segunda-feira, 25 de junho de 2018

Crianças separadas dos pais e política de coração fechado

Nas notícias ultimamente o mundo tem assistido em choque ao que os E.U.A têm vindo a fazer com a sua política de imigração que separa pais e crianças, pequenas ou grandes.  Muitos psicólogos, pediatras e investigadores nas áreas do apego e do stress têm-se manifestado contra a gravidade desta política e aproveitado para tentar explicar a gravidade e o impacto que podem ter este tipo de situações, como se pode ler neste artigo, da conhecida Psychology Today, assinado por quarenta investigadores desta área.


É muito importante percebermos as consequências deste tipo de políticas porque se é chocante  para todos ver uma criança a chorar porque está num sítio estranho, ameaçador sem os seus pais é muito importante que percebamos que, infelizmente, as consequências de um trauma deste tipo não irão acabar quando a criança voltar a estar com os pais e podem mesmo prolongar-se por toda a sua vida.

Já há algum tempo que vários investigadores e teóricos do desenvolvimento defendem que, para uma criança, é mais importante a necessidade de se sentir ligada a um adulto que cuide de si do que a própria necessidade de alimento que, até aos anos 50 se acreditava ser a mais importante. Isto faz  todo o sentido se pensarmos que, para um bebé humano se alimentar ele precisa de ter uma ligação com um adulto que se preocupe e se importe consigo o suficiente para lhe dar esse alimento com a frequência necessária e também precisa de manter essa ligação para ter alguém que cuide das suas necessidades físicas mais básicas, como manter-se limpo, quente e num ambiente protegido.

Por isso todo o instinto dos bebés e crianças lhes diz que precisam de estabelecer essa ligação que acontece com as pessoas que cuidam de si durante a maior parte do tempo. E esse mesmo instinto também lhes diz que, sobretudo em situações de perigo, é a essas pessoas que precisa de recorrer e que são essas pessoas as responsáveis por manterem a sua integridade física e por lhe darem o sentimento de conforto e de protecção de que necessita. Se, por algum motivo, a criança ou o bebé sente essa ligação ameaçada ou se sente que alguma coisa do exterior o pode estar a colocar em perigo todo o seu organismo entra num estado de alerta que, se se prolongar por muito tempo, se torna naquilo a que chamamos o stress tóxico, que causa vários prejuízos à sua saúde e que prejudica e limita muito todo o seu desenvolvimento neurológico e cerebral.

É também este instinto de apego que diz às crianças que quando estão em sítios estranhos devem procurar a protecção dos seus pais, para se sentirem seguras. E é isso que qualquer criança saudável demonstra claramente no seu primeiro dia de escola ou em tantas outras situações estranhas: que quer ficar junto daqueles com que se sente segura e a quem está mais ligada.

O que é que acontece às crianças em situações tão traumáticas como esta?

Aquilo que pode ser observado nestes casos é que uma criança saudável e segura começa  por protestar com todas as suas forças, activando o seu instinto de apego, na tentativa de fazer com que os seus pais a oiçam e respondam aos seus protestos fazendo-a sentir-se novamente protegida. O choro é um mecanismo que tem como finalidade fazer com que os pais reajam e respondam à situação, preenchendo assim as necessidades da criança.

Mas, se não há uma resposta a esse choro, então ele não está a cumprir a sua finalidade. Por isso, com o tempo esses protestos vão diminuindo de intensidade e, se esta situação se prolongar, acabam mesmo por desaparecer. O que não quer dizer que desapareça o estado de alerta. De um ponto de vista fisiológico a criança pode continuar num estado de alerta e de activação mas o choro passa a ser um desperdício de energia, se não se obtém resposta, e o organismo, sobretudo em alturas de tensão, precisa de conservar ao máximo essa energia para garantir a sua sobrevivência.

E isto é o que muitas vezes faz com que os adultos pensem que a criança está a aprender a lidar com a situação: o facto do choro, a manifestação mais visível de sofrimento, começar a desaparecer ao final de algum tempo. E, na realidade, a criança até parece tornar-se mais autónoma, independente e pode até dar um falso ar de segurança que pode enganar um olhar menos atento. Isto porque a criança tenta a todo o custo adaptar-se à situação para conseguir sobreviver. Mas esta adaptação tem um custo: ela precisa de se desligar dos seus sinais de alarme. Porque enquanto estes estiverem ligados, com toda a sua intensidade, ela não vai ser capaz de fazer mais nada e isso pode por em perigo a sua sobrevivência. Acontece que a única forma eficaz de desligar esse alarme seria a presença dos pais, que podem trazer de volta o sentimento de segurança. Mas, sem essa presença, já que não há forma de desligar eficazmente esse alarme então, tudo o que resta, é tentar ignorar os seus sinais. Mas para isso a criança também tem de desligar a parte de si que se sente ameaçada e que sabe que precisa de manter essa ligação com os pais. Porque se continuar a estar sempre consciente dessa falta, desse instinto de apego que não está a ser satisfeito mantém-se a frustração que se torna demasiado intensa para lhe permitir lidar com o que quer que seja para além disso. Então, a única forma de uma criança lidar com uma separação demasiado prolongada é desligar a sua consciência dessa parte de si que sabe que precisa de manter a ligação com os pais ou com as suas figuras de apego.

Por isso o que acontece nestes casos, quando a ausência destas figuras foi demasiado dura ou demasiado longa para a criança, é que - quando ela volta a reunir-se com as suas figuras de apego - já há um distanciamento ou um desinteresse da sua parte nesta reunião. Quando a ausência foi difícil mas não tanto que ela precisa de se desligar desses sentimentos o que pode acontecer é que a criança, ao ver o pai ou a mãe, desata num choro intenso como se fosse uma espécie de descarga. Isto acontece muitas vezes quando os pais vão buscar os filhos à creche e é apenas sinal de que aquela ausência foi dura para a criança e de que ela não tinha um ambiente seguro onde pudesse aprender a lidar com essa tensão, mas ainda é relativamente fácil reparar essa situação, porque a criança ainda não se desligou do que está a sentir e ainda o demonstra procurando o colo dos pais para chorar.

Mas, quando a dor dessa ausência foi tão grande que ela precisou de desligar essa parte de si que estava a sofrer com essa ausência, isto quer dizer que não será fácil para a criança reactivar essa parte de si, voltar a abrir o seu coração e voltar a confiar nos pais. Vi um vídeo de um menino da Guatemala, que deveria ter uns quatro ou cinco anos e esteve separado da mãe durante algumas semanas nos E.U.A, por causa desta política. Quando finalmente se reencontraram a mãe chorou e abraçou-o repetindo várias vezes que o amava e que não iriam voltar a separar-se. O menino pareceu deixar sair algumas lágrimas (apenas porque se vê a mãe a limpar-lhe o rosto) mas não abraçou a mãe, não chorou intensamente como ela e não disse nada enquanto era abraçado. Um pouco mais tarde vê-se na filmagem a criança a ser levada pela mão de outra pessoa, com um ar triste mas, ao mesmo tempo, quase apático, enquanto a mãe seguia atrás dele, ainda com um ar emocionado e os olhos cheios de lágrimas. Os jornalistas que filmaram esta cena, comentavam o comportamento da criança dizendo que estava tão bem comportado e tão calmo.

Este pequeno vídeo demonstra bem como a criança foi afectada por esta separação: ela foi tão dura que ele já nem conseguia abrir o seu coração para chorar por tudo o que tinha passado. Já não conseguia sentir-se suficientemente seguro para chorar, nem sequer com a própria mãe. Já não conseguia sequer lembrar-se de que esse seu instinto de apego existia e por isso já quase lhe era indiferente estar com a mãe ou com um estranho. Se assim não fosse ele não se deixaria levar calmamente pela mão por outra pessoa enquanto a mãe caminhava atrás de si, por exemplo. É possível que com o tempo, se mãe for capaz de acolher a ferida enorme daquela criança, ela consiga reparar um pouco a situação. Mas não há dúvidas de que aquele menino foi seriamente abalado na sua capacidade de confiar nos outros, no mundo e em si próprio. E a verdade é que, se não tivermos consciência do enorme impacto que este tipo de separação pode ter numa criança, pode ser muito difícil também para os pais lidar com todas as alterações de comportamento que irão com certeza surgir. O que, por sua vez, só irá servir para acentuar ainda mais todos os efeitos do trauma.

Estudos com macacos bebés, de que já falei aqui, mostram como a ausência da mãe, mesmo quando tudo o resto se mantém, cria uma fragilidade que pode fazer com que as crias passem a ter maior dificuldade em lidar com os desafios e com o stress ao longo da vida.

Investigações feitas na Finlândia também demonstraram isto: durante a segunda guerra mundial houve varias crianças que foram separadas dos pais. Investigações posteriores mostraram que as crianças que foram levadas para longe da família, sofreram mais danos na sua saúde mental, do que aquelas que ficaram e tiveram de enfrentar todos os horrores e dificuldades da guerra. A grande diferença nestes casos é que as que ficaram, até podem ter passado mais dificuldades materiais e ter sido expostas a situações mais violentas mas tinham o mais importante para conseguir lidar com isso: a relação com os pais. É essa relação o amortecedor mais importante em todas as situações de stress e é dela que precisamos de cuidar antes de tudo o resto. 

A triste ironia desta situação é que o próprio Trump foi com certeza vítima de uma infância em que as suas necessidades de acolhimento, protecção e segurança não foram tidas em conta. Não conheço a história dele mas conheço o suficiente sobre o desenvolvimento humano para perceber que o coração dele também se fechou algures no tempo, não sei se por causa de um trauma muito intenso ou por causa de várias situações traumáticas que se terão repetido com frequência na sua vida. Na verdade é isto o mais comum nestes casos: pode não haver nenhuma situação muito marcante na vida das crianças mas vão existindo várias situações diárias em que a criança se sente negligenciada, não reconhecida, em que vê a sua ligação com as suas figuras de referência ameaçada. Esta ameaça pode ser real, como  no caso destas crianças separadas, ou pode ser apenas uma sensação que a criança tem de que os pais não são capazes de a aceitar como é, ou que não são capazes de a proteger, de a manter segura. E são estas situações que vão deixando marcas tão fundas ao ponto de ser possível observar as diferenças no desenvolvimento cerebral, nos estados de activação fisiológica - sobretudo em situações de desafio - mas, mais importante, na forma de lidar com os outros e  na capacidade de estabelecer boas relações.

É claro que para os pais também é traumático ficar sem os filhos. A grande diferença é que, primeiro, os pais não precisam dos filhos para se sentirem protegidos e, segundo, o seu organismo já não está em desenvolvimento. As crianças ainda estão em formação, por isso, tudo o que acontece, sobretudo nos primeiros anos de vida, tem um impacto muito maior do que nos adultos e determina a forma como o seu organismo se desenvolve e a sua personalidade se molda.

Uma criança que cresceu sem ter oportunidade de confiar nos outros é também uma criança que cresce sem perceber que é essa a nossa maior riqueza: a relação que temos e construímos com as outras pessoas. Por isso é muito fácil que essa criança se torne num adulto narcisista e materialista em que as pessoas são vistas apenas como meios para atingir um fim. Porque algures na sua história essa criança foi forçada a fechar o seu coração aos sentimentos e a desvalorizar todo o tipo de relacionamentos.

Por isso é mesmo tristemente irónico que este tipo de políticas, acabem por dar origem a pessoas como Donald Trump, ou a pessoas que o apoiam, numa espécie de ciclo vicioso que pode continuar para sempre se não tivermos consciência dos seus efeitos. Porque a única forma de construirmos um mundo justo é percebermos que precisamos de respeitar as crianças de hoje. Porque uma criança que é obrigada a fechar o seu coração será um adulto com muita dificuldade de o abrir. E um adulto que não abre o coração é um adulto que não sente empatia e sem ela fica muito difícil deixar-se tocar pelo sofrimento dos outros, principalmente quando este colide com os seus próprios interesses egoístas. 

Sem comentários:

Enviar um comentário