quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Direitos das crianças, conformismo e emoções

Nos últimos meses cada vez mais pessoas têm falado sobre as medidas rígidas a que estamos a sujeitar as crianças e sobre o impacto que estas poderão ter no seu desenvolvimento. Eu própria assinei com vários colegas um artigo no público sobre este tema (que pode ser lido aqui), participei em algumas entrevistas e reportagens (que podem ser lidas aqui) e colaborei com o grupo Assim não é escola em que foi criada uma petição que já recolheu mais de 7000 assinaturas e que está à espera de ser discutida na assembleia da república. Pode ser assinada aqui
                            
O artigo do público serviu também para uma carta aberta à Ordem dos Psicólogos que foi assinada por quase 200 colegas em três dias. A Ordem dos psicólogos também escreveu uma carta aberta à DGS recomendando que essas medidas fossem revistas. 
Recentemente saiu também um artigo no público em que os vários pediatras também defendem que as crianças não podem continuar a ser sujeitas a estas medidas. (pode ser lido aqui) Hoje mesmo participei numa conferência da CPCJ de Odivelas em que os especialistas presentes também alertaram para o impacto negativo destas medidas e que pode ser visto aqui

Também falei com alguns deputados, professores, diretores de escola e muitos pais, sendo que, mesmo que nem todos concordem com a forma como devemos lidar com esta pandemia é muito claro que todos reconhecem que as regras rígidas que existem nas escolas neste momento, com tudo o que sabe hoje sobre a forma como esta doença afeta as crianças - não são nem necessárias nem desejáveis e podem  vir a ter consequências muito nefastas. 

Então é importante que façamos uma reflexão sobre porque é que isto continua a acontecer. E quando penso nisso não posso deixar de me lembrar de uma experiência muito importante feita nos anos 60 e 70 por Stanley Migram. 

Este investigador pediu a várias pessoas de diferentes idades e estratos sociais que participassem numa experiência que lhes dizia ter como objectivo estudar a forma como as pessoas aprendiam. Esses participantes ficavam numa sala de onde podiam ver uma outra pessoa, através de um vidro, a quem eram feitas perguntas. Cada vez que essa pessoa errava uma pergunta os analisadores diziam aos voluntários para carregarem num botão que lhes permitia dar um choque eléctrico a essa pessoa. Os voluntários não sabiam que a outra pessoa também fazia parte do estudo e que apenas fingia que estava a receber um choque. Era dito aos voluntários que deviam aumentar a intensidade dos choques com cada erro que a pessoa fazia e, a certa altura, a pessoa do outro lado do vidro começa mesmo a gritar e contorcer-se com dores. Mesmo assim, cerca de 65% das pessoas, quando a ordem era dada pelo examinador, era capaz de dar choques eléctricos de 450 volts, uma descarga que seria suficiente para causar a morte da outra pessoa

Este estudo teve muito impacto pela conclusão chocante de que a maioria das pessoas não se inibia de causar dor, sofrimento e até potencialmente a morte de outro ser humano, desde que a responsabilidade não fosse sua. Porque, no final do estudo, quando se falava com essas pessoas, o que elas respondiam era que estavam apenas a cumprir ordens e que o faziam porque lhes tinham pedido, queriam desempenhar bem a sua função, achavam que seria importante para o estudo ou porque confiavam na pessoa que lhes estava a dar a ordem. 

Isto foi usado, inclusivamente, para ajudar a explicar a forma como os nazis levaram a cabo o holocausto com a ajuda, colaboração e passividade de tantas pessoas que estavam também apenas a cumprir ordens. 

Então quando sujeitamos as nossas crianças e jovens a regras que podem ter um efeito muito negativo para o seu desenvolvimento também nos sentimos capazes de o fazer porque estamos apenas a cumprir ordens? 


Desconhecimento sobre as necessidades das crianças 


Acredito que uma boa parte disto também se relaciona com o facto de não reconhecermos as necessidades reais das crianças. Antes de tudo isto, na verdade, elas já não eram muito valorizadas. Por vezes penso que vivemos numa sociedade um pouco esquizofrénica no sentido em que, por um lado, se valoriza excessivamente uma autonomia forçada mesmo em etapas do desenvolvimento em ela não faz sentido - forçamos as crianças a dormir sozinhas, a irem para a escola, a deixar de mamar ou deixar a chucha mesmo que elas ainda não estejam preparadas para isso - mas depois não as deixamos ser autónomas naquilo em que mais precisam de o ser: na liberdade de brincar, de se movimentarem no espaço, de correrem riscos adequados à sua idade, de usufruírem livremente dos espaços públicos sem necessidade da presença constante dos adultos, de terem oportunidade de conhecer o seu corpo, os seus limites e os dos outros. Isto é feito, sobretudo, através da brincadeira livre, algo que é fundamental e que, infelizmente, antes mesmo da pandemia já parecia estar em risco de extinção. 

A verdadeira autonomia só acontece se existir um espaço de liberdade para as crianças. Essa liberdade, claro, só faz sentido quando existe uma base segura a que as crianças sabem que podem voltar. Os primeiros anos de vida precisam de ser dedicados à construção dessa base segura mas, essa base segura, só é realmente segura se também der liberdade de forma adequada à criança. 

Todas as crias, na natureza, passam os seus primeiros anos de vida a brincar. Através da brincadeira elas aprendem a desenvolver habilidades, aptidões, aprendem a conhecer o seu corpo, os seus limites, aprendem a saber de que é que são capazes e aprendem a lidar com os outros, a relacionar-se. A brincadeira também é fundamental para o desenvolvimento da motivação, da capacidade de aprendizagem. As crianças quando brincam livremente exercitam a sua curiosidade natural e é esta que deve estar na base de todos os processos de aprendizagem.

Também aprendem a descobrir o corpo e descobrir o corpo é o caminho para descobrir as emoções. Descobrir as emoções é aprender a lidar com elas e com o mundo. Muitos adultos têm medo das suas próprias emoções porque têm medo das sensações que elas provocam no corpo. Então, descobrir o corpo através da brincadeira, também ajuda a criança a familiarizar-se com o que sente e por isso torna mais fácil o seu contacto com as emoções. Até porque, na brincadeira, as emoções podem ser sentidas de uma forma segura, de uma forma menos ameaçadora, durante a brincadeira as crianças podem experimentar o medo, a raiva, a frustração, a tristeza e todas as emoções mais difíceis de uma forma um pouco mais leve, menos intensa e por isso mais segura. Essa aprendizagem é importante e fundamental para o seu bom desenvolvimento. Fala-se muito em educação emocional mas educar para as emoções não passa necessariamente por construir programas em que se fala sobre elas nas escolas. Passa por criar espaço e tempo para que as crianças as possam sentir num contexto de segurança. Primeiro é fundamental que as crianças se sintam seguras nas suas ligações e depois que lhes seja dada essa liberdade de explorar através da brincadeira. E nenhum programa de educação emocional fará sentido se existirem estas duas lacunas. Porque não é a falar de emoções que se aprende a lidar com elas mas é vivendo-as, sobretudo na infância. 

Provavelmente faltou aos adultos que se limitam a cumprir ordens sem as questionar um espaço para entrarem realmente em contacto com as suas emoções, para aprenderem a ser capazes de as reconhecer, acolher e valorizar. A brincadeira livre é o primeiro lugar onde isso pode acontecer mas depois é essencial que também haja uma relação segura com um adulto disponível onde elas poderão ser faladas, abordadas e mais facilmente estruturadas. 

A brincadeira livre também ajuda a calibrar o sistema de alarme. Brincar às lutas ou correr riscos faz com que o sistema de alarme seja activado. E o sistema de alarme precisa de ser activado, desta forma moderada que só é possível em condições de segurança, para que possa funcionar mais eficazmente. Na verdade o nosso sistema de alarme é relativamente frágil e fica facilmente desregulado se for usado excessivamente em situações demasiado intensas ou demasiado constantes, naquilo a que se chama o stress tóxico ou crónico mas também fica desregulado mais facilmente se nunca for exercitado. E a brincadeira é o momento ideal para este ser exercitado e, de certo modo, como que tonificado.

A brincadeira é também a forma por excelência das crianças libertarem a tensão acumulada, como já disse aqui várias vezes. Brincar é uma forma de libertar vapor, de deixar fluir as emoções para que elas não comecem a ficar acumuladas e não se tornem tóxicas. Na verdade os adultos precisam desse espaço de brincadeira também, embora a forma de brincar possa ser diferente. A brincadeira ajuda a manter-nos no presente e isso também tem um importante efeito tranquilizador e anti-depressivo. 

Então as crianças precisam mais do que nunca de ter tempo e espaço para brincar e temos a responsabilidade de lhes providenciar isso. E de cada vez que impedimos uma criança de brincar livremente, mesmo que possamos pensar que isto é apenas temporário, aquilo que estamos a fazer é a possibilitar que se instale um padrão em que deixamos de reconhecer essa necessidade e em que a própria criança também já não as reconhece. Porque, apesar da brincadeira ser algo natural e instintivo, a verdade é que também depende do hábito e precisa de certas condições para acontecer (com um sentimento de segurança e ausência de ecrãs durante uma boa parte do dia, por exemplo) Quando essas condições não existem ou quando privamos a criança de brincar é relativamente fácil que esse hábito se perca como infelizmente já se perdeu em demasiados casos. E quando o hábito se perde, fica perdida também uma boa parte daquilo que permite amadurecer realmente. Por isso cada dia que privamos uma criança de brincar livremente, ao ar livre de preferência, é um dia em que contribuímos para que se perca esse hábito tão fundamental para o seu desenvolvimento e um dia em que não estamos a contribuir para o seu amadurecimento. E sabemos que a infância e adolescência são períodos sensíveis para o desenvolvimento de muitas capacidades: uma janela de oportunidade para desenvolver competências que, quando não acontecem nesta altura, será muito mais difícil que venham a acontecer. 

A necessidade de brincar livremente, ao ar livre, durante uma boa parte do seu dia sempre foi bastante negligenciada e desvalorizada. Daí até se encurtarem os intervalos, ou se criarem regras limitadoras da brincadeira livre ou a fecharem os parques infantis talvez não vá uma distância tão grande. 


As experiências do conformismo de Asch 


Outras experiências famosas que se relacionam com a anterior e que também são muito relevantes para o momento social que estamos a viver são as experiências do conformismo de Asch que foram feitas já nos anos 50. Nestas experiências havia um grupo de pessoas numa sala e era pedido a essas pessoas que avaliassem o tamanho de algumas linhas apresentadas num ecrã. Nesse grupo havia apenas um voluntário que pensava que todos os outros também eram e a certa altura todos os outros começavam a dar uma resposta claramente errada. A grande maioria das pessoas, durante um bocadinho ainda tentava dar a resposta certa mas, ao fim de algum tempo cedia à pressão do grupo e acabava também por dar a resposta errada, ainda que este erro fosse óbvio. E esta pressão era tão forte que, em muitos casos, as pessoas chegavam mesmo a convencer-se que a resposta do grupo era realmente certa, porque não eram capazes de aceitar que tivessem escolhido uma resposta errada apenas por causa dessa pressão grupal. 
Só quando aparecia um aliado a dar também a resposta certa é que uma boa parte das pessoas já passava a ter capacidade de manter a sua resposta também. 

Esta experiência mostra bem como a pertença ao grupo e a aceitação são tão importantes para nós que podem até mudar as nossas crenças e a nossa perceção das coisas. 
E acredito que é também algo deste género que está a acontecer quando queremos convencer-nos que o que estamos a fazer está certo, ou que não poderia ser de outra forma, mesmo quando temos tantos especialistas a dizer que é errado. Então aqui também é importante que sejamos capazes de nos conectar com as nossas necessidades, de saber que está certo, é natural e até desejável que queiramos ser aceites e pertencer ao grupo mas o preço a pagar por isso não pode ser o de deixarmos de ouvir a nossa verdade. E, se nos ligarmos à nossa verdade, neste caso, não precisamos de muitos estudos nem investigações para sabermos que o que estamos a fazer às nossas crianças e jovens é profundamente errado. É errado privar uma criança da sua liberdade ou condicionar com regras rígidas o seu desenvolvimento, é errado fazer uma criança sentir que pode pôr em perigo os pais ou avós. Conheço o caso de uma criança que esteve fechada no quarto durante quatro semanas - duas em isolamento profilático no final do qual foi pedido que fizesse um teste que veio positivo e por isso ficou mais duas semanas em casa - e esteve uma boa parte dessas duas semanas fechada no seu quarto, com as refeições entregues num tabuleiro: os pais batiam à porta, pousavam o tabuleiro no chão e ela tinha que esperar que se afastassem para ir buscar a comida que depois voltava a deixar no chão, à porta do quarto sendo que o tabuleiro era imediatamente desinfetado antes de ser recolhido. 

Não precisamos de estudos nem de investigações para sentir que isto é profundamente errado. Basta que sejamos capazes de ouvir a nossa verdade, basta que sejamos capazes de reconhecer as necessidades das crianças, para sabermos que estamos a causar-lhes sofrimento, basta que sejamos capazes de ter alguma empatia para perceber que não temos o direito de fazer com que as nossas crianças e jovens se sintam como portadores ambulantes de um vírus mortífero para a sua família, basta que sejamos capazes de entrar um pouco em contacto com as nossas emoções para perceber que tudo isto está a ter resultados muito mais desastrosos do que o vírus de que tanto nos queremos proteger. 


O cérebro esquerdo e o cérebro direito

Ian McGilchrist é um psiquiatra que escreveu um livro que também acredito que ajuda a compreender uma boa parte do que se tem passado. Neste livro ele defende a tese de que vivemos numa sociedade em que se valorizam demasiado as capacidades do hemisfério esquerdo: a racionalidade, a linguagem, a objetividade e a análise dos detalhes, por exemplo. Isto acontece em detrimento das capacidades do nosso hemisfério direito, mais relacionado com a consciência corporal, com as emoções e com um visão mais global ou holística das questões. Neste momento somos confrontados com uma situação angustiante de um vírus que provoca sofrimento e o nosso hemisfério esquerdo imediatamente tomou conta da situação e tentou resolver tudo criando regras e mais regras e analisando tudo ao pormenor mas esquecendo-se da visão global das coisas e do impacto que estas regras têm na nossas emoções. 

Não podemos resolver a morte com regras, não podemos travar um vírus desta natureza com regras. Muito menos quando essas regras nos pedem para deixar de parte todo o nosso instinto, as nossas emoções, para negar a nossa natureza gregária e a necessidade que temos de estar juntos, de nos tocar e aproximar, de nos sentirmos seguros na companhia uns dos outros. 

Então, talvez seja altura de reconhecermos que não podemos resolver este problema através da lógica e da racionalidade porque estas só nos têm trazido novos problemas. Talvez seja altura de começarmos a dar mais espaço ao nosso hemisfério direito, de entrarmos mais em contacto com as emoções e de sermos capazes de olhar mais para o global. Porque se não o fizermos corremos o risco de continuar a olhar apenas para os detalhes e a ignorar toda a destruição global que estamos a causar à nossa volta. 
É altura de pararmos de pensar só em nós próprios, sim, mas também é altura de sermos capazes de assumir a fragilidade que existe no facto de sermos humanos e de precisarmos uns dos outros. E de aceitarmos que o nosso cérebro esquerdo não tem nenhuma solução válida para este problema. Só com o equilíbrio dos dois hemisférios é que poderemos encontrar forma de lidar com isto sem continuar a causar ainda mais destruição.

Ontem na conferência o Professor Carlos Neto, cujo trabalho admiro, afirmou que os nossos políticos não brincaram o suficiente e por isso são tão totós. Se calhar muitos de nós não brincaram o suficiente, por isso não tiveram oportunidade de desenvolver muito o seu hemisfério direito. Então, se queremos realmente um mundo melhor vamos dar espaço às nossas crianças para brincar, vamos dar-lhes tempo e espaço para entrarem em contacto com o corpo e com as emoções e talvez assim não voltemos a encontrar-nos neste buraco global em que estamos agora metidos.