terça-feira, 2 de setembro de 2014

Os Pais como Espelho dos Filhos

Nos últimos dias de férias uma das coisas que esteve mais presente para mim é a forma como nós, enquanto pais, somos realmente o espelho dos nossos filhos. E a forma como o nosso olhar se irá tornar o olhar que eles terão para eles próprios um dia. A forma como nós os vemos agora será, muito provavelmente, a forma como eles próprios se irão ver um dia. Isto é realmente uma grande responsabilidade e é importante estarmos bem cientes dela na forma como lidamos com os nossos filhos e, sobretudo, na forma como escolhemos gerir e lidar com as situações mais delicadas.


Memória Implícita e Memória Explícita 

Para percebermos como isto acontece é importante termos noção de que existem dois tipos de memórias: a memória implícita e a explícita. A memória explícita é aquela que usamos quando sabemos que estamos a lembrar-nos de algo. Por exemplo, se alguém me perguntar a data de nascimento do meu filho eu sei que preciso de me lembrar do dia e do ano e, mesmo que não saibamos exactamente como se processa a busca dessa informação no nosso cérebro, não é possível não estarmos conscientes de que estamos a levar a cabo essa busca. Então a memória explícita permite-nos armazenar vários tipos de informação sobre nós, sobre a nossa vida e sobre tudo o que nos rodeia e permite-nos também sermos capazes de ir buscar essa informação quando precisamos dela. 
A memória explícita inclui a memória autobiográfica e a memória semântica ou factual. Estes tipos de memória começam a desenvolver-se apenas depois do primeiro ano de vida da criança, sendo que a memória autobiográfica - que nos permite ter uma noção do nosso eu ao longo do tempo e do espaço - começa a estar presente apenas depois dos dois anos de vida. Esta é uma das razões pelas quais é muito difícil termos recordações da nossa vida anteriores a esse período.

A memória implícita é aquela que usamos quando estamos a conduzir, por exemplo. Se esse gesto já está totalmente mecanizado não precisamos de nos lembrar de forma consciente de como fazê-lo, porque ele já faz parte da nossa memória implícita. Enquanto que - se precisarmos de nos lembrar das direcções para o sítio onde queremos chegar - precisamos de ir buscar essas informações à nossa memória explícita interrompendo todos os outros pensamentos para pensarmos especificamente e de forma consciente nesta questão, para continuar a conduzir não precisamos sequer de estar conscientes de que o fazemos porque todos os procedimentos que o permitem já estão armazenados nesta memória implícita que activamos mesmo de forma inconsciente.

As estruturas que possibilitam a memória implícita estão presentes e formadas desde o nascimento, ao passo que aquelas que permitem a memória explícita começam a desenvolver-se apenas depois do primeiro ano de vida.

Isto quer dizer que a memória implícita é algo que está presente desde os primeiros momentos de vida da criança (há quem defenda que pode até estar presente desde o útero) e vai sendo consolidada através de todas as experiências que a criança vai vivendo e que vão, de algum modo, moldando a forma como o seu cérebro e o seu sistema nervoso se desenvolvem.  As experiências - sobretudo as dos primeiros dois anos de vida por ser uma fase de muita receptividade em que o cérebro está em grande transformação - são determinantes para moldar a estrutura cerebral da criança e isto acontece, em parte, através da memória implícita. Porque nesta memória ficam armazenadas todas as expectativas e associações que a criança faz e que se vão transformando em redes neuronais que formam padrões de funcionamento a que a criança pode facilmente aceder. Por exemplo, um bebé cujos pais respondem habitualmente de forma adequada ás suas necessidades cria a expectativa de que pode confiar neles e de as suas necessidades são válidas e costumam ser satisfeitas. Esta é muito provavelmente a razão pela qual estes bebés a partir dos três ou quatro meses de idade costumam ser bebés que choram menos em intensidade e frequência do que no caso dos bebés que não costumam ver as suas necessidades atendidas com regularidade e previsibilidade suficientes para formarem essa expectativa. Porque, se o bebé está habituado a ver as suas necessidades satisfeitas, a sua memória implícita leva-o a construir um determinado tipo de padrão mental mais descontraído que lhe permite lidar de melhor forma com a adversidade quando ela surge. Isto é visível em bebés logo desde os três ou quatro meses - altura em que já é possível verificar algumas diferenças de comportamento em função do tipo de cuidados que os bebés recebem - até à vida adulta em que, os bebés que foram submetidos a um maior grau de stress (com pais que não respondiam às suas necessidades) se tornam adultos com maior dificuldade em gerir o stress nas suas vidas.

Então este tipo de memória implícita forma a base para muitas das nossas convicções, expectativas e formas de nos relacionarmos com os outros, com a vida e connosco mesmos. É através destas primeiras experiências de vida com os os nossos pais que criamos os nossos primeiros modelos de funcionamento do mundo e das relações. E isto cria determinados esquemas mentais que irão moldar a forma como nos relacionamos com todas as pessoas importantes da nossa vida e as expectativas que criamos em relação ao que esperar delas, mesmo que não tenhamos noção disso. Por exemplo, um bebé cujos pais nunca foram capazes de satisfazer as suas necessidades de forma adequada pode crescer com a sensação de que, ou as suas necessidades não são importantes, ou não pode confiar nos outros para as satisfazerem. E, se isto não for trabalhado, este será um dos esquemas mentais que estará sempre presente na base de todos os relacionamentos importantes que a pessoa for vivenciando enquanto adulta.

Porque este tipo de memória não é consciente, não é fácil termos noção da forma como ela nos vai influenciando e, por isso mesmo, também não é um tipo de memória que seja fácil alterar. 
Então a relação que temos com os nossos pais ou com as pessoas que cuidam de nós, através deste tipo de memória implícita e não só, tem de facto um papel primordial no moldar da imagem que vamos criando de nós mesmos sobretudo nos primeiros anos de vida.

Os pais como Espelho 

Nos primeiros anos de vida os pais são as pessoas mais importantes da nossa vida. São aqueles de quem o bebé depende totalmente para sua sobrevivência biológica e afectiva. E são também as grandes referências e modelos que permitem à criança ir construindo o mundo através das memórias implícitas que vai gerando. E o olhar dos pais é também a primeira experiência que a criança tem de se ver a si mesma. Os pais são o primeiro e mais importante espelho das crianças. Porque nenhum de nós existe de forma isolada precisamos sempre de nos ver nos olhos dos outros. Ao longo dos anos, se tudo correr bem, vamos sendo capazes de construir uma auto-imagem mais estável e menos dependente da forma como os outros nos veêm e isto é importante para nos permitir lidar com situações de frustração e até de conflito sem perdermos o centro e a certeza de quem somos e daquilo de que precisamos. Mas, se nos nossos primeiros tempos de vida, não encontrarmos este espelho de forma adequada nos nossos pais, será muito mais difícil desenvolvermos esta capacidade de encontrar esse centro, de saber quem somos, para onde vamos e o que queremos mesmo nos momentos mais difíceis.

Então é fundamental que saibamos ser o espelho dos nossos filhos mas também é muito importante não esquecermos que precisamos de ser um espelho maioritariamente positivo. Porque, se é mau crescermos sem esse sentimento de confiança e de segurança que vem de saber quem somos, é igualmente mau crescermos com uma auto-imagem maioritariamente negativa, que não somos capazes, ou de que somos incompetentes, defeituosos ou maus de alguma forma. E quantos adultos não crescem com este sentimento de que, alguma parte de si, é profundamente defeituosa, negativa? Quantas vezes não crescemos com esta sensação de que, no nosso intimo, lá nas partes mais profundas e escondidas do nosso ser, para onde muitas vezes nem nos atrevemos a olhar, deve haver algo profundamente errado connosco. Quantas vezes não crescemos com esta sensação de que, mesmo lá no fundo no fundo, não merecemos ser amados?

A maior parte das vezes estas não são sensações conscientes. São apenas algo que faz parte da tal memória implícita e que já se tornou parte do nosso esquema mental que nos norteia e orienta mesmo quando não temos noção disso. E muitas vezes gera situações difíceis na nossa vida, nos nossos relacionamentos das quais nem sabemos como sair, nem percebemos porque acontecem. E acontecem simplesmente porque foi esse o espelho que recebemos na infância. Acontecem simplesmente porque interiorizámos o olhar que sentimos que nossos pais tinham sobre nós na altura. E claro que nenhum pai quer dar aos filhos um espelho mau, claro que nenhum pai, no fundo de si, pensa que os filhos são maus ou defeituosos. O que acontece é que, enquanto pais, podemos ter todos estes receios e sentimentos guardados na nossa memória implícita e, se estes nunca forem trabalhados, serão eles que irão guiar também a forma como lidamos com os nossos filhos. E, se eu tenho uma imagem negativa de mim mesma, como mãe, será muito difícil transmitir ao meu filho algo mais positivo.

Na verdade acredito que isto tem muito a ver com uma questão básica e fundamental que está sempre presente na forma como lidamos com os nossos filhos: a confiança. (sobre a qual já escrevi aqui). Se confiarmos em nós, enquanto pessoas, se confiarmos que somos fundamentalmente bons, capazes, competentes e dignos de amor, é mais fácil transmitirmos isso também aos nossos filhos. Mas, se em alguma parte de nós duvidarmos de tudo isto, também é muito fácil transmitir aos nossos filhos essa dúvida por muito que lhes queiramos bem.

Alguns autores defendem que, por razões evolutivas, todos temos alguma tendência para dar mais atenção ao que é negativo do que ao positivo. Porque precisamos de nos proteger dos perigos potenciais é como se o nosso cérebro estivesse programado para estar sempre mais atento a tudo o que possa ser negativo e para que o registe com  mais impacto. Isto quer dizer que, nas nossas interacções com os nossos filhos, tudo o que é negativo - até porque isto tende também a ser expresso com mais vigor e intensidade - tem maior probabilidade de ficar registado. É importante lembrarmos-nos disto para sabermos que, as vezes que transmitirmos, de algum modo, aos nossos filhos uma imagem mais negativa deles próprios precisam de ser sempre em menor número do que aquelas em que lhes transmitimos algo de bom.


Para educar é importante corrigir e temos mesmo que o fazer algumas vezes mas é fundamental que aprendamos a corrigir o erro sem corrigir a criança. Se a criança correu para o meio da estrada, por exemplo, temos mesmo de lhe dizer que não pode voltar a fazê-lo. Mas é importante que procuremos forma de lhe transmitir isso sem a fazer sentir-se desaquada e envergonhada pelo seu comportamento. Por vezes achamos que é envergonhando a criança que a impediremos de repetir algum tipo de comportamento. Mas isto não podia estar mais longe da verdade, uma criança envergonhada é uma criança que não recebe um bom espelho, que aprende que nem sempre é digna de amor e respeito e, com o tempo isto irá minar a sua auto-estima, dificultar o seu controlo dos impulsos e dar-lhe cada vez menos motivos para ter vontade de fazer o que é certo pelas razões certas. Uma criança que tem um bom espelho é uma criança que é capaz de aceitar o facto de ter cometido um erro sem que isso a faça sentir-se posta em causa. Isto dá-lhe a segurança necessária para poder pensar noutras formas de lidar com a situação.

Ser um bom Espelho 

E é importante também saber que ser um bom espelho passa não só por dar uma imagem positiva dos nossos filhos mas também e acima de tudo, dar-lhes espaço para que possam descobrir quem são. Um espelho não cria, não impõe, limita-se a reflectir. Um bom espelho permite que os nossos filhos se descubram no nosso olhar. 

Dar um bom espelho aos nossos filhos implica transmitir-lhes uma noção de aceitação incondicional, uma ideia de que serão amados sejam quais forem as suas escolhas e opções. Um bom espelho passa por não criticar demasiado a criança mas também passa por elogiar excessivamente. Porque, muitas vezes, caímos no erro de usar o elogio como uma espécie de bandeira de uma parentalidade mais positiva. Mas o elogio constante também torna a criança dependente da nossa apreciação e não lhe dá espaço para que possa descobrir-se e conhecer os seus gostos e preferências. Um bom espelho é aquele que reflecte o  nosso olhar de aceitação, de amor incondicional, é aquele em que a criança pode sentir-se sempre segura e digna do nosso amor sejam quais forem as suas escolhas ou comportamentos. É nesse espelho e só com esse espelho que os nossos filhos podem crescer seguros, confiantes e capazes de descobrirem a sua verdadeira natureza.

E este espelho não tem que passar necessariamente pelas palavras mas sim pelos gestos e atitudes. As crianças aprendem mais com o que veêm do que com o que ouvem. O lado esquerdo do cérebro, da linguagem, só começa a desenvolver-se durante o segundo ano de vida mas, antes disso já o direito está em pleno funcionamento. Isto quer dizer que as crianças estão muito mais atentas aos gestos, às emoções e a tudo o que não é dito do que às palavras.

Na prática isto quer dizer que podemos e devemos expressar de várias formas diferentes o nosso amor, o nosso afecto, através de gestos e de atitudes. Por exemplo, se precisamos de corrigir uma criança podemos simplesmente dizer-lhe que preferimos que faça as coisas de forma diferente, dar-lhe alternativas com as quais nos sentimos  mais confortáveis mas dando-lhe também espaço para se manifeste contra essas alternativas se for essa a sua vontade, para que demonstre frustração, para que possamos chegar a algum tipo de acordo, por exemplo. No caso dos elogios e, se estamos mesmo muito contentes com algo que a criança fez, ser um bom espelho passa mais por mostrarmos o nosso contentamento dizendo que estamos felizes, satisfeitos ou orgulhosos mas sem cairmos na facilidade de aplicar logo um rótulo ou adjectivo à criança, como és tão bonito, por exemplo.

As interacções em que o que lhes devolvermos é uma má imagem deles próprios são todas aquelas em que estamos com menos paciência, tolerância, em que tentamos corrigir algo que eles fizeram de forma um pouco mais agressiva ou menos assertiva, todas as vezes em que lhes mostramos que não estamos satisfeitos com eles. Sempre que olhamos para os nossos filhos com impaciência, eles vêem-se como sendo chatos, aborrecidos. Sempre que olhamos para eles zangados porque fizeram algo errado eles vêem-se como incapazes, ou como maus ou desajustados. E as crianças vêem muito mais os gestos e os afectos do que as palavras. As crianças são muito boas a ler mesmo as emoções que não são expressas. Por isso é muito importante que, quando olhamos para os nossos filhos, nos lembremos do amor que sentimos por eles. É importante que deixemos estar presente o amor, o orgulho a felicidade que sentimos cada vez que nos lembramos que aqueles seres fazem parte de nós, do nosso coração, das nossas vidas. É muito importante que os nossos filhos sejam capazes de ver diariamente o brilho no nosso olhar não porque fizeram algo de bom ou de certo mas simplesmente porque são nossos filhos, simplesmente porque os amamos.

É fundamental que os nossos filhos cresçam com um espelho que lhes mostra que são capazes, competentes e dignos de ser amados. E, para que esse espelho aconteça é fundamental que não nos esqueçamos disso mesmo nos momentos mais difíceis. É muito importante que as crianças leiam nos nossos olhos essa aceitação e amor incondicionais de forma constante.

E, sempre que houver algum tipo de interacção que nos faça sentir que não transmitimos um bom espelho aos nossos filhos também é importante sermos capazes de o corrigir. Se gritámos, por exemplo, ou dissemos algo que não queríamos ter dito é importante dizer à criança que o fizemos não por causa dela, mas por nossa causa. Porque não soubemos fazer melhor naquele momento, não porque ela o mereceu mas apenas porque nós não fomos capazes de fazer diferente.


2 comentários:

  1. Laura Sanches, meu nome é Mariana e estou desesperada pois minha bebê vai fazer 9 meses e terei que trabalhar em plantão por 24h por 72 horas de folga. Acha que devo tentar trabalhar apenas 8h por dia? Será que minha bebê vai ficar com danos emocionais por causa da escala de 24horas seguidas? Será que ela se acostumar a ela se eu me afastar gradualmente? Obrigada pela atenção. Mariana (Brasil )

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  2. Olá Mariana, 24 horas é muito tempo para uma bebé ficar sem a mãe, não quer dizer que fique obrigatoriamente com danos emocionais mas com certeza que não ajudará a um bom desenvolvimento. Se puder trabalhar apenas 8 horas, será melhor com certeza. O afastamento gradual, com essa idade, não adianta muito porque, nesse caso, o que estaria a fazer seria apenas habituá-la à sua ausência, o que nunca é muito positivo.

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