quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Apego, separações, trauma e crimes violentos

Estamos numa altura do ano em que milhares de crianças voltam à escola e em que outras tantas estão a começar pela primeira vez este percurso. E isto traz muitas vezes lágrimas e protestos aos filhos e muitas angústias aos pais. Muitas vezes essas lágrimas são encaradas com naturalidade e fazem-nos crer até que elas são parte essencial do processo de adaptação.

Outras vezes também há quem diga que para evitar essas lágrimas é importante que a criança vá o mais cedo possível para a escola, porque quanto mais cedo se fizer essa adaptação mais facilmente ela acontece.

Também há quem defenda que os pais não podem ficar na sala e que têm que se despedir rapidamente para não prolongarem o sofrimento das crianças.

Mas nenhuma destas afirmações é verdade e todas elas têm por base um grande desconhecimento daquilo que é o funcionamento de um instinto básico e fundamental para o desenvolvimento da criança: o instinto de apego. 

Na verdade temos todos, enquanto sociedade, um grande desconhecimento da forma como este mecanismo funciona e das suas implicações para o desenvolvimento das crianças e da forma como podermos educá-las. No meu livro Mindfulness para Pais, explico de uma forma mais aprofundada a importância deste conceito e a forma como toda a nossa personalidade se molda à volta deste instinto e em função dele. E a forma como é importante compreendermos e reconhecermos a nossa própria história para sermos capazes de respeitar, proteger e nutrir este instinto também nos nossos filhos.

Já foi há mais de 60 anos que Bowlby chamou a atenção para o facto das crianças terem este instinto básico que as leva a estabelecer uma relação única e intensa com a pessoa que cuida delas e foi também ele que observou, pela primeira vez, a forma como a ausência dessa pessoa influenciava o comportamento das crianças. Foi através do trabalho de Bowlby que a presença dos pais passou a ser permitida nos hospitais, por exemplo, quando as crianças precisavam de ser internadas. Antes disso pensava-se que esta presença só servia para atrapalhar os médicos e enfermeiros e até prejudicar o tratamento.

O trabalho dele também foi muito importante para começar a mudar a política das instituições de acolhimento que passaram a reconhecer que era essencial para as crianças ter a possibilidade de estabelecer uma relação preferencial com um adulto cuidador. Porque, como explico no meu livro, as crianças a quem isto não era permitido não tinham um desenvolvimento normal e até apresentavam uma taxa de mortalidade muito superior ao que seria esperado.

Mas, mesmo que tenha havido uma grande evolução na forma como entendemos as crianças, ainda assim continua a haver um desconhecimento geral do impacto que tem este instinto em que tudo o que fazemos com as nossas crianças incluindo a entrada na escola. 

Há pouco tempo vi um um novo vídeo de uma criança que esteve separada dos pais pelas políticas do Donald Trump em relação aos imigrantes, de que já falei aqui. Este vídeo demonstra bem como este desconhecimento pode ser prejudicial e como é importante educar os pais e a sociedade em geral para a importância deste instinto de apego e para a forma como ele se manifesta e para as consequências que existem quando ele não é respeitado. 

Em primeiro lugar é óbvio que, se este instinto fosse compreendido e respeitado este tipo de políticas nunca existiria. Mas depois é preciso perceber o que acontece quando se separa uma criança pequena dos pais. Uma criança pequena está programada para se manter perto dos seus pais e em sítios familiares. Todas as crianças saudáveis, quando são pequenas, mostram alguma relutância em falar com estranhos, em estar ao colo deles ou em ser tocadas ou abraçadas por pessoas estranhas. Podem demonstrar isto de forma mais ou menos intensa, mas é natural e saudável que o demonstrem, ao contrário daquilo que tantas vezes nos dizem. Porque uma criança pequena não sobreviveria sem os seus pais a natureza certificou-se que isto estava bem incutido nos seus genes e na sua programação inata. Por isso instinto é mesmo a palavra certa: porque não é aprendido, nem pensado, nem adquirido. Todos os bebés nascem com um instinto básico de estabelecer relações com as pessoas que cuidam se de si. E há vários indícios que o demonstram: como a preferência que todos os bebés têm por caras humanas, como a capacidade de o recém nascido reconhecer o cheiro do leite da sua mãe, como o sorriso que surge entre as 6 e as 8 semanas e começa por ser dirigido a qualquer pessoa mas que, com o tempo, passa a aparecer apenas com as pessoas a quem o bebé se sente ligado, ou a necessidade de colo que todos os bebés demonstram com maior ou menor intensidade, isto para dar apenas alguns exemplos.

Então, este instinto faz com o que o bebé e a criança procurem aprofundar a relação com os seus pais, ou com as pessoas que cuidam de si ao mesmo tempo que também lhe diz que é mais seguro manter-se em sítios que sejam familiares e conhecidos. 

Por isso sempre que a criança está num sítio desconhecido é activado o seu sistema de alerta e a única forma de desligar esse sistema de alerta é através da presença dos pais, ou de outra pessoa com quem haja uma relação de apego, que faz com que a criança se sinta segura novamente. 

Então isto quer dizer que, na ausência de uma figura de apego para a criança, esse estado de alerta que acontece num sítio novo ou desconhecido, não irá desaparecer. Mas ninguém aguenta ficar em estado de alerta durante muito tempo, porque isto tem um custo demasiado elevado para o organismo. Este estado provoca uma série de alterações fisiológicas que podem provocar danos quando são mantidas por demasiado tempo, como acontecia no caso desses bebés em instituições, que morriam mesmo por não terem com quem estabelecer relações.

Então, uma forma de lidar com isto é desligar esse alarme, como mecanismo de defesa. Mas a única forma de desligar o alarme é desligar também o instinto de apego, que é a origem do alarme neste caso. 

Esse vídeo (que pode ser visto aqui ) mostra um rapaz de 3 anos que esteve separado da mãe durante alguns meses bem como a sua irmã bebé. A irmã bebé está ao colo do pai e não parece mostrar grande interesse em estar ao colo dele, como se não o reconhecesse. Mas com o rapaz de quatro anos o que se passa é ainda mais impressionante: a mãe chora e quer agarrá-lo para o beijar, mas o rapaz recusa-se a deixá-la agarrá-lo e afasta-se fugindo dela. Isto deixa a mãe desesperada e sem compreender bem o que se passa com ele.

Há um filme de 1952 que se tornou histórico e mostra uma criança de 2 anos que foi internada num hospital, durante oito dias sem a presença dos pais que só podiam visitá-la, durante uma ou duas horas por dia. A pequena Laura nesse vídeo mostrou justamente o que acontece nestes casos: primeiro há o desespero da criança que sente esse estado de alarme e não pode fazer nada para o neutralizar porque não tem a presença dos pais, depois a criança entra numa espécie de conformismo que começa com uma atitude de tristeza e de apatia em que a criança está como que a desligar-se dessa parte de si própria e depois disso pode até portar-se como se não se tivesse passado nada e voltar a parecer alegre e até com um certo grau de tranquilidade. Se a ausência não for demasiado grande, a criança pode voltar a mostrar interesse em estar com os pais e volta a ficar desesperada quando eles partem, era o que acontecia com a pequena Laura. Mas, ao final de uma semana no hospital, quando os pais finalmente vêm buscá-la para voltar para casa o que se vê é a pequena Laura a andar atrás dos pais, sem procurar o contacto físico com eles e sem sequer se mostrar muito interessada em voltar para casa ou em estar com eles. Isto quer dizer que ela já tinha desligado completamente esse instinto e por isso já não mostrava nenhum interesse em estar com pais. E foi justamente isso que aconteceu também com este outro menino do vídeo. 

Porque é que é importante que os pais saibam isto ? 

Primeiro porque isso ajuda a que percebam que a criança não está simplesmente zangada e pode nem sequer estar consciente de que desligou essa parte de si. Isto pode ajudar também os pais a que não se sintam tão frustrados ou impacientes ou inseguros, quando a separação não foi da sua responsabilidade ou quando não tiveram como evitá-la.

Depois porque compreendendo isto também nos permite dar tempo à criança para ser capaz de reactivar esse instinto, nos casos em que lhe é possível aprender a deixar de ter medo de voltar a confiar nos adultos. Ou, nos casos em que as coisas tenham sido mais graves e mais intensas, compreender que isto é um verdadeiro trauma e que pode ser precisa ajuda profissional para lidar com ele.

Quando um pai ou mãe não compreendem aquilo que se passa com os filhos, a sua própria frustração pode fazer com que se tornem mais impacientes com eles ou que pensem que eles precisam de uma atitude mais dura ou firme e, na realidade, isto pode ajudar ainda mais a acentuar esse trauma e a piorar a situação.

Bowlby falava também de algumas experiências feitas com macacos, de que já falei aqui em que os macaquinhos eram separados das suas mães e apresentavam algumas alterações no seu sistema de resposta ao stress, tornando-se mais receosos, desconfiados e contidos nas suas explorações mesmo depois de terem sido novamente reunidos com as mães. E, nestes casos, aquilo que se verificou foi que o fazia a diferença na forma como os macacos pareciam ter ficado afectados por esta ausência era o comportamento da mãe quando voltavam a estar juntos: quando as mães eram capazes de aceitar e de acolher as suas manifestações de insegurança e as suas modificações de comportamento, estes apresentavam menos alterações do que quando as mães pareciam esperar que eles se portassem como se não se tivesse passado nada. Podemos extrapolar isto para os seres humanos. Neste caso, é claro que não é essencial termos um conhecimento da forma como o instinto de apego foi afectado pela separação, mas este conhecimento pode ser importante para nos ajudar a sentir mais confiança para saber o que precisamos de fazer para ajudar a criança a ultrapassar o trauma. 

Na verdade há outra caso da actualidade que também toca neste tema e que também demonstra como é importante o reconhecimento deste mecanismo e da forma como ele influencia todo o comportamento futuro da criança. O caso que tem sido tão falado da filha adoptiva que matou a mãe que a adoptou. Este caso tem chocado a opinião pública e há uma certa incompreensão geral de como é que uma criança que foi acolhida com tanto amor pode ter depois ter feito uma coisa destas à mulher que a acolheu. E nestes casos há uma certa tendência para pensar que existe algum tipo de maldade inerente que terá vindo com os genes ou coisa parecida naquela pessoa e que nada do que se tivesse passado com ela faria diferença.

Mas não acredito nisto. Acredito que a mãe que a adoptou o tenha feito com a melhor das intenções e que tenha sido uma excelente mãe. Na verdade não sei quase nada sobre a história de ambas, apenas aquilo que foi possível ler na comunicação social e que não diz quase nada sobre o lado mais íntimo ou pessoal das suas histórias, como é natural. Mas, mesmo partindo do princípio que a mãe dela tenha sido excelente, amorosa e boa cuidadora há um aspecto essencial nesta história que é facto daquela mulher ter sido adoptada aos cinco ou aos nove anos (já li as duas versões) e de ter vivido por isso os seus primeiros anos numa instituição. Isto quer dizer que há toda uma história por trás, que não faço ideia de qual tenha sido, mas que não pode ser ignorada. E tenho a certeza que essa história terá muita negligência ou maus tratos pelo meio. E essa negligência não tem necessariamente de estar ligada a maus tratos ou a fome nem a nenhum tipo de miséria material. Basta que em bebé, nos seus primeiros tempos de vida, não tenha havido um adulto de referência que a fizesse sentir-se segura e que a ensinasse a amar. Porque o apego é um instinto é verdade, é a partir dele que aprendemos a amar, mas para isso é preciso que esse instinto não precise de ser desligado, é preciso que sejamos capazes de continuar a dar-lhe ouvidos, é preciso que ele não seja uma fonte de sofrimento e de alerta e que não seja constantemente posto em causa. Só assim, é que através desse instinto podemos aprender a amar. E só se aprendemos a amar se tivermos sido amados.  E se isso não for aprendido nos primeiros anos da infância é possível que nunca venha a sê-lo. 

Por isso é que é importante que tenhamos um conhecimento informado sobre o apego e os seus mecanismos e é importante que saibamos reconhecer quando é importante pedir ajuda se alguma coisa acontece que possa perturbar este mecanismo de forma demasiado intensa. 

Porque sem este conhecimento o amor pode não ser suficiente para ajudarmos os nossos filhos a crescer com toda a confiança e segurança de que eles precisam. Com este conhecimento talvez esta mãe adoptiva pudesse ter ajudado a filha a  lidar com o trauma que certamente viveu nos seus primeiros tempos de vida. Sem este conhecimento a mãe emigrante do rapazinho de quatro anos pode pensar que o seu filho ficou simplesmente zangado ou até mal educado com o tempo de separação que viveu e pode acreditar que precisa de ser apenas mais dura com ele para que volte a ser um rapazinho mais afável e simpático, o que provavelmente só fará com que ele se afaste ainda mais. Sem este conhecimento podemos também pensar que para por os nossos filhos na escola é preciso deixá-los chorar ou que quanto mais cedo forem melhor será. 

Porque sem este conhecimento não percebemos que é natural que eles fiquem em alerta num sítio estranho com pessoas desconhecidas e que somos nós as únicas pessoas que podem ajudá-los a sair deste estado de alerta. 

É a primeira vez na história que entregamos os nossos filhos aos cuidados de estranhos, em sítios desconhecidos diariamente. E fazemos isto sem a mínima consciência do impacto que poderá ter e da forma como é anti-natural o que lhes estamos a pedir. Então a única forma de tornarmos isto menos prejudicial é pensar que eles estão programados para ficar com pessoas com quem se sentem seguros e isto só acontece se elas forem conhecidas e em sítios familiares. Por isso temos de ficar com eles e ser os agentes de transferência desse instinto: fazer com que os adultos que vão ficar com eles deixem de ser estranhos, mostrando que podem confiar neles. A forma de fazer isto naturalmente é deixando que nos vejam a interagir e conversar com eles, mostrando que gostamos e confiamos neles. porque os nossos filhos, quando tudo está certo, também estão programados para nos imitar e seguir o que fazemos. 

Compreender este mecanismo também nos ajuda a perceber que quando uma criança pequena desata a chorar quando os pais a vão buscar à creche por exemplo, significa que está a descarregar todo aquele stress e estado de alerta que sentiu durante o dia com as pessoas com quem se sente segura e que isto mostra, por um lado, que a creche ainda não é um local seguro e por outro que apesar de tudo também ainda não é tão ameaçador que a tenha obrigado a desligar esse instinto de vez. 

Compreender o instinto de apego também é importante para uma mãe ou um pai que precisam de se ausentar por alguns dias quando têm uma criança pequena. Porque nos permite ver com outras luz todas as alterações de comportamento que irão com certeza surgir com a nossa volta. E permite-nos também ter a capacidade de o ajudar a lidar o melhor possível com tudo que possa ter surgido nessa ausência.

É à luz deste mecanismo que também precisamos de olhar para os castigos e as palmadas para conseguirmos compreender as suas verdadeiras consequências, como já expliquei aqui

Porque é através deste instinto de apego e da sua compreensão que parte a nossa capacidade de criar filhos verdadeiramente resilientes e capazes de enfrentar os desafios. Porque este instinto é a verdadeira base da nossa força interior e o ponto até que somos capazes de o preservar e manter intacto é também o que faz toda a diferença na nossa capacidade de lidar com as adversidades e até de tirar partido delas ou de nos tornarmos simplesmente vítimas das circunstâncias. É a capacidade de amar que nos torna humanos, é o amor que dá sentido à vida e é só a partir dele que podemos construir vidas verdadeiramente felizes e realizadas. Mas sem este instinto de apego não podemos aprender a amar. Sem este instinto não somos capazes de nos tornar verdadeiramente humanos. 

Não acredito em pessoas más que tiveram infâncias boas. É verdade que existem algumas perturbações neurológicas que não têm nada a ver com infância da pessoa. O autismo, por exemplo, durante muito tempo pensou-se que tinha a ver com a frieza dos pais e hoje sabe-se que é uma desordem neurológica e uma perturbação na forma como o cérebro se desenvolve embora não se saiba ainda porque é que acontece. Mas a verdade é que estas perturbações na grande maioria das vezes não estão associadas a crimes violentos nem áquilo que chamamos de maldade.

Essa maldade e as pessoas a quem chamamos de psicopatas basicamente são pessoas sem a capacidade de amar e isto só pode acontecer numa pessoa que nunca se sentiu amada. E é preciso percebermos que, para uma criança, ser amada ou sentir-se amada são duas coisas diferentes. Todos os pais amam os filhos mas nem sempre sabemos demonstrá-lo da melhor maneira.

Este meu livro serve também para nos ajudar a perceber a melhor forma de comunicar esse amor aos nossos filhos e a melhor forma de sermos capazes de proteger e honrar esse instinto de apego tão importante que podemos mesmo dizer que forma a pedra basilar da nossa humanidade, porque, como também explico no livro, é à sua volta que toda a nossa personalidade se forma e é a forma como ele nos estrutura que também defina a nossa maneira de estar no mundo e de nos relacionarmos com os outros e até connosco próprios.