quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Conversar e brincar

Há pouco tempo circulava em várias páginas do facebook um artigo que mostrava aos pais algumas estratégias para perguntarem aos filhos como tinha corrido a escola de forma a obterem respostas mais esclarecedoras, já que as crianças nem sempre têm vontade de fazer aos pais um relato completo e detalhado de tudo o que se passou nesse dia e que os pais, naturalmente, gostam de saber. Quando li este artigo o que me ocorreu foi que, se um pai ou uma mãe precisa que lhe indiquem estratégias deste género para obter informações acerca da vida dos seus filhos então alguma coisa vai mal na relação. É verdade que, ás vezes, podemos perguntar as coisas de outra maneira para obter informações, é verdade que mudar um pouco a nossa forma de falar ou de perguntar, por vezes, pode fazer alguma diferença na capacidade de estabelecermos um diálogo com os nossos filhos. Mas, também é verdade que, se sentimos que esse diálogo não acontece, ou que acontece com muita dificuldade, então em vez de procurar estratégias, provavelmente, deveríamos procurar perceber o que está mal na relação.

Usando uma metáfora a recorre Gordon Neufeld - psicólogo canadiano – no seu livro “Hold on to your Kids”, podemos imaginar o seguinte cenário: o nosso marido chega a casa, depois de um dia inteiro de trabalho e, todos os dias lhe perguntamos “como foi o teu o dia?”. E, diariamente ele responde que “foi normal” ou “não foi nada de especial” ou “foi o mesmo de sempre” e vai para o escritório ou para outra divisão mexer no computador ou ver televisão sem nos dirigir mais nenhuma palavra. Se este cenário se repete e se esta pessoa nunca mostra interesse nenhum em nos contar como foi o seu dia ou que se passou consigo, muito provavelmente não iremos procurar estratégias de o fazer falar mais connosco ou para obter informações, como se este comportamento fosse simplesmente normal. Se isto acontece muitas vezes o mais provável é que comecemos a sentir-nos frustradas e a questionar as bases da nossa relação com essa pessoa.

Então, quando um filho passa o dia inteiro longe dos pais, na escola, é muito natural que ao fim do dia, principalmente se está cansado, não tenha grande vontade de fazer um relatório completo sobre tudo o que se passou na escola. Mas, também é natural, quando as relações são boas que ele tenha vontade de contar alguma coisa que tenha sido mais importante ou que julgue mais relevante do seu dia. E, tal como acontece com as pessoas adultas, pode ser que a criança não tenha vontade de contar nada logo à saída da escola ou ao chegar a casa. Algumas crianças, tal como alguns adultos, podem precisar de algum tempo para si antes de terem vontade de partilhar alguma coisa. Outras podem querer contar logo tudo o que se passou assim que vêem os pais. Algumas crianças são mais caladas e reservadas e não ficam entusiasmadas tão facilmente. Outras entusiasmam-se com pouco e, se forem mais verbais, é natural que queiram contar logo tudo. Mas, o importante é que, quando tudo está bem e as relações são seguras as crianças acabam sempre por contar aquilo que é importante contar, no seu tempo. Isto não quer dizer que não devemos fazer perguntas, antes pelo contrário, perguntar é bom, é saudável, perguntar mostra interesse e preocupação. Mas é bom perguntar de forma autêntica e genuína e também dar espaço e tempo à criança para contar o que sente que é importante contar naquela altura. Respeitar a sua vontade e confiar no laço e na relação que estabelecemos com elas o suficiente para sabermos que elas nos contam tudo o que é importante quando é importante contar.

E algumas crianças podem não gostar de contar com palavras, até porque, se forem mais pequenas, podem ainda não dominar bem as palavras. Então, respeitar e confiar na relação que estabelecemos com os nossos filhos implica também estar atento a outras formas de comunicar que não passam só pelas palavras.

Contar sem palavras

Se queremos saber se os nossos filhos estão bem na escola, por exemplo, podemos observar as suas expressões quando falam nela, podemos observar a forma como saem da cama e de casa de manhã quando sabem que é dia de ir para a escola: se o fazem contentes e com entusiasmo na cara e no corpo ou se, pelo contrário, o corpo se arrasta e a cara fica triste por saberem que não têm outra escolha. Com crianças mais pequenas, sobretudo, podemos estar atentos a mudanças no seu comportamento: se começou a chorar mais, por exemplo, ou se tem menos vontade de brincar, se tem comportamentos mais agressivos, se se recusa a fazer mais coisas, etc. Tudo isto podem ser sinais de alguma instabilidade, que não tem necessariamente de ser negativa, mas é sinal de que a criança está a passar por uma fase de mudança interior que pode ser exigente.
Se as crianças gostam de desenhar, pintar, cantar ou dançar, estas podem também ser formas de expressão muito válidas e, se estivermos atentos, também nos podem dizer coisas sobre a forma como se sentem e como passaram o dia. 

Comunicar a brincar

É muito importante também observarmos a forma como os nossos filhos brincam. E a melhor forma de o fazermos pode ser brincando com eles, mas sem dirigirmos a brincadeira. As crianças, muitas vezes, expressam a brincar aquilo que não conseguem verbalizar. Na terapia com crianças, por exemplo, é importante que haja brinquedos no consultório porque, ao brincar as crianças reproduzem muitos padrões da sua vida e conseguem, muitas vezes, expressar coisas que são incapazes de verbalizar seja porque se tratam de experiências muito intensas ou porque simplesmente não têm capacidade para o fazer. Então, ao brincar com os nossos filhos podemos recolher muita informação de como passaram os dias. É muito natural que eles reproduzam as situações que mais os marcaram no seu dia. É provável que as crianças reproduzam comportamentos e  palavras que ouviram no seu dia enquanto brincam. Se houver alguma situação mais marcante ou até traumática, se lhes dermos espaço, ela acabará por ser reproduzida na brincadeira. Por exemplo, o meu filho uma vez partiu a cabeça e teve de ser cozido o que foi uma experiência um bocado traumatizante para ele porque ainda era muito pequeno e foi assustador estar com dores e com pessoas a agarrá-lo, numa cama de hospital para lhe darem os pontos. No meu consultório tenho uns bonecos e uma mobília de hospital, então, sempre que ele tinha oportunidade de brincar com esses bonecos, durante meses, reproduzia essa cena com os bonecos dizendo que estavam a chorar e com medo. Esta é uma forma da criança expressar o que viveu e, neste caso, ele usava esta reprodução para falar do que tinha acontecido. Sempre que alguma situação nos traumatiza é importante revivê-la quando sabemos que estamos em segurança porque isto nos permite criar uma nova associação no nosso cérebro e retirar alguma carga negativa dessa situação, que de outro modo poderia continuar a ter um impacto muito mais pesado na nossa memória. É por isso que, sempre que passamos por uma experiência traumática, ficamos com vontade de falar nela o tempo todo durante algum tempo depois de ter acontecido. É como se precisássemos de fazer uma espécie de reprogramação porque, se não o fizermos, nunca teremos oportunidade de integrar essa experiência de forma mais saudável e ela continuará na nossa memória como uma espécie de botão que fica pronto a ser activado em todas as situações que se possam assemelhar a esta, despertando uma série de sintomas daquilo a que se chama stress pós-traumático.

Então, instintivamente as crianças sabem isto e, por isso, sempre que vivem algo mais intenso, se não forem capazes de falar sobre essa experiência, irão com certeza, reproduzi-la nas suas brincadeiras quando se sentirem em segurança para o fazerem. E, quando isso acontece é muito importante adoptarmos uma atitude não de julgamento mas de escuta e de presença. Sermos capazes de ouvir aquilo que os nossos filhos nos dizem mesmo sem palavras é muito importante para que se sintam ouvidos e acolhidos e para que sintam vontade de continuar a comunicar connosco. Em algumas situações, se percebemos que eles estão mesmo a reproduzir algo que aconteceu podemos usar essa brincadeira para tentar falar com eles. Falar da situação, das emoções que despertou e do que a criança pode estar ainda a sentir em relação a esta. Isto pode ajudar a fazer a tal integração mais facilmente, mas apenas se sentirmos que a criança está receptiva e reage bem a esta tentativa.

Outras vezes, a criança fala mesmo daquilo que aconteceu e, nestes casos, por vezes a nossa tendência é para lhe dizermos que já passou, já está tudo bem e não precisa de pensar mais nisso. Mas pode ser mais útil ouvirmos a criança, mesmo que nos pareça que está a repetir aquilo pela milésima vez, porque isto significa que ela ainda precisa de reproduzir essa situação. E, se formos capazes de a ouvir com empatia e criar uma atmosfera de segurança será ainda mais fácil que a ela crie uma nova memória associada a essa situação - diferente da memória inicial de perigo - para que esta possa perder essa carga traumatizante.

Da mesma forma se aconteceu alguma coisa muito boa, com que a criança se entusiasmou também é importante estarmos presentes e sermos empáticos. É muito importante partilharmos esse sentimento com eles e sermos capazes de lhes mostrar que o sentimos, porque não há nada melhor que sentirmos que alguém de quem gostamos fica feliz por nós. E porque para construir uma relação saudável com os nossos filhos é importante que sejamos capazes de criar momentos de sintonia, de abertura, de verdadeira partilha. E, na verdade, isto não se consegue com estratégias nem técnicas mas apenas com a nossa presença, de coração aberto e liberto de julgamentos e pré-conceitos. 
Então, desta forma, confiando nos nossos filhos e na relação que construímos com eles, por vezes, podemos até nem recolher todos os pormenores e informações que julgamos importantes para satisfazer a nossa curiosidade sobre os seus dias mas ficaremos, sem dúvida, a saber aquilo que para eles é mais importante. E isso é que o verdadeiramente importa: conhecer o seu coração dos nossos filhos e aquilo que o preenche, mais do que saber se jogaram à bola ou às escondidas no recreio. 

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