quinta-feira, 6 de março de 2014

Aprender Sem Limites


Acredito que, como pais, temos o dever de ensinar e de orientar os nossos filhos mas, a verdade, é que também temos muito a aprender com eles, se estivermos disponíveis para o fazer. E, há uns dias, aprendi com o meu filho de dois anos e meio algumas coisas muito importantes. Numa tarde de chuva, estávamos os dois em casa quando resolvi ir para a cozinha fazer umas bolachas, sabendo que ele gosta sempre de me ajudar. Mas, desta vez, em vez de me ajudar estava com mais vontade de brincar com a batedeira ou a máquina dos bolos como lhe chama. É uma batedeira velha que já só raramente uso e, por isso, já o deixei brincar com ela algumas vezes. Mas, desta vez, comecei a pensar que seria chato se ele a estragasse e disse-lhe que não podia brincar com a máquina dos bolos. Ele – que ainda por cima tem andado meio constipado e, por isso, um pouco mais impaciente – começou a chorar e a pedi-la e eu a recusar-me a dar-lha. Durante algum tempo tentei falar com ele dizendo-lhe a máquina não era para brincar. Tentei ser empática e mostrar-lhe que compreendia que ele gostava muito de brincar com a máquina mas que ela não era brinquedo e por isso não lha podia dar. Tentei distraí-lo com outros brinquedos, pedir-lhe para me ajudar com as bolachas, pegá-lo ao colo, enfim, tentei tudo o que costuma resultar e ele continuava lavado em lágrimas. Até que por fim lá resolvi pensar que, a verdade, é que a máquina já não tem muito uso e que se se estragasse não seria assim tão grave, além de que, ele já tem brincado com ela e nunca a estragou, por isso resolvi ceder. Disse-lhe que se era assim tão importante podia brincar com a máquina dos bolos. Ele ficou logo contente e eu, no fundo da minha cabeça, não podia deixar de ouvir aquelas vozinhas que dizem que não se deve ceder depois dele fazer uma birra (não gosto desta palavra mas, por vezes, não consigo evitá-la) e que tinha sido fraca por não conseguir impor-lhe limites (o fantasma dos limites que, infelizmente assombra muitas casas por aí). Mas, o que se passou a seguir mostrou-me como estavam erradas estas vozes. Com a batedeira na mão e o choro já esquecido o meu filho, dirigia-se, feliz da vida, para as tomadas da sala (as únicas que não estão protegidas) de batedeira em punho dizendo que a ia ligar para fazer os bolos na sala. Aí, é claro que tive de intervir e dizer-lhe que nem pensar, que não podia ligar a batedeira na ficha porque era perigoso (tive medo que as varetas a girar o magoassem), que se insistisse em ligá-la tinha que lha tirar e que só podia brincar com ela na cozinha dele, ao pé de mim. Ele olhou para mim, ainda com os olhinhos de choro do episódio anterior e pensei que iríamos recomeçar tudo quando o vi voltar para a cozinha acedendo rapidamente a brincar com a batedeira desligada, ao pé de mim e repetindo algumas vezes que não podia ligar a batedeira na ficha, porque era perigoso e a mãe não deixava porque podia fazer dói-dói.
 
Então, há aprendi várias coisas que aprendi com este episódio:

  1. Que não devemos ter medo de ceder: quando os nossos filhos querem algo que é importante para eles e que não tínhamos percebido que era assim tão importante, não abrimos nenhum precedente grave se lhe dissermos isso mesmo. Se lhes mostrarmos que não fazíamos ideia de que aquilo era assim tão importante para eles naquele momento e os deixarmos fazê-lo (se não houver nenhum risco ou nada de muito fundamental envolvido, é claro).

  1. Que os nossos filhos sabem bem quando falamos a sério. Neste caso, quando eu lhe disse que nem pensasse em ligar a batedeira na ficha, era a segurança dele que estava em jogo e não apenas a minha comodidade, ou o meu interesse em manter a batedeira longe das mãos dele e ele soube distinguir isso perfeitamente. E percebeu que, se no primeiro caso eu não estava assim tão certa das razões porque não devia ceder, no segundo não iria mesmo recuar.

  1. Devemos ser coerentes com as nossas imposições: o meu filho sabia que eu já o tinha deixado brincar com a batedeira por isso sentiu que não era justo que as regras mudassem assim sem mais nem menos e reagiu protestando o melhor que podia contra o que sentiu como uma injustiça.

Esta situação fez-me pensar também em vários aspectos ligados à questão dos limites, algo de que tantas vezes se fala de formas com que nem sempre concordo.

  1. Em primeiro lugar acredito que, os limites que devemos impor são os que são necessários. Neste caso eu tinha que o impedir de ligar a batedeira à ficha, por uma questão de segurança, mas o facto dele brincar com a batedeira era apenas uma comodidade minha.

  1. Mais importante do que a questão dos limites é a nossa ligação á criança. Não precisamos de criar limites apenas porque achamos que as crianças precisam de limites. Os limites já existem na vida diária: tenho que impedir várias vezes o meu filho de fazer coisas que o podem por em perigo, como atravessar a estrada sozinho, trepar ás estantes de casa ou ligar pequenos electrodomésticos nas tomadas eléctricas e esses limites, sim, claro que são necessários. Os outros que tantas pessoas defendem e acham que se devem impor fazem apenas a falta que quisermos que façam, ou seja, há determinadas situações em que eu não quero que o meu filho faça algumas coisas que me incomodam – por exemplo, neste caso queria poupar a batedeira – então, nessas alturas preciso de me questionar sobre o que será mais importante: o bem-estar do meu filho ou as minhas comodidades. Se ter aquele comportamento não for assim tão importante para ele, então podemos negociar ou tentar mostrar-lhe outra coisa para fazer, ou simplesmente dizer-lhe que não quero que o faça. Mas, se percebo que, para ele a importância daquele comportamento é maior que a minha comodidade, então não tem mal nenhum ceder. Não estamos a abrir nenhum precedente grave, nem a tornar os nossos filhos nuns tiranos ou ditadores como tantas pessoas pensam. Pelo contrário, estamos a mostrar-lhes que valorizamos os seus sentimentos, que os respeitamos e que estamos abertos a fazer cedências justamente porque eles são tão importantes para nós. Neste caso, em que eu sei que o meu filho gosta tanto de brincar com a batedeira, porque é que isso deveria ser menos importante do que a minha necessidade de a proteger quando, ainda por cima, já quase nem sequer a uso (porque tenho outra melhor, mas que pensei que se poderia estragar um dia) e quando ele já tem brincado outras vezes com ela sem nunca a ter estragado?


Na verdade, as crianças já encontram limites todos os dias, como os tais que precisamos de impor para a sua segurança e outros que a própria vida se encarrega de trazer. Porque tantas vezes está a chover quando queríamos que estivesse sol, porque nem sempre há morangos ou mirtilos (os preferidos do meu filho) no supermercado, porque nem sempre podemos brincar quando ele quer, etc. Então porquê tanta preocupação com os limites? Porque é mais fácil pensar que é tudo uma questão de regras e de disciplina do que simplesmente confiarmos nos nossos filhos e em nós próprios e sermos simplesmente capazes de ouvir o que nos diz o coração. Porque preferimos acreditar que podemos controlar uma criança com regras e com disciplina do que acreditar que podemos simplesmente chegar ao seu coração e que isso é suficiente para que ela nos dê ouvidos quando é verdadeiramente importante que o faça. Sim, porque acredito que os filhos devem ouvir os pais mas, acima de tudo, devem aprender a ouvir-se a si próprios. E alguém que aprende a ouvir por medo e por discipina ou respeito não é alguém que aprender a ouvir-se. Alguém que aprende a seguir o coração e a ouvir o seu e o dos outros é alguém que sabe perfeitamente como se deve comportar. Uma criança que se sente ouvida, respeitada, acolhida é uma criança que sabe quando é importante ouvir também os seus pais. Mas uma criança que se sente ouvida, respeitada e acolhida, por vezes, também pode ser uma criança que não desiste facilmente e, por isso, ás vezes dá mais trabalho. O meu filho sabia que eu já o tinha deixado brincar com a máquina dos bolos, sabia que eu não estava assim tão certa das razões para não o deixar brincar com ela outra vez e, por isso mesmo, fez valer o seu ponto de vista e não desistiu enquanto não o impôs. E isso é mau? Não acredito que seja, porque quero que ele cresça capaz de fazer valer os seus direitos, quero que ele cresça acreditando que a sua voz conta, que tem valor, que pode ser ouvida.
Quando fiz o meu estágio académico, em escolas primárias do concelho da amadora, onde se encontravam algumas crianças de contextos problemáticos e com vários problemas de comportamento e de integração, lembro-me que alguém um dia comentou que aquelas crianças precisavam era de limites e disciplina e lembro-me de ter pensado que o que elas precisavam era de se sentir amadas. E, hoje em dia, continuo a acreditar nisso: mais do que disciplinar ou limitar os nossos filhos, devemo-nos perguntar se somos capazes de os fazer sentir-se amados, aceites, compreendidos e verdadeiramente acolhidos em tudo aquilo que são. Acredito que é esse o único caminho para criar seres humanos verdadeiramente empáticos e disponíveis para viver com os outros e fazer deste um mundo melhor. Acredito que, na vida daquelas crianças, tal como na vida de tantas outras, o que faria verdadeiramente a diferença seria encontrarem nas suas casas, nos seus pais, um verdadeiro porto seguro, uma relação onde se sentissem verdadeiramente acolhidas, aceites, respeitadas. Limites encontravam elas todos os dias e muitos mais do que a maioria das crianças que vem de famílias mais estáveis: encontravam os limites de não terem quem lhes desse segurança, os limites de não terem uma escola que as aceitasse, os limites de serem obrigadas a passar o dia numa escola de que não gostavam, os limites dos professores que também não as aceitavam ou acolhiam e muitas vezes os limites de nem sequer terem comida em casa. O que estas crianças precisavam não era de mais limites mas sim de abertura, de serem vistas, ouvidas, aceites e verdadeiramente acolhidas, pelos pais, pela escola e até pelos colegas com quem nem sempre conseguiam relacionar-se da melhor forma. 

2 comentários:

  1. Laura, gostei muito do seu artigo e compartilhei-o em meu blog! Parabéns! Sucesso.

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  2. Lindo texto! Essas vozes de que não devemos ceder depois de uma birra e que somos fracas e sem limites também me perseguem.
    Obrigada por me mostrar que ceder não é se diminuir, mas valorizar o sentimento da minha filha. Isso mostra para ela que estou atenta às suas necessidades e que sua opinião é considerada importante (apesar de nem sempre acatada).

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