sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Crianças que mordem

Já escrevi aqui sobre as crianças que batem e sobre como isso é uma fase normal do desenvolvimento. Mas ultimamente tenho pensado mais nas crianças que mordem, provavelmente porque tenho um mordedorzinho com pouco mais de um ano, uma boca cheia de dentes e mandíbulas de pit-bull. Não vale a pena explicar outra vez as razões pelas quais as crianças mordem porque, regra geral, são as mesmas que as levam a bater e estão já explicadas neste texto. Então, resumidamente, podemos dizer que as crianças mordem, da mesma maneira que batem, quando se sentem frustradas, cansadas ou contrariadas. Pode haver casos em que morder é também uma forma de chamar a atenção de outras crianças, por exemplo, ou apenas uma forma de aliviar a tensão das gengivas quando os dentes nascem ou até uma forma de brincadeira mas não costumam ser esses os casos que preocupam mais os pais porque é fácil de perceber que, nessas situações, a criança não o fez com más intenções.

O que preocupa mais os pais são aquelas dentadas que vêm mesmo da frustração e em que se percebe que a criança ficou aborrecida ou zangada com algo, até porque, geralmente nesses casos elas também acabam por ser mais fortes. E a verdade é que se o bater preocupa muita gente as dentadas ainda mais porque costumam fazer mais estragos e muitas vezes deixam marcas. Se apanhar uma palmada de uma criança de 1 ou 2 anos pode ser desconcertante, a verdade é que esta incomoda mais pela preocupação com o acto em si do que pelo estrago que faz em quem a apanha, mas as dentadas podem magoar mesmo e até fazer sangue ou deixar nódoas negras. Por isso os pais ficam preocupados com a criança que mordeu mas também com quem foi mordido que, se for outra criança, muitas vezes, acaba mesmo a chorar.

Então o mais importante, em primeiro lugar, é lembrarmos-nos que as crianças não vêem o mundo pelos nossos olhos. As crianças mais pequenas, para além de não terem os chamados sentimentos mistos, como expliquei aqui, também não têm de forma desenvolvida aquilo a que se chama a teoria da mente. Isto é o que nos dá a capacidade de perceber que os outros vêem as coisas e pensam de uma maneira diferente da nossa. Só a partir dos 4 anos de idade é que uma criança começa a ser capaz de entender que existem outros pontos de vista e que as pessoas podem ver o mundo de uma perspectiva muito diferente. Apesar de geralmente começar a haver alguns sinais de que se está a desenvolver esta capacidade a partir do primeiro ano de idade, só a partir dos 4 anos é que a criança começa mesmo a ser capaz de perceber que os outros podem não ver o mesmo que ela e, na verdade, ainda serão precisos vários anos para esta capacidade estar mesmo bem desenvolvida, até sermos capazes de entender que as outras pessoas podem ter motivações e sentimentos muito diferentes dos nossos nas várias situações e, na verdade, nem sempre os próprios adultos têm esta capacidade.

Então, isto quer dizer que uma criança que se zanga e morde outra ou nos pais está apenas a fazer isto por instinto, não porque sabe que o pai ou a outra criança vão ficar magoados. Por vezes as crianças depois de morder ficam mesmo espantadas com a reacção do outro, quando esta é mais intensa, porque não percebem realmente que magoaram.

Além disso, morder, tal como bater em momentos de tensão ou frustração é um comportamento automático fruto de uma alteração fisiológica que também expliquei aqui, por isso se ralharmos ou reprimirmos fortemente esse comportamento só iremos criar mais tensão que, também ela, terá de ser libertada de alguma forma.

Então o que podemos fazer quando temos crianças que mordem com muita frequência?

Primeiro precisamos de perceber o que é que originou essa reacção por parte da criança. Por vezes os pais dizem que a criança não estava zangada quando mordeu, então aqui, é preciso perceber se a criança mordeu apenas como forma de brincadeira ou se mordeu para chamar a atenção da outra criança ou se mordeu mesmo para libertar alguma tensão que ao adulto possa ter passado despercebida.

É importante tentarmos perceber as alturas em que a criança costuma morder e as razões pelas quais o faz para podermos evitar que o faça, sobretudo quando está com outras crianças a quem pode magoar. Assim se percebermos que uma criança pode estar prestes a morder outra podemos mais facilmente intervir afastando-a da outra criança ou procurando, sempre que possível, minimizar a fonte de tensão para ela.

Depois, quando não conseguimos mesmo evitar e a mordidela já aconteceu, é importante que nos lembremos que a criança não o fez com más intenções e saber que não adianta ralhar, nem castigar e muito menos envergonhar a criança, porque isso só irá criar mais tensão. O que podemos fazer, nos casos em que outra criança foi magoada, é chamar a atenção para esse facto e mostrar à criança que o outro ficou triste. Apenas como forma de ir chamando a atenção para os sentimentos dos outros mas sem esperarmos que uma criança de um ano ou dois compreenda verdadeiramente isto e sem lhe incutirmos uma atitude pesada e de culpa pelo facto do outro estar a triste ou magoado. Os pedidos de desculpas forçados não têm grande utilidade como já expliquei aqui.

Depois é importante também fazer alguma coisa com a criança que foi magoada sobretudo quando ela é um pouco mais crescida e se os pais não estiverem presentes - se os pais estiverem presentes serão sempre eles as pessoas mais indicadas para confortar a criança caso ela tenha ficado perturbada. Mas, se a criança já tiver idade suficiente para compreender, então, depois dos pais a confortarem também é importante que sejamos capazes de criar empatia com ela e de mostrar que compreendemos e reconhecemos os seus sentimentos. Muitas vezes o que dói mais não é tanto a dentada mesmo mas o sentir-se agredida pelo outro, então aqui é importante explicar que o outro que mordeu não o fez por mal e que ainda não percebe que está a magoar. Às vezes caímos na tentação de ralhar ou castigar a criança que mordeu apenas para que o outro veja que estamos do lado dele ou que reconhecemos a sua dor, às vezes os pais da criança que foi mordida quase exigem isso aos pais do que mordeu. Então, nestes casos, o mais importante é perceber que podemos mostrar à criança que foi mordida que nos importamos com ela mesmo sem castigar ou ralhar com a outra. Basta que nos foquemos nos sentimentos de quem levou a dentada e que sejamos capazes de mostrar que os reconhecemos e acolhemos. E por vezes temos de ser empáticos também com os pais que viram o filho a ser mordido e acabam também por, de certa forma, se sentirem eles próprios agredidos. Mas essa empatia não significa que precisemos de mudar nada na forma como achamos certo educar os nossos filhos. Precisamos de saber que, nestes casos, não ralhar ou não castigar não é ser permissivo é apenas compreender que essas atitudes não servem para impedir a criança de voltar a fazê-lo, acabam por criar mais tensão e frustração na criança e não têm mesmo nenhuma utilidade pedagógica.

E quando somos nós, os pais, o alvo da mordidela?

Por vezes pode haver uma reacção instintiva de dar uma palmada a uma criança que morde. Se isso acontecer podemos reconhecer que foi apenas o instinto que entrou em acção quando nos sentimos atacados e nem sempre é fácil controlar esse impulso mas é importante sabermos que esse instinto não é a forma mais certa de resolver a situação. Nestes casos podemos simplesmente afastar a boca da criança de nós e dar-lhe espaço para que ela manifeste a sua frustração de outro modo, esperneando, gritando, chorando, nos casos em que isso for necessário. É muito importante que sejamos capazes de por de lado a parte de nós que se sentiu agredida, ofendida ou ameaçada por aquela dentada e saber que isso não faz do nosso filho uma má criança ou má pessoa, nem que ele não gosta de nós e lembrarmos-nos que é apenas uma reacção instintiva, natural e que irá desaparecendo com o tempo.

E quando isto acontece na escola?

Muitas crianças mordem aos coleguinhas na creche. Aqui é preciso, em primeiro lugar, termos noção de que não há nada de natural em termos uma sala cheia de crianças da mesma idade, todas na mesma fase de desenvolvimento, com necessidades muito semelhantes e poucos adultos que as ajudem a preenchê-las. Então é praticamente impossível que este ambiente não gere tensões. Como em tudo na vida há crianças que são mais ou menos sensíveis a essas tensões e há também crianças que são mais ou menos reactivas. Então uma criança que morde nestes contextos precisa de ser observada com alguma atenção, de modo a percebermos se há alguma forma de evitar a mordidela antes dela acontecer. Quando ela já aconteceu, tudo o resto se aplica também: é preciso criar empatia com a criança que chora e perceber que a criança que mordeu o fez apenas como uma espécie de descarga de tensão, não com maldade ou intenção de magoar, porque uma criança pequena simplesmente ainda não consegue ver as coisas desse modo.

Quanto mais formos capazes de acolher as tensões, com mordidas ou batidas ou não, das nossas crianças mais facilmente também elas serão capazes de aprender a transformá-las e a lidar com elas de forma mais positiva. Mas para isso a criança precisa de um modelo já que só lhes será possível aprenderem a fazê-lo se os adultos à sua volta também forem capazes de lidar com as suas emoções de uma forma mais construtiva e não se limitarem a explodir também com as frustrações do dia-a-dia. E precisam também sobretudo de sentir que as suas emoções podem ser acolhidas e recebidas pelos seus pais, por muito intensas que sejam, pois só assim podem crescer sem ter medo de si próprias e daquilo que podem sentir. E precisam também da ajuda dos pais para aprender a regular essas emoções difíceis e intensas e para perceberem que elas podem acabar por se transformar noutras mais fáceis de acolher, porque sem essa ajuda dos pais que precisam de servir de modelo nesse processo de transformação das emoções, todas as crianças ficam perdidas e desorientadas quando sentem emoções mais intensas. Essa ajuda pode passar por pegar ao colo uma criança que chora, por lhe dar um abraço ou simplesmente por ficar ao pé dela, mostrando que não temos medo daquela emoção e que é possível ficar ali, presente, enquanto ela a manifesta. O contacto físico, sobretudo com crianças mais pequenas, é uma forma muito eficaz de diminuir a activação fisiológica e de ajudar a criança a lidar com as emoções difíceis e a transformá-las mas, para isso, é preciso que a criança aceite esse contacto, não adianta abraçar à força uma criança que chora e esperneia porque aí ela irá sentir esse abraço apenas como uma espécie de prisão, vai sentir que a estão a conter à força. Então, se a criança não está ainda pronta para aceitar o nosso colo ou abraço é preciso esperar um pouco, ficando simplesmente ali e mostrando que estamos disponíveis e prontos para a abraçar ou pegar ao colo quando ela nos der um sinal de que já irá aceitá-lo.

E depois, como em tantas outras coisas, é preciso que sejamos capazes de confiar nos nossos filhos, saber que estes comportamentos mais agressivos não são nenhuma prova da sua má formação ou má natureza, são apenas prova que os seus instintos estão a funcionar e de que temos que ser capazes de esperar que a natureza vá fazendo o seu trabalho. Para que uma criança aprenda a controlar os seus impulsos - algo que até os adultos, por vezes, têm dificuldade de fazer - é preciso que se desenvolvam algumas partes do cérebro que servem para controlar as zonas que estão mais ligadas aos instintos e à emoção. Essa zona, o cortéx pré-frontal começa a ser desenvolvido na infância mas só completa o seu desenvolvimento por volta dos 25 anos de vida, se encontrar as condições certas para isso. Porque, em muitos casos, na verdade este desenvolvimento nem chega a ser completo. Então para este desenvolvimento acontecer de forma harmoniosa é preciso que a criança viva num ambiente que lhe permita fazê-lo, isso significa que ela precisa de se sentir segura, acolhida e protegida pelos seus pais e pelos adultos importantes na sua vida.

Sabemos cada vez mais que quando as crianças são sujeitas a estados de tensão ou stress durante demasiado tempo, sobretudo nos primeiros anos de vida, estes estados acabam por inibir o desenvolvimento de algumas áreas do cérebro, como o cortéx pre-frontal. E também sabemos que isto poderá estar na base de vários perturbações de comportamento ou de desenvolvimento, como por por exemplo o défice de atenção e a hiperactividade de que tanto de fala hoje em dia, como já expliquei aqui. Só através deste desenvolvimento é que a criança pode aprender realmente a controlar os seus impulsos em situações de stress, porque é esta zona do cérebro que lhe permite ter algum controlo sobre as partes mais primitivas. Então, precisamos de confiar nos nossos filhos, saber que a natureza está a fazer o seu trabalho mas que esse trabalho é lento e que para a ajudarmos da melhor forma possível tudo o que precisamos de fazer é criar um ambiente de amor e de segurança.


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