sexta-feira, 28 de julho de 2017

A minha história de parto

 Cada vez se fala mais em violência obstétrica e na importância de criarmos condições para que, no momento do parto, tudo possa correr da melhor forma para o bebé e para a mãe. Quando pensamos em violência obstétrica temos tendência para pensar em maus tratos ou em negligência mas acontece que a violência nem sempre tem de acontecer de uma forma expressiva e agressiva para ser violência. Existe, muitas vezes, uma violência mais subtil e passiva que continua a ser violência apenas porque faz parte de uma visão do ser humano, neste caso da mulher e do parto e do bebé recém-nascido que é violenta, violenta no sentido de não considerar todas as suas necessidades e sensibilidades e violenta no sentido de não reconhecer a importância de tratar este momento com toda a delicadeza que ele merece. Uma violência que, por vezes, acontece não por má vontade mas simplesmente por ignorância de alguns aspectos que envolvem o momento do parto.
Então, é importante falarmos claramente sobre isso. E foi depois de ler este texto da Joana Silva, do blog Just Natural Please, que tomei consciência de que precisamos mesmo de falar sobre isto, porque se não falarmos e se não tivermos coragem de reflectir em conjunto sobre tudo o que passa as coisas nunca irão mudar. Hesitei sempre em escrever sobre isto porque é algo intimo e pessoal mas, a verdade, é que é preciso que partilhemos e que falemos muito para que as coisas possam mudar e para que essa mudança aconteça de forma mais rápida.

Então, aquilo que aconteceu comigo foi também uma forma de violência obstétrica, embora inicialmente tenha sido envolta em simpatia que a tornou mais difícil de identificar.
A minha história começou quando, às 40 semanas de gravidez, por volta das 2 da manhã, senti que me rebentaram as águas e decidi ir para o hospital passado pouco tempo. Enquanto estive nas urgências, na verdade, não tenho queixas e tudo correu bem e senti-me sempre respeitada. Da mesma forma, é preciso também dizer que senti sempre muito bem tratada durante todo  internamento do pós-parto, onde senti que estava a verdadeiramente a ser cuidada. O médico que me atendeu nas urgências explicou que me iria internar apenas para ser monitorizada porque não havia nenhum sinal de contracções mas o facto das águas terem rebentado poderia aumentar o risco de infecções. Quando perguntei quanto tempo teria de ficar internada ele disse-me que era impossível dizer porque poderia até levar dias para que o parto se desencadeasse de forma natural. Falou-se na possibilidade de fazer uma indução mas foi sempre muito claro que isto só aconteceria se eu pedisse e que poderia ficar vários dias à espera desde que continuasse tudo bem com o bebé, como parecia ser o caso.

Acabei então por ir para um quarto por volta das 7 da manhã e e ao meio dia comecei a ter contracções. Para espanto da enfermeira que me ligou ao ctg estas começaram muito rapidamente a tornar-se mais fortes e seguidas. Desci então para o bloco de partos, já com o meu marido que entretanto chegou. Até aqui tudo corria bem e bastante depressa. Fui examinada apenas duas ou três vezes e as enfermeiras ficavam sempre espantadas com a rapidez com que estava a acontecer a dilatação. Houve uma altura em que me sentia com quebras de tensão quando as contracções ficavam mais fortes, porque estava há muitas horas sem comer e tinha dormido muito pouco mas uma enfermeira trouxe-me um sumo de fruta que me deu logo mais energia e resolveu esse problema.

Então, ao fim talvez, de umas três horas de ter começado a ter contracções estava já na sala de parto e foi aqui que tudo se complicou. As contracções eram muito seguidas e intensas e muito rapidamente deixou de haver qualquer intervalo entre elas. A certa altura lembro-me que uma enfermeira me perguntou se eu tinha feito o curso de preparação para o parto e eu disse que não e parece que foi aqui que tudo começou a descambar. Não fiz curso porque considerei que tinha lido o suficiente sobre o tema e estava confiante, achava eu, na minha capacidade de parir. Mas a enfermeira aqui ficou preocupada por achar que eu não tinha aprendido a respirar então começou a querer ensinar-me como fazê-lo. Mas eu não queria aprender a respirar de nenhuma maneira específica, queria apenas que me deixassem em paz e à vontade. A certa altura lembro-me que alguém me disse que tinha de respirar bem porque se não não chegava oxigénio ao bebé. Hoje, olhando para trás, isto parece-me um absurdo porque obviamente que em nenhum momento eu deixei de respirar mas é claro que tinha uma respiração alterada. Antigamente havia quem defendesse que uma forma de respirar própria poderia ajudar as mulheres a controlarem a dor mas também já há muito quem diga que isso é totalmente irrelevante e que se deve deixar a mulher respirar como quiser. Na verdade, acho que essas respirações que se aprendem têm um efeito placebo e servem apenas para que a mulher acredite que pode controlar alguma coisa, mas o que eu queria naquele momento era mesmo não ter de controlar nada. Não estava com muito medo da dor. 

A certa altura a mesma enfermeira, acho eu - na verdade não estava a reparar muito bem com quem é que estava a falar - perguntou se eu queria experimentar o gás, explicou-me o que era e pareceu-me inofensivo por isso resolvi tentar. Mas aquilo não fazia efeito nenhum e ela explicava-me que não fazia efeito porque eu não estava a respirar correctamente, que era preciso por a máscara na boca e respirar não sei quando e não sei como para inspirar bem o gás no momento certo e sentir alívio. E ela já me dizia que se zangava comigo se eu não respirasse bem e lembro-me de ter um momento em que pensei que só me apetecia atirar-lhe com a máscara à cabeça.
Depois a certa altura houve também uma enfermeira, não sei se a mesma ou outra, que começou a perguntar-me em que posição é que eu queria ter o bebé. E eu não tinha vontade de lhe responder, ela insistiu, insitiu até que eu disse talvez de cócoras mas  que não sabia. Mais uma vez tudo o que queria era que me deixassem em paz e não me fizessem falar. Queria apenas que me deixassem mexer à vontade e na altura logo veria qual seria a melhor posição.

Neste caso a enfermeira estava a ser bem intencionada e realmente queria que tudo corresse como eu tinha planeado. Mas o que eu tinha planeado era justamente que não queria ter planos. Foi por isso que nunca cheguei a escrever o meu plano de parto porque, ingenuamente, acreditei que, na altura saberia o que fazer e seria capaz de o fazer.

Entretanto havia um rádio a tocar com música que não me dizia nada e até me estava a aborrecer mas não conseguia queixar-me disso. Estava naquele estado a que muitas mulheres chamam a partolândia, um estado em que estamos completamente inundadas de hormonas, que servem para atenuar a dor e que também nos põem num modo de funcionar puramente instintivo. Por isso muitos médicos, como Michelle Odent, por exemplo, defendem que o ideal é não estimular nada o lado racional da mulher durante o parto, para que essas hormonas possam fazer o seu trabalho é importante não fazer a mulher pensar, nem falar, é importante que o local seja relativamente escuro e que tudo se faça para que a mulher se sinta segura e possa activar o seu instinto, que sabe exactamente aquilo que é preciso em cada momento. Afinal de contas parir é algo mais animal do que racional.


E desde as primeiras contracções que eu ia emitindo uma espécie de gritos de cada vez que tinha uma contracção. Digo uma espécie porque não eram bem gritos, era algo que vinha bem mais de dentro, era uma vocalização instintiva que me ajudava a lidar com a dor e torná-la bem mais suportável. Não sei porquê nem de onde vinham aquelas vocalizações mas sei que na altura era tudo o que o meu corpo me pedia para fazer, para além de alguns movimentos que também iam ajudando um pouco. Quem me conhece sabe que não sou de gritar, já tive três cólicas renais e nunca gritei, já desmaiei de dor,  já chorei, já vomitei até por causa das dores mas nunca gritei porque, nesses casos, sabia que não me servia de nada, mas aqui sentia mesmo um alívio grande sempre que fazia esses sons.

Então quando as contracções passaram a ser sempre seguidas e mais intensas, naturalmente estes gritos também aumentaram de tom, creio eu. E, a partir de certa altura, comecei a ficar muito consciente de que aquelas vocalizações pareciam incomodar as pessoas, parecia-me a mim que todos à minha volta achavam que eu estava a ficar descontrolada e que isso não era bom. E foi precisamente neste momento que entrou o médico anestesista que nunca deveria ter entrado naquela sala. Lembro-me bem dele, era um rapaz novo com ar de quem estava ali há pouco tempo e de quem queria resolver as dores do mundo e a quem parecia completamente absurdo eu estar ali a sofrer quando ele me podia ajudar. Entrou e perguntou se eu não queria epidural, eu disse que não e ele insistiu, perguntou porquê,  e quis saber de que é que eu tinha medo. Eu ainda disse que tinha medo que aquilo complicasse as coisas e atrasasse tudo. Ele disse que não ia atrasar nada, que só ia deixar de sentir as dores mas ia continuar a sentir tudo o resto e podia fazer tudo na mesma, mas sem dor. Eu perguntei se seria mesmo assim, ele disse que sim. Eu ainda hesitei e perguntei se ele achava mesmo que não ia trazer nenhuma complicação e lembro-me perfeitamente da resposta porque foi aqui que cedi: ele disse que todas as pessoas naquela sala acreditavam que era mesmo a melhor ajuda naquele momento. Então eu cedi, disse que sim, que nesse caso queria. O meu marido diz que me perguntou duas ou três vezes se eu tinha mesmo a certeza que queria mas já nem me lembro disso. Só me lembro que a seguir me começaram a dizer que tinha de ficar muito quieta para levar a injecção e eu não conseguia ficar quieta porque todo o meu corpo me pedia para me mexer. Nesta fase eu já tinha a dilatação completa e estava no período expulsivo. O meu marido também conta que houve uma enfermeira que ainda disse que já não valia a pena mas ninguém a ouviu. Lembro-me que foi preciso agarrarem-me para me darem a injecção e foram precisas todas as pessoas da sala para me segurarem as pernas enquanto eu tentava mexer-me e gritava “mas ele já quer sair, ele quer sair.”  

Mas, assim que me deram a epidural, deixei de sentir as dores e tudo o resto. Perdi toda a sensibilidade nas pernas e em todos os músculos da cintura para baixo. Tive de ficar deitada porque as minhas pernas pareciam mortas e quando me diziam que tinha de fazer força não o conseguia fazer porque não sentia absolutamente nada. E por isso um parto que estava quase no final ainda demorou mais um bom bocado e foi preciso vir um médico para fazer a episiotomia e usar ventosas porque para puxar o bebé porque eu já não era capaz.

A certa altura lembro-me que todos me gritavam para fazer força e eu fazia mas não nos músculos certos e diziam-me que não era na cara que precisava de fazer força e eu voltava a tentar. Às tantas, com todos a ralharem e eu sem saber mais o que fazer, o meu marido disse qualquer coisa do género vamos lá ter calma e o médico só lhe gritou “calma, não, calma não, que esse bebé agora tem mesmo de sair que já está a demorar tempo demais.”

Esse médico, ao contrário de todos os outros, foi sempre frio e distante. Nunca me explicou o que estava a fazer, nem porque é que o fazia. Na verdade ele estava ali a dirigir tudo mas foi sempre uma outra médica, em formação, que fez tudo, a quem ele ia dando ordens e explicando as coisas como se ela estivesse a mexer num boneco e não numa pessoa real, que estava ali a ouvir tudo e que era também uma parte do processo. No final, quando perguntei quantos pontos tinha levado, até me respondeu ligeiramente irritado que as senhoras querem saber o número de pontos mas que ali não se contavam os pontos.

Quando o meu filho nasceu, por ter demorado tanto tempo no período expulsivo penso eu, estava roxo e só me lembro de o ver ser levado para outra sala onde ainda ficou um bocado para recuperar. Só passado um bocado é que a enfermeira disse ao meu marido que podia ir lá vê-lo mas ele também não pode pegar-lhe nessa altura.

Quando o trouxeram, passado talvez uma meia hora, já vinha vestido e limpo e eu fiquei com um sentimento de culpa do tamanho do mundo por ter deixado que o levassem, por ter aceitado a maldita epidural, por não ter sido capaz de fazer força, por não ter tido sequer consciência do momento em que nasceu.
Com a epidural perdi as dores mas perdi também toda a consciência do meu corpo da cintura para baixo e a minha capacidade de ter um papel activo naquele momento tão importante. Mas mais do que isso, só mais tarde percebi, que me senti também a perder a ligação que tinha com o meu filho e que estava tão presente até essa altura. Senti-me como se o tivesse traído porque ele continua a fazer o papel dele mas eu já não era capaz de fazer o meu.

O meu primeiro parto tinha sido uma cesariana porque o bebé não tinha dado a volta e, agora, com um parto natural, a frustração de não estar com ele logo nos primeiros momentos e essa sensação horrível de o ver ser tirado de dentro de mim e logo levado para longe, era igual mas ainda com a agravante da culpa de sentir que agora era eu que tinha falhado.

Na altura senti que a culpa era mesmo toda minha porque não tinha sido capaz de dizer que não à epidural. Mas agora, olhando para trás, sinto que deveria ter sido protegida dessa pressão e sinto-me zangada com o médico que pressionou mas também com todas as outras pessoas que não impediram que isso tivesse acontecido. Na altura fiquei também zangada com o meu marido que não me impediu de levar a epidural mas hoje em dia reconheço que ele também estava num papel difícil e ingrato porque também tinha o direito de estar nervoso, uma vez que também era ele que estava prestes a tornar-se pai e realmente não podia tomar decisões sobre algo que só eu é que sentia.

Por isso é que acho importante que falemos honestamente sobre estas coisas. Porque os profissionais precisam de saber que é importante confiarem mais nas mulheres e em todo o processo de parto. Porque senti que o que falhou no meu caso foi mesmo isso: a confiança de que tudo estava a desenrolar-se como devia. Esta confiança acabou por desaparecer de mim porque não a senti nas pessoas à minha volta. E é isso que sinto que falta: tratarmos o parto como um evento natural e normal que deve ser encarado com toda a normalidade excepto nos casos em que haja complicações.

Uma das coisas em que pensei foi na possibilidade de ter um parto em casa. Eu nasci em casa e sempre acreditei que esta é uma possibilidade válida nos casos em que não há complicações. Mas, ironicamente, uma das razões que me levou ao hospital foi pensar que queria poder gritar à vontade e as horas que fosse preciso sem ter os vizinhos a bater-me à porta ás 3 da manhã. Pensei que escolhendo um hospital com fama de se dedicar a partos mais humanizados poderia confiar e entregar-me à vontade às pessoas que o fizessem. Fui ingénua e hoje o que faria diferente seria ter uma doula que me pudesse proteger mesmo das boas intenções. Mas, na verdade, gostaria que não fosse preciso ir para o hospital com alguém para me defender. E que também não fosse preciso pensar em ficar em casa apenas para estar protegida dessas intervenções desnecessárias.

Então o que eu gostava mesmo era que passássemos a acreditar mais no corpo da mulher e a compreender melhor que uma mulher a parir precisa apenas de se sentir segura e de um ambiente tranquilo, com o mínimo de intervenções onde tudo se possa desenrolar. Os médicos precisam de aprender a confiar na natureza e a saberem que, neste caso, o ideal é mesmo que não sejam necessários.

Acredito que o parto é um momento importante na vida de qualquer mulher mas também e ainda mais para o bebé. Na verdade tive muita sorte do meu parto não ter deixado grandes sequelas físicas para além de me ter obrigado a passar uma semana de cama totalmente incapaz de fazer o que quer que fosse.  Mas as sequelas mais importantes muitas vezes são aquelas que não se vêem. E a verdade é que acredito que um parto complicado pode influenciar todo o puerpério negativamente, com uma mãe mais nervosa e insegura mas também o bebé.

Para que a transição se faça da forma mais suave possível para o bebé é fundamental que haja o contacto pele com pele logo a seguir ao nascimento e é fundamental que o bebé seja deixado em paz, livre de intervenções e que tenha todo o tempo para se habituar a estar cá fora, antes de ser pesado, medido e etc. Um bebé que é recebido sem estes cuidados, a quem nem sequer é permitido que fique junto da mãe, o único corpo que conhece, nos primeiros tempos de vida, terá todas as probabilidades de ser um bebé mais ansioso, mais nervoso, um bebé mais reactivo e mais sensível, para além de todas as complicações e dificuldades que isto pode trazer à amamentação que, no meu caso, felizmente não aconteceram. E se juntarmos a um bebé reactivo e sensível uma mãe que se sente ainda traumatizada, deprimida, nervosa, agitada ou culpada porque o parto não correu como devia, então é claro que aumentamos muito as probabilidades de que tudo comece a correr mal. Porque o parto é um momento tão importante tem um impacto também muito grande na estrutura psicológica da mulher e, quando as coisas não correm como devia, é muito fácil que surjam traumas que podem deixar marcas profundas. No meu caso, lembro-me bem de ter ficado ainda vários dias num estado de alerta que nunca me lembro de ter conhecido antes, como se fosse impossível relaxar porque todo o meu organismo tinha entrado num modo de defesa e protecção. E claro que esta não é a melhor forma de nos ligarmos a um recém-nascido que, ainda por cima, é altamente influenciável e permeável às emoções da mãe.

Gordon Neufeld diz que a hipersensibilidade é a marca de um nascimento que teve demasiadas intervenções. E temos cada vez mais bebés hipersensíveis, bebés mais reactivos, que choram mais e são mais difíceis de acalmar, bebés também com mais dificuldade para dormir ou mamar e bebés que são mais desafiantes para os pais. Acredito que uma parentalidade com  o apego em mente pode servir para corrigir ou diminuir muitas destas marcas mas, se a mãe também está fragilizada, traumatizada e em alerta porque o parto não correu bem então torna-se mais difícil ler eficazmente os sinais do bebé e ser uma fonte de segurança e conforto para ele.  E se o parto também não a ajudou a acreditar em si e nas suas capacidades, isto pode fazê-la sentir-se menos capaz de lidar com um bebé que ainda por cima é mais sensível.

Então precisamos de saber receber os bebés neste mundo com toda a tranquilidade que eles merecem e precisam e para isso precisamos de re-aprender a confiar na mulher, no seu corpo e nas suas capacidades. E reconhecer que, se a ciência e a medicina nos trouxeram muitas vantagens, há momentos em que é muito bom que saibamos que pô-las de lado e respeitar a natureza. Por isso acho que é importante falarmos, debatermos e expormos as nossas experiências e angústias, para que as coisas possam realmente mudar e foi por isso que decidi também partilhar a minha experiência, porque precisamos mesmo de várias vozes a falar disto e a pedir as mudanças que são necessárias. 

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