a ansiedade que se acumula quando uma criança passa demasiado tempo entregue a si mesma.

Como lidar com isto 

A primeira coisa que precisamos de fazer é perguntar-nos se somos capazes de convidar a dependência. Os nossos filhos têm ser capazes de depender de nós porque só assim se sentirão seguros. Mas para isso nós não podemos ter medo do que essa dependência representa. E precisamos de ter a certeza de que estamos preparados para assumir o nosso papel de guias e orientadores dos nossos filhos.

Mesmo nós, enquanto adultos, não existimos como ilhas isoladas, precisamos de ter uma ligação segura com alguém para nos sentirmos felizes. Os seres humanos não existem no isolamento, precisamos de saber que alguém cuidará de nós, que alguém virá quando chamarmos, que alguém está disponível para nos acolher e ouvir. A verdadeira autonomia acontece quando não temos medo de depender dos outros, quando sabemos confiar, quando somos capazes de sarar as nossas feridas e deixamos de ter medo de nos entregar a alguém. Esse é o verdadeiro crescimento: saber que já não precisamos de nos proteger e de agir em função da nossa criança ferida porque existe, pelo menos uma pessoa no mundo em quem podemos confiar, com quem podemos relacionar-nos sem medo de sermos feridos, abandonados ou rejeitados. E, para os nossos filhos, essa pessoa somos nós, precisamos de ser nós se queremos realmente construir uma ligação segura com eles. Se queremos que cresçam felizes, tranquilos e capazes de construir uma vida verdadeiramente rica e preenchida.

Vivemos numa sociedade obcecada com a autonomia mas em que tão poucos são realmente autónomos. Não é por acaso que temos tantas pessoas que fogem de si mesmas através de dependências menos aceites como as drogas ou ao álcool mas também daquelas mais toleradas como as compras, a televisão ou até o trabalho. Não é por acaso que temos tantas pessoas que precisam de psicofármacos para serem capazes de funcionar minimamente, não é por acaso que temos números tão elevados de ansiedade e depressão. Porque não somos realmente autónomos, por isso precisamos dessas muletas. Porque algures no nosso passado não encontrámos todas as condições de que precisávamos e por isso ficámos com muito medo de crescer. E como sentimos esse medo de crescer, de algum modo, temos medo que os nossos filhos também não cresçam e por isso tentamos compensar estimulando a autonomia por vezes de uma forma excessiva e desajustada. 


E, paradoxalmente, ao mesmo tempo que tentamos estimular essa autonomia de formas inadequadas também temos algum medo dela porque nunca se viram tantos pais a impedir os filhos de correr e brincar livremente, de subir às árvores e de andarem sozinhos na rua como  nos nossos dias. Porque algures dentro de nós essa criança ferida também ainda não sabe se será capaz de acolher o choro das nossas crianças quando elas se magoarem. Essa criança ferida quer a todo o custo mantê-las seguras e protegidas só que ainda não conseguiu perceber que a única protecção que lhes podemos dar é deixá-las crescer livremente mas seguras da nossa presença. Deixá-las partir para o mundo sabendo que podem sempre voltar para nós e que seremos sempre capazes de as confortar apenas porque existe essa ligação inquebrável entre nós que não as pode proteger das feridas que o mundo faz mas pode dar-lhes coragem e resiliência para as sarar no conforto do nosso amor e dos nosso colo. 

terça-feira, 5 de novembro de 2019

Curso de Comunicação neuro-consciente

"É impossível não comunicar" é um dos axiomas da teoria da comunicação humana, que me lembro de aprender na faculdade e de que nunca me esqueci. De facto comunicamos todos os dias, de várias maneiras diferentes, não apenas quando falamos. Comunicamos com o nosso corpo, com os gestos que fazemos, com o tom de voz que usamos, com as expressões faciais e com tantas outras coisas mais ou menos subtis de que nem sempre nos apercebemos. Uma boa parte da comunicação acontece de forma inconsciente. Também estamos constantemente a processar sinais da comunicação das outras pessoas e, durante a maior parte do tempo, também o fazemos de forma inconsciente. 

A teoria polivaga explica que temos uma capacidade chamada neurocepção que nos permite fazer essa avaliação constante não só das pessoas que estão perto de nós mas também do ambiente em que nos inserimos. Tudo o que faz parte do ambiente à nossa volta influencia a maneira como nos sentimos e as nossas reacções. A neurocepção faz-nos ler e interpretar constantemente os sinais do nosso corpo em reacção ao ambiente externo, às outras pessoas ou em reacção a algo que venha de dentro de nós mesmos. E também é esta capacidade que, por vezes, nos faz entrar em estados de alarme, mais ou menos intensos que, por sua vez, vão também condicionar a nossa forma de comunicar e de nos relacionarmos com as pessoas à nossa volta. 

Existem algumas fórmulas muito válidas de praticarmos uma comunicação mais consciente. Gosto muito do Marshal Rosemberg e do seu modelo de Comunicação não violenta que nos ensina a comunicar as nossas necessidades respeitando as outras pessoas e de forma a que elas não fiquem numa posição defensiva, o que aumenta muito a probabilidade de sermos realmente ouvidos e de termos essas necessidades preenchidas. Este é um modelo muito válido e interessante, o problema é que não é nada fácil aplicá-lo quando alguma coisa já fez disparar os nossos botões de pânico e estamos em pleno estado de alarme. 

E estes estados de alarme acontecem com alguma frequência, sobretudo nas relações mais íntimas, como entre pais e filhos ou em relações de casal, porque são também aquelas que despertam em nós sensações e emoções mais intensas. É este estado de alarme que tantas vezes nos faz gritar, ralhar ou dizer coisas de que mais tarde acabamos por nos arrepender. 
E acontece também muitas vezes não termos total consciência de que estamos nesse estado de alarme, sobretudo quando ele é um pouco mais ligeiro. Isso quer dizer que também não teremos consciência de que a nossa comunicação está a ser afectada por esse estado de alarme. 

Então a primeira coisa a fazer, para melhorarmos a nossa comunicação com os outros, é tomarmos consciência desses estados. Isso faz-se entrando em contacto com o corpo e treinando-nos para estarmos mais atentos aos seus sinais. Para isso o Mindfulness pode ser uma ajuda preciosa, porque nos ensina a escutar e a acolher as sensações do nosso corpo sem precisarmos imediatamente de as analisar ou corrigir, como muitas vezes temos tendência para fazer no nosso dia-a-dia. É através desta tomada de consciência do corpo e dos seus sinais que podemos mais facilmente começar a perceber o que é que desperta o nosso alarme, quais são os nossos gatilhos. E o simples facto de nos tornarmos mais conscientes dos nossos botões de pânico e daquilo que acontece quando estes disparam, também nos ajuda a lidar melhor com essas situações que sentimos como ameaçadoras e a reduzir muito o seu impacto na nossa vida. 

Para descobrirmos isto ajuda também termos alguma consciência da nossa história pessoal. Porque as experiências que vivemos sobretudo as mais intensas e aquelas que aconteceram nos primeiros anos das nossas vidas vão deixando algumas marcas que definem aquilo que sentimos como ameaçador. Na verdade não existe nada mais ameaçador para qualquer ser humano do que sentir que está a ser ameaçada a ligação com as pessoas mais importantes da nossa vida. Mas aquilo que nos faz sentir isso varia de pessoa para pessoa e depende muito das nossas experiências. Então, entrar em contacto com a nossa própria história e perceber aquilo a que se chama o nosso padrão de apego também é importante para conhecermos os nossos gatilhos. E é muito útil para melhorarmos os nossos relacionamentos, sobretudo com os nossos filhos. 

Neste curso de comunicação vamos explorar todos estes pontos importantes: vamos aprender algumas formas de comunicação mais consciente, mas vamos também, sobretudo perceber que precisamos de entrar em contacto connosco, de conhecer a nossa história, de identificar os nossos gatilhos e os nossos sinais de pânico para sermos capazes de aplicar mais facilmente essas fórmulas. Vamos aprender também a identificar melhor os nossos estados de alarme para podermos lidar melhor com eles. E perceber o impacto que a nossa história de vida tem naquilo que desperta o nosso alarme e também no tipo de resposta que é despoletada por ele. 

Vamos fazer isto através da exposição teórica destes temas e de alguns conceitos importantes mas também através de exercícios e da partilha de experiências que irá acontecendo ao longo das quatro sessões. 

É um curso que pode ser útil para melhorar o relacionamento entre pais e filhos, mas também entre casais ou para qualquer pessoa que sinta que gostaria de melhorar a sua comunicação e a sua compreensão do impacto que esta pode ter na sua vida e nos seus relacionamentos. 


sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Adolescências compridas e rituais imaturos


Estamos outra vez naquela altura do ano em que se vêem perto das universidades uma série de jovens com uma espécie de farda - que só por si já demonstra bem a insensatez de tudo aquilo a que está associada uma vez que é exactamente a mesma quer faça chuva quer faça sol, quer estejam 10 ou 40 graus centígrados - envolvidos em actividades que envolvem gritos e humilhações várias a um outro grupo de jovens que ainda não tem o direito de vestir a tal farda e que se vai deixando mandar, humilhar e dirigir.

Este é um fenómeno a que é difícil ficar indiferente e que, apesar de não ter números oficiais, me parece ter crescido bastante sobretudo na última década.  Por isso é importante compreendermos o que estará na origem deste crescimento e porque ele pode ser encarado como um dos sinais que algo não está a funcionar como deveria na nossa sociedade. 

Adolescência mais longa 

Primeiro é importante termos consciência de que, neste momento, nas sociedades ocidentais, temos a mais longa adolescência da história da humanidade. Os nossos jovens entram cada vez mais cedo na adolescência e saem dela cada vez mais tarde: há cem anos atrás a idade média para o aparecimento da menarca andava por volta dos quinze anos hoje, em média, acontece aos doze. E, se nessa altura era perfeitamente natural que rapazes e raparigas de dezassete ou dezoito anos já estivessem casados e a trabalhar, integrados na sociedade como adultos, hoje ainda precisam de mais algum tempo até os considerarmos realmente aptos a desempenhar esse papel.

Com o prolongar desta fase que estaria de certo modo programada para ser apenas uma transição relativamente rápida do estado de criança para o estado de adulto é natural que surjam algumas complicações para as quais ainda não temos resposta.

Falta de rituais de passagem 

Nas sociedades tradicionais havia sempre ritos de passagem importantes para marcar a transição de um estado para o outro e a entrada na vida adulta. Nessas sociedades a adolescência era vista muito mais como uma ponte entre dois estados do que como um estado em si mesmo. Aliás a palavra adolescência tem origem no latim e significa crescer para, o que nos mostra que é suposto que seja apenas uma fase transitória entre dois estados. Esta definição é importante porque influencia a forma como nos relacionamos com os adolescentes: se nos lembrarmos que eles não são crianças nem adultos, mas que estão algures entre os dois, fica mais fácil percebermos aquilo de que precisam e saber de que forma devemos relacionar-nos com eles.

Nas nossas sociedades perdemos esses rituais que os jovens tentam, de algum modo, recriar com as praxes académicas.
O problema deste tipo de ritual é que eles não são criados e suportados pelos adultos que deveriam ainda ser a referência e o modelo desses jovens mas vão sendo improvisados pelos próprios.

Um ritual de passagem tradicional cumpre uma função específica de ajudar o jovem a despedir-se do seu estado anterior e a sentir que está pronto para entrar na vida adulta. Os rituais de passagem tradicional são feitos com o apoio dos adultos envolventes e servem para ajudar à integração na sociedade adulta, ao mesmo tempo que ajudam os jovens a tomar consciência das suas novas responsabilidades mas também das suas capacidades procurando transmitir-lhes uma sensação de poder e competência, através do simbolismo das tarefas que eles precisam de realizar e que poderão desempenhar um papel importante na construção de uma nova auto-imagem.

Porque esta é realmente a tarefa principal da adolescência: a capacidade de criar uma nova imagem de si mesmo, agora separada da família e a capacidade de se afirmar e integrar na sociedade com essa nova consciência de si e do seu papel na vida e na comunidade. Ora nada disto é conseguido com as praxes: antes pelo contrário até. Porque aquilo que vemos nas praxes são jovens imaturos e incapazes de se encontrarem e de criarem uma verdadeira autonomia.

Condições necessárias para uma transição segura, para que o amadurecimento se torne possível:

Para que um adolescente encontre a sua identidade, para que seja capaz de se descobrir de se conhecer e de se afirmar e integrar sem precisar de se perder de si mesmo são precisas algumas coisas fundamentais: primeiro é preciso que lhe tenha sido permitido encontrar a segurança de ter ligações fortes e estáveis com as pessoas mais importantes da sua vida, idealmente os pais, e que estas lhe tenham demonstrado que é seguro estar no mundo, explorá-lo e explorar-se a si mesmo; depois é preciso que essas pessoas continuem a ser uma referência e um modelo a seguir. Para isso é preciso que elas se mantenham por perto, presentes e disponíveis mas que, ao mesmo tempo, saibam dar o espaço necessário aos jovens para que estes se possam descobrir e olhar para dentro sem medo. E isso é algo que falta muito aos adolescentes dos nossos dias: esse tempo para olhar para dentro e a segurança de não terem medo daquilo que irão encontrar por saberem que terão sempre alguém, mais maduro e consciente, que estará presente para os ajudar a lidar com isso.

Na verdade as praxes são também o sintoma de um fenómeno bastante comum no nosso tempo e que está na origem de muitos problemas: o fenómeno da orientação para os pares - nome dado pelo psicólogo canadiano Gordon Neufeld a este fenómeno que faz com que os adultos deixem de ser modelos e referências para os jovens que passam assim a querer agradar apenas aos outros jovens e que nos coloca numa posição muito mais secundária do que aquela que seria desejável. É este fenómeno que podemos observar tantas vezes quando comentamos que hoje os jovens não respeitam os professores, por exemplo. Isto acontece sempre que os adultos deixam de ser uma referência. É fácil observar que, pela primeira vez na história também, os ídolos dos nossos adolescentes são, em grande parte, também eles adolescentes. E um adolescente, visto que está também ele em transição, não será com certeza o melhor modelo a seguir para outro adolescente. 

É um lugar comum dizermos que os adolescentes precisam de encontrar o seu grupo e que é natural que procurem esse sentimento de pertença. É verdade que nesta fase a necessidade de pertencer a um grupo se torna mais forte porque os adolescentes, por estarem em transição, têm alguma tendência para se sentirem sozinhos (porque a auto-descoberta tem sempre uma componente grande de solidão inevitável) mas também porque nesta altura há um instinto grande de querer encontrar o seu lugar no mundo, na sociedade, fora da família. Para as crianças tudo o que é mais importante é pertencer à família, para um adolescente é preciso sair dela e é muito fácil ceder à tentação de a substituir por um grupo.

Mas é importante compreender que a procura desse sentimento de pertença não pode e não deve levar à perda da individualidade e é exactamente isso que acontece quando temos grupos de jovens que se vestem da mesma maneira, falam da mesma maneira e se portam da mesma maneira. Isto significa que houve um processo de maturação que não chegou a acontecer como deveria. Se pensarmos nas crianças, por volta dos dois ou três anos de idade, é muito comum começarem a querer imitar tudo o que os pais ou irmãos mais velhos fazem ou dizem. E faz sentido que assim seja porque, nessa fase com a imaturidade característica e própria deste estágio, é só assim que conseguem ter o sentimento de pertença que lhes dá a segurança necessária para crescer. Mas, se tudo correr bem com o seu desenvolvimento, vão começando a encontrar outras formas de se sentirem seguras e ligadas às pessoas importantes. Estes adolescentes, na verdade, ainda não desenvolveram esses mecanismos mais complexos que lhes permitem sentir-se ligados às pessoas importantes e continuam a portar-se como crianças de dois anos que precisam de ser iguais a elas para se sentirem ligadas a essas pessoas.

Porque é que isto é um problema?

Primeiro porque mostra que algo correu mal no seu desenvolvimento, depois porque não permite que esse desenvolvimento continue a acontecer. Cria um bloqueio. Não podemos construir uma relação verdadeira com os outros se nos perdemos de nós sempre que estamos com eles. Se não conseguimos agarrar-nos com força suficiente à nossa identidade quando estamos com os outros - que inclui os nossos gostos, as nossas motivações e os nossos valores - então também não conseguimos criar ligações verdadeiras com eles. Ficamos presos a uma identidade e a um comportamento tribal em que qualquer coisa que seja diferente nos faz sentir ameaçados, porque acreditamos que vamos perder essa ligação com os outros se formos diferentes deles. Estas ligações que dependem dessa identificação mais superficial são muito fracas e facilmente ameaçadas. Por isso é que as crianças precisam tanto que os pais mostrem constantemente que estão seguras, que gostam delas e que se esforcem para manter a ligação e também é por isso que é tão fácil assustarem-se quando nos zangamos com elas. Porque a capacidade de guardarem dentro de si esse amor e de se sentirem seguras com ele ainda é muito limitada.

É preciso haver maturidade para sermos capazes de nos agarrar ao amor dos outros e pelos outros mesmo e ainda mais quando existem diferenças grandes entre nós. E para isso temos que nos sentir seguros também com quem somos, com a nossa identidade. Então, não é demais dizer que este comportamento tribal que as praxes representam, mesmo que de uma forma simplista, está na base de tudo o que também acaba por levar às guerras, à intolerância e a comportamentos como o racismo e a xenofobia. Porque todos eles têm na sua origem este medo de nos sentirmos ameaçados por aquilo que é diferente. 

Uma pessoa madura, adulta e segura de si não tem tanta necessidade de entrar em tribalismos porque também não se sente tão ameaçada pela diferença. Isto não quer dizer que não tenha necessidade de pertencer a um grupo, já que somos seres sociais e sabe-se que essa pertença a um grupo pode estar também na base da nossa satisfação com a vida mas é preciso distinguir entre os grupos que anulam a nossa identidade e autonomia, como as seitas e as praxes que funcionam de formas muito semelhantes, e aqueles onde nos é permitido estar realmente com as pessoas, em relações autênticas, em que não precisamos de nos perder de nós próprios.

Então precisamos de olhar para este fenómeno das praxes e compreender que é apenas um sintoma de uma falta grande no desenvolvimento destes jovens e tentar compreender de que forma é que poderemos preenchê-la no futuro. E isso começa com a capacidade de criarmos ligações seguras e de não termos medo de estar presentes, disponíveis e de coração verdadeiramente aberto para os nossos filhos ao longo de toda a sua vida. E de não termos medo de assumir e reclamar esse papel de guias e de orientadores também com os adolescentes que tiverem um papel importante nas nossas vidas. 




segunda-feira, 24 de junho de 2019

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Bullying, competividade e emoções

Hoje acordei a pensar em Bullying, algo que infelizmente parece cada vez mais presente no mundo real mas que se encontra ainda mais facilmente nas redes sociais. É importante falar deste fenómeno e compreender como é que ele acontece e também porque é que as redes sociais o tornam tão fácil, tão comum e tão presente. 

Fazer bullying é tratar mal alguém com o objectivo de nos sentirmos por cima, de nos sentirmos melhor, de nos sentirmos mais espertos mais capazes, mais competentes, etc. Quando alguém faz bullying isso significa que, naquele momento, o seu único foco é conseguir esse sentimento de que é melhor do que o outro, seja em que domínio for. Então isto quer dizer que essa pessoa, pelo menos naquele momento, não está focada em sentimentos nem emoções, mas apenas em ter esse sentimento de conquista, de prazer momentâneo de que foi capaz de vencer o outro. 

Alguém que tem uma necessidade constante de fazer isto é alguém que, provavelmente, ao longo da sua história precisou de se defender muito, precisou de se fechar às emoções, aos sentimentos e precisou muito de se sentir importante e especial. Todas as crianças precisam de sentir-se especiais, sobretudo nos primeiros anos de vida, todas as crianças precisam de se sentir únicas, apreciadas, capazes, competentes e especiais aos olhos das pessoas importantes para si. Quando isso não acontece é muito natural que a criança procure outras formas de se sentir especial e a competitividade excessiva pode ser um reflexo disso mesmo. Quando uma criança precisa repetidamente de ganhar nos jogos, nas corridas ou até mesmo nas notas isso pode querer dizer que aquela criança está à procura desse sentimento de que é boa, capaz, competente, única e especial que, deve vir, em primeiro lugar dos pais e não pode estar dependente das suas conquistas ou da apreciação dos outros. 

Muitas vezes temos medo de fazer os nossos filhos sentirem-se especiais, como se isso estivesse associado a uma incapacidade de lidarem com o mundo e com as frustrações. Por isso é importante explicar que fazer uma criança sentir-se especial não é o mesmo que satisfazer todos os seus desejos ou aceitar passivamente todos os seus comportamentos. Não é o mesmo que fechar os olhos aos seus erros ou fracassos mas é simplesmente mostrar-lhe que a amamos apesar destes. Mostrar que esse amor não depende de nada daquilo que eles fazem mas que está simplesmente presente e não é posto em causa por nada que eles possam fazer. 
Todas as crianças precisam de ver o brilho no olhar dos pais apenas porque estão presentes, apenas porque existem, apenas porque acabaram de entrar na sala. 

Quando esse brilho nunca existiu ou esteve demasiado escondido por todas as outras preocupações que os pais tantas vezes têm então a criança cresce sempre com a sensação de que precisa de preencher esse sentimento de que é especial para alguém e irá procurar formas de o fazer. A menos que essa falta tenha sido tão grande que ela desista simplesmente de si e do mundo e de acreditar ou de esperar alguma coisa dos outros. 

Então alguém que tem um comportamento de bully está simplesmente a tentar preencher essa falha da única forma que conhece: humilhando os outros. Isto acontece sobretudo entre pares, já que, quando todos estamos em igualdade de circunstâncias se torna mais fácil fazer sobressair essa necessidade de competir. Quando crescemos com essa sensação constante de que falta alguma coisa, se estamos rodeados de pessoas iguais a nós, como numa turma em que todos têm a mesma idade, por exemplo, é mais fácil sentirmos que essas pessoas estão a competir connosco por esses mesmos recursos que, inconscientemente, nos habituámos a sentir que são escassos. Então, precisamos desesperadamente de sentir que lhes passamos à frente. 

Se ainda não desligámos completamente as nossas emoções podemos fazê-lo simplesmente tentando ter melhores notas que os outros, ou ser melhores no desporto ou em alguma outra coisa em que nos sintamos capazes de ficar por cima. Mas, se já fomos tão feridos na nossa capacidade de confiar  e gostar dos outros que precisámos de fechar o coração para sobreviver então torna-se muito fácil entrar nesse jogo constante de humilhar e de tentar rebaixar os outros, sem sequer nos preocuparmos com aquilo que estarão a sentir. 
E depois temos as outras pessoas da turma, ou do grupo que, podem facilmente ir atrás desse comportamento apenas porque querem também sentir-se especiais e entrar num grupo dá-nos esse sentimento de pertença e de união de que todos precisamos. E, mais uma vez, se as nossas feridas forem demasiado grandes podemos ficar mais focados nesse prazer temporário de nos sentirmos parte de um grupo, mesmo que para isso tenhamos que seguir um líder que maltrata alguém, do que nos sentimentos da pessoa que está a ser mal tratada. Até porque o sentimento de que somos nós contra alguém é sempre algo que serve para unir as pessoas e criar essa sensação de grupo que dá alguma gratificação temporária e ajuda a preencher essas falhas. 
Sobretudo na adolescência em que uma das tarefas é justamente a de pertencer a um grupo, porque é esse sentimento de pertença a um grupo que também nos ajuda a separar na família, algo que faz parte dos instintos naturais de um adolescente. 

O que fazer quando os nossos filhos são vítimas de bullying 


Não serve de nada tentar falar com um bully e muito menos dizer-lhe que nos magoou. Porque isso só irá alimentar o seu sentimento de vitória, de conquista, de quem conseguiu ficar por cima. 
Então quando sabemos que alguma criança ou jovem, ou mesmo adulto, foi ou está a ser vítima de bullying o mais importante é focarmos a nossa atenção na vítima, primeiro, e não no bully. 
Se for possível, a primeira coisa a fazer é  retirarmos a criança da situação, afastando-a dessa pessoa ou grupo, falando com os adultos responsáveis sempre que isto acontece numa escola, para tentarem intervir e proteger a criança do ataque, afastando-a das situações em que ele acontece. Claro que isto tem que ser feito sem que a criança sinta que está a ser penalizada ou que é ela o problema. 

Depois é fundamental que essa criança tenha uma ligação segura com alguém com quem possa falar sobre isso. Não podemos evitar que os nossos filhos sejam magoados mas podemos dar-lhes um colo para falarem sobre isso e para vivenciarem as suas emoções mais dolorosas sem precisarem de as esconder em alguma parte de si. E isso é a coisa mais importante que podemos fazer por alguém que sofre: dar-lhe um espaço para lidar com essas emoções, dar-lhe um ombro para chorar e um colo onde possa sentir-se seguro e acolhido. Se a criança ou jovem tiver a segurança de saber que existe na sua vida, pelo menos uma pessoa, com quem tenha essa ligação segura, uma pessoa que a aceita, que a acolhe e que a ajuda a lidar com a dor e com os seus sentimentos ela estará preparada para enfrentar essas dificuldades e maus tratos do mundo sem que eles causem estragos demasiado grandes. 
A coisa mais importante que podemos fazer pelos nossos filhos ou jovens com quem trabalhamos é mesmo esta: garantir que essa ligação segura existe com, pelo menos, um adulto. É esta ligação que protege de verdade e que lhes dá espaço para poderem entrar em contacto com os seus sentimentos e serem capazes de aprender a lidar com as emoções. Esta ligação não os impede de serem magoados ou maltratados mas garante que a dor desses maus-tratos não se torne demasiado grande para que possa realmente provocar estragos nas suas vidas. 

Depois precisamos de olhar para o bully como alguém que também foi ferido mas que se fechou de forma a não ter consciência dessa ferida. Então aquilo que precisamos de fazer com esse bully, se nos for possível e quando não fomos nós a vítima, claro, é também sermos capazes de criar com ele uma relação de segurança Uma relação em que ele possa confiar que é seguro voltar a sentir, voltar a entrar em contacto com as suas emoções. Sem este trabalho que só pode ser feito por um adulto seguro, confiante e verdadeiramente disponível, nunca será possível lidar de forma verdadeiramente eficaz com este problema e mudar o comportamento do agressor. 

E sem criarmos condições para que essas ligações existam nas vidas dos nossos filhos nunca iremos acabar com este fenómeno tão presente nos nossos dias. 

Porque é que as redes sociais potenciam os fenómenos de bullying 


Porque é muito fácil chamar nomes a alguém que não estamos a ver. Quando falamos através de um ecrã não vemos o rosto das pessoas, não ouvimos o seu tom de voz, não temos qualquer tipo de pista das que normalmente usamos para perceber como é que as pessoas se estão a sentir. Por isso é que as redes sociais também dão azo a muitos mal entendidos: porque nas redes sociais, através de um ecrã, ficamos todos completamente analfabetos no terreno emocional. Isto porque é a comunicação não verbal que nos mostra como é que os outros se sentem e que influencia a nossa forma de comunicar com eles. Quando falamos com alguém ou quando alguém fala connosco estamos constantemente a avaliar, de forma inconsciente, a sua comunicação não verbal: o tom de voz, a prosódia, as expressões faciais, os gestos, etc. E nas redes sociais isto não acontece, por isso não temos nenhuma pista de como o outro se está a sentir e isso torna-nos praticamente analfabetos do ponto de vista emocional. Os emojis com expressões foram uma forma de colmatar isso mas são muito insuficientes quando comparados com os circuitos mais complexos que temos vindo a  desenvolver ao longo de milhares de anos da nossa história. Por isso é muito fácil surgirem mal entendidos, mesmo quando comunicamos com boas intenções. 
E também se torna muito fácil mal tratar alguém que não estamos a ver como reage. E, mais uma vez, aqui também procuramos sentir-nos parte de um grupo apoiando quem mal trata ou sentir-nos líderes desse grupo rebaixando e criticando outras pessoas. 
Não estamos programados para lidar com ecrãs, mas sim com pessoas. Ainda temos muito a aprender com as novas tecnologias e com a forma como lidamos com elas. E infelizmente, parece que também ainda temos muito que aprender sobre as nossas emoções e sobre como lidar com elas de maneira mais construtiva. 
Por isso e para que isto não aconteça a melhor coisa que podemos fazer pelos nossos filhos é não ter medo de estarmos verdadeiramente presentes nas suas vidas e de os ajudar a lidar com as suas próprias emoções, dores e frustrações sempre que elas acontecem. 



sexta-feira, 5 de abril de 2019

Entrevista - Páginas Soltas

Para quem quiser ouvir deixo aqui o link para uma entrevista da rádio Torres Novas, no programa Páginas Soltas, com a Sandra Barbosa.

Entrevista