As crianças têm sido a camada da
população mais sacrificada com esta pandemia. Não por causa do vírus que já se
sabe que é maioritariamente irrelevante neste grupo etário mas por causa das
medidas sanitárias que têm sido tomadas, sem grande consideração pelo seu
bem-estar.
Mesmo depois de já todos termos voltado ao trabalho há algum tempo, as crianças do primeiro ciclo continuaram sem escola presencial que terá, no total, uma interrupção de mais de seis meses e os parques infantis continuam fechados.
Mesmo depois de já todos termos voltado ao trabalho há algum tempo, as crianças do primeiro ciclo continuaram sem escola presencial que terá, no total, uma interrupção de mais de seis meses e os parques infantis continuam fechados.
Sabemos que passar tempo ao ar
livre é fundamental para a saúde física e mental de crianças e adultos e também
sabemos que, nas cidades hoje em dia é mais difícil para os pais passarem algum
tempo na rua com as crianças se não tiverem um parque infantil para elas
brincarem e conviverem com outras crianças, algo que também é fundamental para
o seu bom desenvolvimento.
É na brincadeira livre que as
crianças crescem, aprendem e se desenvolvem e esta brincadeira é ainda mais
fundamental em tempos de stress porque é também uma das poucas formas naturais
e adequadas que as crianças têm de se libertar do stress e tensão que este período inevitavelmente traz. Se brincar é sempre importante para o desenvolvimento das crianças, neste momento podemos dizer que é mesmo urgente e fundamental para que esta situação não lhes cause muitos danos.
Uma investigação sobre o impacto
da covid-19 em espanha concluiu precisamente que as crianças que não puderam
sair diariamente de casa foram as mais afectadas pela pandemia, ao nível da
saúde mental.
Por isso, mesmo sabendo que as crianças podem e devem brincar mesmo fora dos
parques infantis (que, infelizmente em portugal até são bastante pobres e um
pouco desajustados das suas necessidades reais) consideramos que o facto dos
parques continuarem fechados transmite aos pais, crianças e à população em
geral a ideia de que ainda é perigoso brincar fora de casa, mesmo quando já sabemos que ao ar livre a probabilidade de haver contágio é sempre mais reduzida.
As crianças foram sacrificadas
também com a escola on-line tendo passado largas horas em frente ao ecrã quando
todos os especialistas são unânimes a afirmar que isto é não é nada bom para o seu
desenvolvimento, com prejuízos diversos ao nível da saúde mental e física: como
obesidade, défice de atenção, hiperactividade e
dificuldade de controlo dos impulsos entre os mais comuns. Sendo que estes estão também associados a uma
série de problemas de comportamento e de relacionamento com os pares e com os adultos.
E mesmo quando já existem tantos estudos que
demonstram que ler em papel ou em formato digital tem efeitos muito diferentes:
assimilamos pior o conteúdo quando lemos em formato digital, além de que a
leitura digital nos traz uma visão muito mais superficial porque se torna muito
mais difícil manter o foco, uma vez que a nossa atenção compete constantemente
com outros estímulos. Também sabemos que esta incapacidade de manter o foco -
que os ecrãs provocam e alimentam - está associada a sentimentos de agitação,
ansiedade e depressão, para além de dificultar muito a aprendizagem.
Depois de tudo isto, em Setembro,
as crianças poderão finalmente voltar à escola mas com novas regras impostas o
que irá trazer outras dificuldades e consequências que já se fazem sentir para
algumas e em que precisamos também de pensar.
Não podemos adoptar medidas sem
pensar bem em todas as consequências e no custo que estas terão. Se algumas
medidas terão um custo insignificante, existem muitas que podem ter um custo
demasiado elevado para os benefícios que acarretam. Porque uma criança não é adulto em miniatura e tem necessidades muito específicas e bem diferentes que precisam de ser levadas em conta.
Uma dessas medidas que já se faz
sentir na vida de muitas crianças em creches e jardins-de-infância é a
proibição da entrada dos pais.
Permitir a entrada dos pais na
escola, quando vão deixar ou buscar os filhos não é um mero capricho. Como já expliquei aqui. Uma
criança que entra num lugar novo fica sempre num certo estado de alerta,
principalmente quando essa entrada implica a separação das suas figuras de
apego, as suas referências. A única forma de desactivar esse estado de alerta é justamente através do contacto com as figuras de apego que geralmente são os pai. E enquanto ele não for
desactivado, a criança simplesmente não está disponível para estabelecer novas
relações seguras que, por sua vez, são essenciais para que o seu dia na escola
seja vivido da melhor forma e até para que consiga aprender realmente. Isto é
muito importante em todo o processo de adaptação dos mais novos, que pode durar
dias, semanas ou até meses e que acontece sempre outra vez depois de um período
de afastamento. Mas também dos mais velhos depois de tudo o que aconteceu este
ano, com um período de afastamento tão prolongado e carregado de tensão por
vários motivos. Permitir a entrada dos pais na escola é fundamental para que
esta não se torne um mundo completamente estranho e separado da família em que
a criança nunca se sentirá realmente segura.
É muito importante que os pais
possam ver diariamente os professores e educadores e que sejam eles a
entregar-lhes a criança porque é isso que lhes permite fazer a ponte. O instinto
da criança diz-lhes que não devem ficar com estranhos, que devem procurar
sempre as pessoas com quem se sentem seguras. Então para que os professores
deixem de ser estranhos para elas é preciso que os pais façam essa ponte que
lhes mostrar que podem construir uma ligação com aquela pessoa e isso faz-se de
forma simples, falando com a pessoa, mostrando que ela é de confiança e que já
temos uma relação com ela.
As máscaras usadas pelos adultos,
sobretudo nos mais novos, também não facilitam este processo. Porque as
expressões faciais são uma parte fundamental da comunicação não verbal e
daquilo que nos faz ou não sentir segurança na presença da outra pessoa.
Stephen Porges usa o termo neurocepção para falar de um mecanismo inconsciente
que nos faz avaliar constantemente a segurança do ambiente externo e interno e
essa avaliação passa em grande parte pela comunicação não verbal. Essa
comunicação não é apenas facial, também passa pelos olhos, ao tom de voz e à
prosódia do discurso, coisas que a máscara ainda nos permite perceber mas que
podem ser insuficientes para uma criança pequena e que até dificultam um pouco
a comunicação mesmo nas mais velhas e nos adultos. Sem ver totalmente a cara da
pessoa com quem nos relacionamos é bem mais difícil recolher essas pistas de
segurança e quando nem sequer conhecemos essa pessoa, como irá acontecer na
adaptação à escola de muitas crianças, então isto fica mesmo impossível. Por isso mesmo nos países que recomendam o uso de máscara, em muitos já está a ser recomendado aos professores e educadores que retirem as máscaras sempre que puderem ficar a um metro e meio de distância das crianças, até porque a máscara também dificulta muitas vezes a compreensão daquilo que os professores dizem.
As crianças mais pequenas ainda
não têm um grande desenvolvimento do seu hemisfério esquerdo que começa apenas
aos dois anos de idade, o que quer dizer que estão ainda mais dependentes da
comunicação não verbal, que é interpretada pelo hemisfério direito, para se
relacionarem e sentirem seguras. Mas,
mesmo nos mais velhos, começa hoje cada vez mais a saber-se que o hemisfério
direito tem um papel fundamental no sentimento de bem-estar, equilíbrio e
segurança que está, em grande parte associado à capacidade de estarmos em
contacto com as mensagens do nosso próprio corpo. Quando nos focamos apenas na comunicação
oral, algo que é forçado pelo uso continuo de máscaras, estamos a estimular o
uso do hemisfério esquerdo em detrimento do direito, algo que sabemos estar
bastante mais associado a sentimentos de agitação, ansiedade e até de
depressão.
Sabendo que nas crianças,
sobretudo as mais pequenas, o hemisfério direito ainda tem um papel dominante,
então, deixá-las o dia inteiro, aos cuidados de um educador com máscara é
dificultar muito o seu sentimento de segurança.
As nossas creches e jardins de
infância já têm demasiadas crianças para o número de adultos presente e isto já
dificulta a ligação e esse sentimento de segurança que a criança precisa de ter
com os adultos que cuidam de si. Quando juntamos a isto a grande dificuldade de
ler o rosto que as máscaras provocam estamos a criar uma dificuldade enorme da
criança se ligar ao adulto e, consequentemente, de se sentir segura com ele e
na escola. Se a criança não se sente ligada a um adulto que cuida dela, irá
passar todo o seu dia num estado de alerta que, poderá ter consequências muito
graves para o seu desenvolvimento, para o seu comportamento e até para as
capacidades cognitivas e de aprendizagem, bem como para a sua saúde.
Uma investigação bastante extensa que em que participaram cerca de 17000 sujeitos, sobre experiências adversas na infância mostra bem como o stress tóxico que estas
provocam está ligado a uma série de complicações de saúde na vida adulta: como
a obesidade, diabetes tipo II, desordens de ansiedade e depressão e até
problemas cardiovasculares, a principal causa de morte na sociedade ocidental.
Se pensarmos que, apesar de terem
tido mais tempo com os pais, este tempo de confinamento e ausência de escola
pode ter sido vivido com muitas dificuldades em muitas casas em que os pais
ficaram sem emprego ou viram o seu modo de vida afectado, em casais em que as
dificuldades de relacionamento aumentaram pela convivência forçada, em
situações em que os pais tinham de trabalhar com crianças pequenas em casa sem
terem como prestar-lhes atenção ou tratar delas em condições. Tudo isto a
juntar a uma crise económica e social sem precedentes diz-nos que, mais do que
nunca teremos crianças provavelmente muito ansiosas na escola, crianças com
várias dificuldades e problemas emocionais para gerir. O que quer dizer que,
para estas crianças, será ainda mais importante que a escola se torne um lugar
seguro. Para isso não podem existir regras demasiado rígidas que se sobreponham
ao seu bem-estar.
A diminuição dos intervalos e as medidas de distanciamento entre crianças também são nefastas e sem sentido. Quando sabemos que ao ar livre a
probabilidade de transmissão é muito menor e que a socialização com os pares é
um aspecto importantíssimo da escola, não faz qualquer sentido dificultar o convívio e a proximidade entre as crianças.
A desinfecção constante também
transmite uma mensagem continua de perigo e cria mais tensão do que os
benefícios que pode trazer que, na verdade, nem são muitos porque já se sabe
que os desinfectantes à base de álcool matam também as bactérias boas que são
essenciais para a nossa saúde e equilíbrio. E a sociedade de pediatria francesa, que aliás se tem mostrado também bastante preocupada com estas medidas, já emitiu um comunicado às escolas a afirmar que a lavagem mais frequente das mãos com água e sabão é suficiente como medida de segurança nas escolas.
Não podemos deixar que as medidas
sanitárias se sobreponham à necessidade de preservar a saúde mental das nossas
crianças e jovens. Porque se o fizermos teremos com certeza em mãos uma outra
pandemia no campo da saúde mental com resultados bem dramáticos e duradouros.
A maior protecção que podemos dar
a uma criança, como mostram todos os estudos sobre vinculação, é dar-lhe a
possibilidade de construir uma relação segura com os adultos, isto é realmente
o mais importante e a melhor prevenção que poderá existir para a sua saúde
mental. Mas essa relação pode ficar ameaçada se os adultos na vida dessa
criança insistem em tratá-la como um ameaçador agente infeccioso. Como um
pequeno transportador de vírus que pode ser responsável pela morte dos avós ou
de outras pessoas queridas e que por isso tem de ser travado e doutrinado para
se manter longe dos colegas, para se desinfectar bem, para usar máscara a partir
dos 10 anos, etc. Porque ao fazê-lo deixamos de ser nós os adultos como figuras
de protecção, quando passamos a responsabilidade de se manter segura - e mais
ainda de manter os outros seguros - para os ombros de uma criança estamos a
dar-lhe um peso que ela não tem como carregar. E esse peso terá um custo, um
custo que virá mais tarde sob a forma de dificuldades e até de patologias
várias, como demonstrou tão bem o tal estudo das ACEs (adverse childhood
experiences). E na verdade, Portugal, neste momento está entre os países do mundo que têm adoptado medidas mais rígidas com as crianças.
Então temos que deixar que as
crianças sejam crianças, não temos o direito de as pressionar com o nosso medo
e de as impedir de serem apenas crianças. Não temos o direito de as impedir de
brincar, de as prender em casa, de fechar parques infantis e escolas mas também
não temos o direito de as mandar para a escola com uma série de regras absurdas
e rígidas que só lhes colocam tensão e mais peso nos ombros e com uma série de
adultos de rosto tapado cujas expressões nem sequer conseguem desvendar
facilmente.
Se sentimos que precisamos de tomar medidas para travar esta pandemia e se precisamos de viver com elas durante bastante tempo para proteger alguns grupos de risco também precisamos de sentir que temos de proteger as crianças e que essa responsabilidade deve ser assumida única e exclusivamente pelos adultos, deixando que as crianças continuem a ser apenas crianças se queremos realmente dar-lhes oportunidade de se desenvolverem saudáveis. Porque um ou dois anos na vida de uma criança não valem o mesmo que na vida de um adulto e podem bem mais facilmente deixar marcas permanentes que teremos muita dificuldade em apagar mais tarde.
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