sexta-feira, 27 de junho de 2014

Estarmos presentes com os nossos filhos

Todos sabemos que as crianças precisam da atenção dos pais. Para uma criança, sentir a presença dos pais, é tão essencial como ser alimentada ou protegida do frio ou calor. Com os bebés esta atenção passa muito pela presença física que, nos primeiros meses, é mesmo essencial. Mas, à medida que as crianças vão crescendo, esse contacto físico - que deve ser quase constante nos primeiros meses - vai, gradualmente, começando a tornar-se um pouco mais espaçado. E, se tudo estiver a correr bem, as crianças vão, naturalmente, encontrando outros interesses no mundo para além do pai e da mãe. 

Acontece que, muitas vezes, principalmente com as crianças mais crescidas, caímos no erro de pensar que essas novas fontes de interesse podem substituir a nossa presença. Ou pensamos que, como elas já se entretêm com outras coisas, podemos até estar presentes do ponto de vista físico mas sem estarmos verdadeiramente presentes do ponto de vista emocional, porque vamos aproveitando para fazer outras coisas, como vir à internet, ao facebook, falar ao telefone, arrumar a casa, etc. 

Outras vezes o que acontece é que até gostaríamos de estar mais presentes mas sentimos que não somos capazes porque não podemos deixar de pensar nas coisas que ainda temos para fazer, ou de aproveitar para fazer algumas dessas coisas ou porque, simplesmente, não estamos habituados a estar no presente como as crianças naturalmente estão. Então podemos sentir que não é suficientemente estimulante ou interessante para nós tentarmos estar no mundo delas, podemos sentir que é aborrecido repetir o mesmo jogo vezes sem conta, ou ler a mesma história até já sermos capazes de a repetir de cor e salteado. 

Acontece que, mesmo com crianças mais velhas, a nossa presença é fundamental e faz toda a diferença do mundo. É através dessa presença que as crianças se sentem verdadeiramente vistas, ouvidas, acolhidas. É essa presença que lhes dá o sentimento de pertença e de que realmente fazem parte das nossas vidas que é essencial para que cresçam com a confiança e segurança de se sentirem dignas do nosso amor e de que estão no lugar certo. 

As crianças aprendem a ver-se a si mesmas através dos nossos olhos. Somos como uma espécie de espelho, através do qual os nossos filhos aprendem quem são. Então é muito importante que esse espelho lhes mostre que são pessoas importantes, dignas do nosso amor e da nossa atenção. E, a melhor forma de lhes mostrarmos isso, é simplesmente estando presentes. Quando não estamos presentes é como se lhes disséssemos que não são suficientemente importantes ou interessantes para cativar a nossa atenção. Mesmo que não seja nada disto que lhes queremos dizer. 

Mas estarmos verdadeiramente presentes e disponíveis nem sempre é fácil e, muitas vezes, não sabemos bem como fazê-lo. 

O mindfulness é um estado de atenção que pode ser traduzido como Atenção Plena e que é uma forma de treinarmos a nossa mente a estar mais presente, sem os julgamentos e as análises que normalmente surgem de forma espontânea e constante. (ver artigos sobre este tema aqui e aqui) Esse estado aprende-se melhor com uma prática de meditação formal mas o objectivo é que passe a ser aplicado a toda a nossa vida diária. E os momentos com os nossos filhos são uma excelente altura para treinar esta capacidade de simplesmente estamos presentes, sem julgamentos. 

A nossa presença total é mesmo o melhor presente que podemos dar um filho. É essa presença que nos permite sentir ligados à outra pessoa. É essa presença que pode fazê-los crescer e florescer no nosso amor e no conforto de se sentirem plenamente acolhidos por nós. 

Modelagem emocional e neuronal

Quando uma mãe está grávida, o bebé que tem dentro de si, é uma outra pessoa mas, de certo modo, ainda não o é completamente, ainda faz parte dela. É uma pessoa separada que começa a formar-se mas, no início das nossas vidas, ainda sentimos a vida praticamente só através daquilo que as nossas mães sentem. Quando o bebé nasce começa a formar a sua individualidade que, nos primeiros meses de vida, ainda quase não existe. Durante os primeiros tempos fora da barriga o bebé reflecte as emoções e sentimentos da mãe de uma forma ainda muito intensa. Só com o passar dos meses é que o bebé começa a diferenciar as suas emoções das de quem o rodeia. 

Alguns estudos mostram que os bebés precisam de estar em contacto com a mãe ou com o pai para regular o seu próprio organismo. A temperatura do bebé, por exemplo, é mais facilmente mantida se este estiver em contacto com o corpo da mãe o que significa que, através deste contacto, o bebé precisa de gastar menos energia para manter uma temperatura corporal estável. Este mecanismo é um dos responsáveis pelo sucesso do contacto pele com pele para salvar vidas de bebés prematuros. 

Da mesma forma também o sistema neurológico do  bebé é regulado pela presença da mãe ou do pai. Em relação às emoções - que são processadas no sistema límbico - vários investigadores já afirmam que a presença do pai ou da mãe e a ligação que existe entre estes e a criança, ajuda-a a regular o funcionamento do seu próprio sistema límbico e das suas emoções. É por isto que se torna fundamental a presença de um adulto que se mantenha calmo quando a criança está descontrolada, porque de facto, é como se o nosso sistema límbico - ao manter o seu estado de equilíbrio- ensinasse o da criança a regular-se e a voltar a um estado de equilíbrio. Quando a criança está num estado de desequilíbrio e não tem a presença de um adulto que a ajude, essa regulação acaba por acontecer mas não da forma mais eficaz. Quando as crianças são entregues a si mesmas em alturas de descontrolo o que acontece é que o seu sistema encontra a saída mais fácil para lidar com aquela emoção que, a maior parte das vezes, consiste numa espécie de desligar emocional que pode causar vários bloqueios e contribuir para um afastamento das emoções que se mantém pela idade adulta. Quando os pais estão presentes, disponíveis e calmos, a criança tem oportunidade de aprender a integrar aquela emoção e a passar de um estado de descontrolo para um estado de equilíbrio sem ter de bloquear ou de se desligar das suas emoções. 

Não se sabe exactamente como é que isto funciona mas o que é certo é que existe realmente uma espécie de modelagem, ao nível neuronal e do sistema nervoso, que faz com que as crianças aprendam a auto-regular-se através do contacto com os seus pais. Por isso também é importante que os pais sejam capazes de estar em contacto com as emoções da criança e de manter o seu próprio equilíbrio interno mesmo quando a criança está totalmente descontrolada. E aqui o mindfulness também pode ser uma ajuda preciosa porque nos ensina a aceitar e a acolher as nossas próprias emoções. O que acontece muitas vezes é que o comportamento descontrolado dos nossos filhos desperta em nós algum medo e alguns bloqueios que são fruto dos nossos próprios condicionamentos de infância e que, a prática do mindfulness nos poderá ajudar a conhecer e a ultrapassar. 

Os laços invisíveis que nos unem

Existem entre nós alguns canais de energia que nem sempre são visíveis ou reconhecidos. 

Quando fiz o meu mestrado, tive uma aula com um investigador inglês, chamado Rupert Sheldrake, que tem um trabalho muito interessante em que demonstra que todos os seres vivos possuem aquilo a que chama campos mórficos e que esses campos interagem entre si. Este investigador procurou demonstrar as suas teorias com experiências simples mas que mostram como todos estamos ligados. Uma das suas experiências mais célebres procurou demonstrar a existência de algo a que chamou the sense of being stared at - a sensação de que estamos a ser observados. Todos nós temos a experiência de querer observar alguém discretamente num transporte público, por exemplo, e de não conseguirmos fazê-lo porque a pessoa percebe sempre que estamos a olhar para ela. Sheldrake testou esta sensação com várias pessoas, em diferentes contextos, centenas de vezes, concluindo sempre que a probabilidade de sabermos que alguém está a olhar para nós é muito superior àquela que seria de esperar se isto se devesse apenas ao acaso. Este investigador fez também algumas investigações sobre transmissão de pensamentos, pedindo a pessoas que ligassem para outras ao acaso, em experiências em que quem atendia o telefone tinha, primeiro, de escrever quem achava que estaria a ligar-lhe. Nestas experiências o que Sheldrake observou foi que, quanto mais próxima fosse a ligação entre a pessoa que estava a ligar e a que estava a atender, maiores eram as probabilidade de que a pessoa que atendesse soubesse quem estava a ligar. 

Então isto demonstra que a ligação que estabelecemos com os nossos filhos cria realmente um canal para que algumas informações passem entre nós. 

Sempre que temos uma ligação muito forte com alguém criamos uma espécie de ressonância neuronal com essa pessoa que é muito importante para o nosso bem-estar. Isto é algo que acontece também em psicoterapia em que algumas investigações já observaram que, quando o terapeuta e o cliente estão em perfeita sintonia, as suas ondas cerebrais criam uma ressonância e até as suas expressões e posturas corporais se tornam quase idênticas. Na verdade é justamente esta presença total, aberta e livre de julgamentos que torna a relação terapêutica algo tão especial e poderoso. O facto de sentirmos que temos alguém, naquele momento totalmente disponível para nós, muitas vezes é, só por si, quase suficiente para ajudar a cicatrizar essas feridas da nossa infância em que sentimos falta justamente dessa presença. Carl Rogers, o pai da terapia centrada no cliente e uma figura central da Psicologia Humanista, dizia que a sua presença na relação terapêutica era mesmo o elemento chave para todas as mudanças que ocorriam na pessoa. Porque, infelizmente, muitos de nós cresceram sem nunca sentirem essa presença curadora e fundamental. Por isso precisamos de a procurar num consultório, numa relação terapêutica, onde nos sintamos seguros e livres para aprendermos a sermos nós mesmos. 

Rogers defendia também que, para uma criança crescer feliz e para que tenha oportunidade de desenvolver todo o seu potencial precisa de sentir o amor incondicional dos seus pais e a nossa presença genuína é uma das formas mais eficazes de comunicarmos esse amor. 

Os seres humanos nascem prontos e a precisar de estabelecer ligações. A presença dos nossos pais é a primeira forma de sentirmos que uma ligação foi estabelecida. Quando nos dispomos a estar presentes com os nossos filhos é como se abríssemos um canal entre nós e lhes déssemos a possibilidade de descansar nessa presença. Quando essa presença não é sentida de forma regular e constante as crianças precisam de encontrar formas de a procurar e, se ainda não tiverem desistido de vez - porque nos casos mais extremos é o que acontece - as crianças podem ser muito exigentes e criativas nas suas tentativas de nos levarem a estar mais presentes. E essas tentativas muitas vezes passam por vários problemas de comportamento que os nossos filhos percebem que servem para nos fazer olhar para eles. Porque esse olhar, mesmo que venha cheio de reprovações e julgamentos, é tão necessário, tão essencial para a sua sobrevivência afectiva e emocional que eles irão fazer tudo o que estiver ao seu alcance para o conseguirem. 

Meditação para crianças 

Então se formos capazes de lhes dar essa presença, sem que eles tenham de sentir que precisam de lutar por ela, podemos vê-los verdadeiramente a florescer. Sermos capazes de dar aos nossos filhos a capacidade de estarmos presentes de corpo e alma, de os vermos verdadeiramente e de os acolhermos é a melhor oferta que podemos fazer-lhes. E, muito mais do que procurar aulas de meditação ou de yoga para crianças, se formos capazes de estar presentes de forma verdadeira e regular nas suas vidas, eles aprenderão que vale a pena viver no presente e, mais importante ainda que vale a pena olharem para dentro de si mesmas que é justamente uma das coisas que a meditação nos ensina.

Hoje em dia fala-se muito em aulas de meditação para crianças mas é preciso termos consciência de que estas práticas podem ser muito válidas e com muitos benefícios mas não servem para resolver muitos dos problemas que os pais, tantas vezes, querem que resolvam. No caso das crianças muito ansiosas, agitadas, inseguras ou com problemas de comportamento e de integração os pais, por vezes, procuram na meditação ou no yoga formas de resolver esses problemas. E a verdade é que, apesar destas práticas terem benefícios, quando falamos de crianças, não há nada que tenha tantos benefícios como sentir a presença dos pais de forma incondicional e autêntica. 

Daniel Siegel um psiquiatra com muitos livros na área do mindfulness defende a ideia, apoiada em várias investigações, de que a prática do mindfulness ou atenção plena, activa no cérebro os mesmos circuitos neuronais que estão activos quando existe um apego seguro. Isto quer dizer que, nos adultos, esta prática tem um efeito de ajudar a corrigir a falta dessa presença na nossa infância. Porque, quando praticamos mindfulness o que fazemos é simplesmente voltar toda a nossa atenção para a nossa própria experiência, sem julgamentos, ou seja, estamos a dizer a nós mesmos que somos dignos e merecedores dessa atenção. Com o mindfulness treinamos-nos para ser capazes de dar a nós mesmos aquilo que muitas vezes sentimos faltar na nossa vida: essa presença especial, única, incondicional acompanhada de uma atitude de aceitação de de acolhimento para com toda a nossa experiência

Então, mais do que esperarmos que os nossos filhos aprendam a fazer isto por si mesmos, é fundamental que sejamos capazes de o fazer por eles. Aprender a meditar ou a fazer yoga tem outros benefícios que podem ser úteis para as crianças mas não podemos olhar para estas práticas como forma de resolver o problema que nós criámos em primeiro lugar. Sim, porque acredito que uma criança ansiosa, insegura, com problemas de comportamento ou de aprendizagem não ficou assim por acaso, mas por falta dessa presença incondicional. Porque provavelmente não teve oportunidades suficientes para se sentir verdadeiramente acolhida e aceite pelos seus pais. Então, não vale a pena procurar lá fora soluções para um problema que foi criado cá dentro. Basta experimentarmos estar presentes com os nossos filhos para vermos a diferença impressionante que esta presença pode fazer no seu comportamento. 

Mas, muitas vezes, não conseguimos estar presentes simplesmente porque nunca aprendemos a fazê-lo. Então nestes casos são os pais e não os filhos que devem aprender a praticar yoga ou meditação. Já houve mães que me perguntaram se eu achava indicada a prática de meditação para os filhos porque eram agitados ou ansiosos e o que lhes respondi foi que achava mais importante que encontrassem elas formas de praticar, para depois poderem simplesmente estar mais disponíveis para os filhos. Porque acredito sinceramente que esta disponibilidade verdadeira resolveria noventa por cento - para não dizer mais - dos problemas dos nossos filhos. 

Mas não podemos dar aquilo que não temos por isso, em primeiro lugar, precisamos de nos perguntar se existe alguma parte de nós que precise de ser aceite, acolhida, que precise de ser alimentada e nutrida porque só assim poderemos alimentar e nutrir os nossos filhos verdadeiramente e acolhê-los em tudo aquilo que são. Mostrar-lhes que toda a sua experiência é válida, importante, digna de amor e de ser acolhida e aceite. E só com essa certeza é que os nossos filhos podem crescer de forma plena, inteira e verdadeiramente realizada. 

E para além de todos os benefícios que esta prática de estarmos presentes tem para os nossos filhos também é importante lembrarmos aqueles que pode ter para nós. Porque não há nada mais gratificante do que sermos capazes de olhar para os nossos filhos e deixarmos-nos simplesmente ficar presentes no amor que sentimos por eles, nos sentimentos tão especiais que só um filho consegue despertar nos pais. E a ciência também já mostrou que esses bons sentimentos - que muitas práticas de meditação se dedicam também a cultivar - podem mesmo ter resultados espantosos na nossa saúde e na nossa satisfação com a vida. 


quarta-feira, 4 de junho de 2014

Pais Zangados

Já falámos neste artigo de como lidar com a zanga quando ela surge nos nossos filhos mas é importante sabermos lidar com ela também quando surge em nós. 
Todos os pais se zangam com os filhos de vem em quando. A zanga é uma emoção natural e que pode até ter um papel importante desde que saibamos lidar com ela. O que acontece muitas vezes é que escolhemos uma de duas atitudes: ou nos zangamos de forma descontrolada e deixamos que esta zanga acabe por prejudicar a nossa relação com os nossos filhos e com aqueles que nos são mais queridos; ou temos tanto medo de nos zangar que acabamos por engolir tudo e acabamos por causar prejuízos a nós mesmos mas também aos nossos filhos porque não somos capazes de lhes transmitir a melhor forma de lidar com esta emoção.

A zanga é uma resposta natural que acontece quando sentimos que algum comportamento ou atitude de outra pessoa pôs, de algum modo, em causa o nosso bem-estar. A zanga é muitas vezes alimentada pela percepção de ameaças ou pela crença de que, determinadas coisas, não deveriam acontecer. A zanga em si mesma não é algo negativo, é uma resposta natural que, em certas situações, pode até ser útil na medida em que nos dá o impulso para agir e tomar atitudes em relação ao que acreditamos que precisa de mudar. Tich Nhat Hahn, monge budista e professor de meditação que - de entre os vários livros que já escreveu- tem um dedicado à zanga, diz que devemos olhar para esta como se olhássemos para um bebé: quando um bebé chora paramos o que estamos a fazer para tentar perceber o que se passa com ele. Com a zanga é a mesma coisa: se estamos zangados devemos tentar parar para perceber o que se passa connosco e o que nos fez zangar mas, é importante que o façamos com uma atitude de compaixão. Assim como acolhemos um bebé que chora, também devemos acolher a nossa zanga para percebermos o que se passa connosco, de onde é que ela veio, o que a fez começar e, sobretudo, de que é que precisamos para que ela possa passar. E isto deve ser feito sem culpas e sem receios porque é a única forma de lidarmos verdadeiramente com esta emoção em vez de nos refugiarmos em comportamentos de fuga que servem apenas para desviar a nossa atenção do essencial: as nossas emoções e aquilo que precisamos de fazer. Marshall Rosenberg, pai da comunicação Não Violenta, afirma que a zanga é sempre a expressão trágica de uma necessidade que não foi satisfeita. Então, em primeiro lugar, precisamos de ser capazes de olhar para a nossa zanga para perceber que necessidade é essa e de que forma poderemos arranjar maneira de a preencher.

Assumir a responsabilidade 

            E uma coisa que é fundamental percebermos quando se trata de lidar com os nossos filhos (e não só) é que não nos zangamos por causa deles, zangamos-nos por causa de nós, mesmo. Isto pode parecer estranho mas é importante termos noção de que não é o comportamento dos nossos filhos que nos faz ficar zangados mas sim as crenças que temos em relação a esse comportamento. Alguns comportamentos dos nossos filhos despertam em nós determinados pensamentos, ou sentimentos, ou emoções com as quais é difícil lidarmos. Temos uma relação de grande proximidade com os nossos filhos por isso é muito natural que eles nos afectem de uma forma muito profunda com as suas atitudes. O problema é que muitas vezes não temos noção disto. Então é importante percebermos que há determinados comportamentos que nos fazem zangar não por causa do comportamento em si mas por aquilo que despertam em nós. 
      Cada um de nós terá os seus próprios gatilhos e é importante que os fiquemos a conhecer para sabermos lidar com eles. 
        Por exemplo, um dos meus gatilhos é a sensação de que estou a perder o controlo da situação. Isto está relacionado com a minha necessidade de manter uma certa ordem e programação na minha vida e, quando sinto que isso está a ser posto em causa e que não tenho qualquer forma de o impedir torna-se difícil não me zangar. Mais concretamente: gosto de me deitar cedo e gosto de ter algum tempo para mim antes de me deitar, por isso gosto que o meu filho adormeça cedo. Este hábito tem vindo a ser reforçado pelo facto de, a maior parte das vezes, o meu filho até colaborar com esta minha necessidade mas, como todas as crianças, tem fases de maior agitação, em que acaba por ter um pouco mais de dificuldade em adormecer à hora que eu gostava que ele adormecesse. E, quando isto acontece, dou comigo a zangar-me com ele, mesmo sabendo que ele não tem culpa de não ser capaz de adormecer. Na verdade, para além desta minha necessidade de dormir cedo e ter ainda algum tempo para mim, isto também está relacionado com o facto de, outra parte de mim, acreditar que as crianças deveriam dormir sempre cedo (nunca muito depois das nove da noite) e que sou uma péssima mãe se não conseguir adormecer o meu filho a essa hora. Então, só neste exemplo temos dois aspectos importantes desta minha necessidade de controlo: por um lado esta necessidade de sentir que posso controlar os meus dias e decidir a que horas me deito, por outro lado a necessidade de sentir que consigo controlar o meu filho e decidir a que horas ele adormece porque, se não for capaz de o fazer, estarei a falhar em algum aspecto como mãe.
        Então, é fácil de ver que o facto de eu me zangar não tem nada a ver com o facto dele não adormecer mas sim com a forma como eu interpreto essa incapacidade e como lido com tudo o que isso desperta em mim. Então, neste caso o que posso eu fazer para preencher essa minha necessidade de controlo? Posso tentar organizar tudo para que ele adormeça cedo mas, nos dias em que isso falha, posso simplesmente, por um lado tomar consciência da minha necessidade de dormir cedo que não está a ser preenchida e, por outro tomar consciência de que o facto dele não dormir tão cedo quando eu gostaria não significa que estarei a falhar em alguma coisa como mãe. 
      Isto faz toda a diferença na forma como sinto e como expresso a minha zanga, porque não a projecto no meu filho. O simples facto de ser capaz de olhar para mim própria com aceitação e de saber que é natural que me sinta frustrada já faz uma grande diferença na forma como me sinto e como me expresso. 
       Tenho o direito de me zangar e de me sentir frustrada porque as coisas não correm como eu previa, mas não tenho o direito de fazer com que o meu filho se sinta culpado por isso. Então é importante eu ser capaz de lhe transmitir que ele não tem culpa da minha zanga. É fundamental que as crianças não se sintam responsáveis pelas emoções dos pais e isto é o que acontece quando lhes dizemos que nos zangámos porque eles fizeram assim ou assado. Então se estamos zangados mas sabemos que a culpa não é deles, podemos simplesmente dizer que estamos cansados ou aborrecidos, ou sem paciência mas que isso não afecta nada o que sentimos por eles. Nem sempre somos capazes de o fazer na altura em que estamos tão identificados com a nossa zanga que não conseguimos separar-nos dela o suficiente para que isto seja possível, mas podemos fazê-lo depois. E nunca é tarde para o fazermos. Podemos e devemos mostrar aos nossos filhos que não nos zangámos por causa deles. Principalmente se falámos mais alto do que gostaríamos ou se dissemos algo que gostávamos de não ter dito é muito importante, tenham eles a idade que tiverem, que lhe digamos que não sentimos o que dissemos e que continuamos a gostar muito deles. Porque o que assusta uma criança quando um adulto se zanga com ela é sentir que pode perder esse amor. Para a criança, quando o pai ou a mãe se zangam parece que deixaram de gostar dela. E isto assusta e muito. Até a nós adultos nos assusta quando alguém se zanga a sério e grita connosco e, se escutarmos lá bem fundo o nosso coração, nessas alturas, o que apetece mesmo perguntar a essa pessoa é “já não gostas de mim?”. Então podemos simplesmente dizer aos nossos filhos que, mesmo quando estamos zangados, cansados, sem paciência continuamos a gostar sempre muito deles, que por trás de toda essa zanga e falta de paciência o amor continua lá, mesmo que não pareça, mesmo que fique escondido como o céu atrás das nuvens, mas ele está sempre lá, nunca se vai embora, nunca desaparece. E, se nos zangamos muitas vezes, é importante dizermos isto muitas vezes, tantas quantas forem precisas até percebermos que eles o sabem e sentem de verdade. 
     Isto dá também aos nossos filhos a possibilidade de saberem que se podem zangar, que têm o direito de ficar zangados e que não precisam de fugir dessas emoções, que podem lidar com elas. E ensina-lhes também outra coisa muito importante: que é possível reparar as relações. Que, quando alguém se zanga connosco e se afasta temporariamente, não quer dizer que essa pessoa está perdida e que já não gosta de nós. Ensina-lhes que podemos e devemos acreditar nas pessoas de quem gostamos e no amor que têm por nós.

Zanga como educação

      A zanga é uma emoção explosiva: tem um pico que acontece muito depressa, mesmo do ponto de vista fisiológico, mas que se extingue rapidamente. O que acontece é que, muitas vezes, nós escolhemos prolongar a nossa zanga porque acreditamos que ela tem alguma utilidade. Pensamos que precisamos da zanga para que os outros percebam o que não podem fazer. 
   Quando o meu filho começou a andar e a mexer em tudo e fazer todos os disparates característicos como meter mãos em tomadas – ou a ter ideias brilhantes como a de de enfiar uma palhinha no buraquinho da tomada para depois meter lá a boca - e a despejar todos os CDs das caixas, por exemplo, eu comecei por pensar que tinha de me zangar com ele para que percebesse que não poderia fazer estas coisas. E havia aquela parte de mim que tem tendência para repetir o que conhece, que se sentia na obrigação de se zangar para ele não fazer certas coisas. Acontece que, muitas vezes, eu não me sentia realmente zangada mas achava que tinha me forçar a ficar zangada para ele não pôr mais palhinhas em tomadas. Até que percebi que realmente não precisava de forçar uma zanga que não existia. E a zanga não existia nestes casos, porque ele não estava a activar nenhuma das minhas emoções mais primitivas, como no exemplo que dei acima. Porque eu sabia que ele estava simplesmente a ser criança, a descobrir o mundo, que não estava a fazer aquelas coisas para me chatear ou porque era especialmente mau ou mal educado. Então, nestes casos o comportamento dele não estava a desafiar a minha forma de ver o mundo nem a por em causa as minhas percepções ou a fazer-me sentir ameaçada. Por isso a zanga não surgia naturalmente, mas eu achava que tinha de a ir buscar ou inventar a algum lado para o ensinar. Mas, na verdade, percebi que a zanga não ensina nada e não precisamos de zanga para educar ninguém. A zanga serve apenas para nos educar a nós, para nos fazer compreender quais são os nossos gatilhos mas não serve para educar mais ninguém. Não é por nos zangarmos com os nossos filhos que eles aprendem a não mexer nas tomadas. Antes pelo contrário até. Se nos zangamos eles assustam-se, pensam que não gostamos deles. E, quando se assustam, entram num modo defensivo, nesse modo defensivo ficam muito menos receptivos ao que quer que seja que lhes tentemos ensinar. Então a zanga não só não funciona como ferramenta educativa como até atrapalha. No exemplo da palhinha na tomada será muito mais eficaz mostrar a minha cara de susto e explicar-lhe com firmeza que não pode repetir aquilo, que é perigoso, que se pode magoar a sério. No exemplo dos Cds, em que não há nenhum perigo envolvido mas não queremos realmente que ele os estrague ou misture todos, podemos simplesmente dizer-lhe com firmeza que não queremos que abra as caixas, que aqueles objectos são importantes para nós e preferimos que não lhes mexa. Isto deve ser feito de modo a que a criança não sinta que houve nada de errado em querer mexer-lhes, mas que é apenas uma preferência nossa. E ajuda se eles sentirem que isto não se repete com demasiadas coisas, ou seja, uma criança que sente que não pode mexer em nada, que está constantemente a ouvir nãos, começa a ficar ansiosa e torna-se difícil não sentir que está a fazer algo de errado. Mas se a criança sabe que até pode mexer em quase tudo, torna-se mais fácil respeitar essas preferências se forem expressas de forma correcta e perceber que há algumas coisas em casa com que é mesmo importante ter cuidado. Com crianças mais velhas podemos mostrar-lhes de que forma podem mexer nesses objectos, como podem fazer para que não os partam ou estraguem, se sentirmos que isto é possível. Com crianças mais pequenas, antes dos dois anos, geralmente resulta melhor tentar distraí-las com outras coisas em vez de lhes dizer simplesmente que não, porque a criança ainda não tem capacidade para compreender verdadeiramente o que isso significa. 
      Sempre que dizermos que não aos nossos filhos há duas coisas fundamentais: primeiro fazê-lo de forma a que a criança não se sinta desadequada por ter tido aquele comportamento e segundo, estarmos preparados para aceitar os seus sentimentos de frustração e de zanga, dando-lhes liberdade para os expressar e sendo capazes de os ouvir. 
      E é importante também termos noção que as crianças não aprendem logo à primeira estas coisas. É importante termos noção das nossas expectativas e sabermos que, o facto de termos de repetir muitas vezes a mesma coisa, não quer dizer que a criança não ouve mas que é natural que se ela volte a tentar algumas vezes, apenas para ter mesmo a certeza ou porque simplesmente não se lembra que não queremos que o faça. 

      Outro efeito da zanga, para além de nos fazer questionar o amor do outro, é também o de nos fazer sentir incapazes, incompetentes, desadequados. E estas são das emoções mais nocivas que uma criança pode ter e, que se forem sentidas com frequência, acabam por se tornar suas companheiras constantes ao longo da vida com todas as dificuldades e sofrimento que provocam. Então o melhor que podemos fazer pelos nossos filhos é assumir a responsabilidade pelas nossas zangas e arranjar formas de os fazer saber que, mesmo quando estamos zangados, eles continuam a ser o melhor das nossas vidas.