Estamos
outra vez naquela altura do ano em que se vêem perto das universidades uma
série de jovens com uma espécie de farda - que só por si já demonstra bem a
insensatez de tudo aquilo a que está associada uma vez que é exactamente a
mesma quer faça chuva quer faça sol, quer estejam 10 ou 40 graus centígrados - envolvidos
em actividades que envolvem gritos e humilhações várias a um outro grupo de
jovens que ainda não tem o direito de vestir a tal farda e que se vai deixando
mandar, humilhar e dirigir.
Este é
um fenómeno a que é difícil ficar indiferente e que, apesar de não ter números
oficiais, me parece ter crescido bastante sobretudo na última década. Por isso é importante compreendermos o que
estará na origem deste crescimento e porque ele pode ser encarado como um dos
sinais que algo não está a funcionar como deveria na nossa sociedade.
Adolescência mais longa
Primeiro é
importante termos consciência de que, neste momento, nas sociedades ocidentais,
temos a mais longa adolescência da história da humanidade. Os nossos jovens
entram cada vez mais cedo na adolescência e saem dela cada vez mais tarde: há
cem anos atrás a idade média para o aparecimento da menarca andava por volta
dos quinze anos hoje, em média, acontece aos doze. E, se nessa altura era perfeitamente
natural que rapazes e raparigas de dezassete ou dezoito anos já estivessem
casados e a trabalhar, integrados na sociedade como adultos, hoje ainda
precisam de mais algum tempo até os considerarmos realmente aptos a desempenhar
esse papel.
Com o
prolongar desta fase que estaria de certo modo programada para ser apenas uma
transição relativamente rápida do estado de criança para o estado de adulto é
natural que surjam algumas complicações para as quais ainda não temos resposta.
Falta de rituais de passagem
Nas sociedades
tradicionais havia sempre ritos de passagem importantes para marcar a transição
de um estado para o outro e a entrada na vida adulta. Nessas sociedades a
adolescência era vista muito mais como uma ponte entre dois estados do que como
um estado em si mesmo. Aliás a palavra adolescência tem origem no latim e
significa crescer para, o que nos mostra que é suposto que seja apenas uma fase
transitória entre dois estados. Esta definição é importante porque influencia a
forma como nos relacionamos com os adolescentes: se nos lembrarmos que eles não
são crianças nem adultos, mas que estão algures entre os dois, fica mais fácil
percebermos aquilo de que precisam e saber de que forma devemos relacionar-nos
com eles.
Nas nossas
sociedades perdemos esses rituais que os jovens tentam, de algum modo, recriar
com as praxes académicas.
O problema
deste tipo de ritual é que eles não são criados e suportados pelos adultos que
deveriam ainda ser a referência e o modelo desses jovens mas vão sendo improvisados
pelos próprios.
Um ritual de
passagem tradicional cumpre uma função específica de ajudar o jovem a
despedir-se do seu estado anterior e a sentir que está pronto para entrar na
vida adulta. Os rituais de passagem tradicional são feitos com o apoio dos
adultos envolventes e servem para ajudar à integração na sociedade adulta, ao
mesmo tempo que ajudam os jovens a tomar consciência das suas novas
responsabilidades mas também das suas capacidades procurando transmitir-lhes
uma sensação de poder e competência, através do simbolismo das tarefas que eles
precisam de realizar e que poderão desempenhar um papel importante na
construção de uma nova auto-imagem.
Porque esta é
realmente a tarefa principal da adolescência: a capacidade de criar uma nova
imagem de si mesmo, agora separada da família e a capacidade de se afirmar e
integrar na sociedade com essa nova consciência de si e do seu papel na vida e
na comunidade. Ora nada disto é conseguido com as praxes: antes pelo contrário
até. Porque aquilo que vemos nas praxes são jovens imaturos e incapazes de se
encontrarem e de criarem uma verdadeira autonomia.
Condições necessárias para uma transição segura, para que o amadurecimento se torne possível:
Para que um
adolescente encontre a sua identidade, para que seja capaz de se descobrir de
se conhecer e de se afirmar e integrar sem precisar de se perder de si mesmo
são precisas algumas coisas fundamentais: primeiro é preciso que lhe tenha sido
permitido encontrar a segurança de ter ligações fortes e estáveis com as
pessoas mais importantes da sua vida, idealmente os pais, e que estas lhe
tenham demonstrado que é seguro estar no mundo, explorá-lo e explorar-se a si
mesmo; depois é preciso que essas pessoas continuem a ser uma referência e um
modelo a seguir. Para isso é preciso que elas se mantenham por perto, presentes
e disponíveis mas que, ao mesmo tempo, saibam dar o espaço necessário aos
jovens para que estes se possam descobrir e olhar para dentro sem medo. E isso
é algo que falta muito aos adolescentes dos nossos dias: esse tempo para olhar
para dentro e a segurança de não terem medo daquilo que irão encontrar por
saberem que terão sempre alguém, mais maduro e consciente, que estará presente
para os ajudar a lidar com isso.
Na verdade as
praxes são também o sintoma de um fenómeno bastante comum no nosso tempo e que
está na origem de muitos problemas: o fenómeno da orientação para os pares -
nome dado pelo psicólogo canadiano Gordon Neufeld a este fenómeno que faz com
que os adultos deixem de ser modelos e referências para os jovens que passam
assim a querer agradar apenas aos outros jovens e que nos coloca numa posição
muito mais secundária do que aquela que seria desejável. É este fenómeno que
podemos observar tantas vezes quando comentamos que hoje os jovens não
respeitam os professores, por exemplo. Isto acontece sempre que os adultos
deixam de ser uma referência. É fácil observar que, pela primeira vez na
história também, os ídolos dos nossos adolescentes são, em grande parte, também
eles adolescentes. E um adolescente, visto que está também ele em transição, não será com certeza o melhor modelo a seguir para outro adolescente.
É um lugar
comum dizermos que os adolescentes precisam de encontrar o seu grupo e que é
natural que procurem esse sentimento de pertença. É verdade que nesta fase a
necessidade de pertencer a um grupo se torna mais forte porque os adolescentes,
por estarem em transição, têm alguma tendência para se sentirem sozinhos
(porque a auto-descoberta tem sempre uma componente grande de solidão inevitável)
mas também porque nesta altura há um instinto grande de querer encontrar o seu
lugar no mundo, na sociedade, fora da família. Para as crianças tudo o que é
mais importante é pertencer à família, para um adolescente é preciso sair dela
e é muito fácil ceder à tentação de a substituir por um grupo.
Mas é
importante compreender que a procura desse sentimento de pertença não pode e
não deve levar à perda da individualidade e é exactamente isso que acontece
quando temos grupos de jovens que se vestem da mesma maneira, falam da mesma
maneira e se portam da mesma maneira. Isto significa que houve um processo de
maturação que não chegou a acontecer como deveria. Se pensarmos nas crianças,
por volta dos dois ou três anos de idade, é muito comum começarem a querer
imitar tudo o que os pais ou irmãos mais velhos fazem ou dizem. E faz sentido
que assim seja porque, nessa fase com a imaturidade característica e própria deste estágio, é só assim que conseguem ter o sentimento de pertença que
lhes dá a segurança necessária para crescer. Mas, se tudo correr bem com o seu
desenvolvimento, vão começando a encontrar outras formas de se sentirem seguras
e ligadas às pessoas importantes. Estes adolescentes, na verdade, ainda não
desenvolveram esses mecanismos mais complexos que lhes permitem sentir-se ligados
às pessoas importantes e continuam a portar-se como crianças de dois anos que
precisam de ser iguais a elas para se sentirem ligadas a essas pessoas.
Porque é que
isto é um problema?
Primeiro
porque mostra que algo correu mal no seu desenvolvimento, depois porque não
permite que esse desenvolvimento continue a acontecer. Cria um bloqueio. Não
podemos construir uma relação verdadeira com os outros se nos perdemos de nós
sempre que estamos com eles. Se não conseguimos agarrar-nos com força suficiente
à nossa identidade quando estamos com os outros - que inclui os nossos gostos,
as nossas motivações e os nossos valores - então também não conseguimos criar ligações
verdadeiras com eles. Ficamos presos a uma identidade e a um comportamento
tribal em que qualquer coisa que seja diferente nos faz sentir ameaçados,
porque acreditamos que vamos perder essa ligação com os outros se formos
diferentes deles. Estas ligações que dependem dessa identificação mais
superficial são muito fracas e facilmente ameaçadas. Por isso é que as crianças
precisam tanto que os pais mostrem constantemente que estão seguras, que gostam
delas e que se esforcem para manter a ligação e também é por isso que é tão
fácil assustarem-se quando nos zangamos com elas. Porque a capacidade de
guardarem dentro de si esse amor e de se sentirem seguras com ele ainda é muito
limitada.
É preciso
haver maturidade para sermos capazes de nos agarrar ao amor dos outros e pelos
outros mesmo e ainda mais quando existem diferenças grandes entre nós. E para
isso temos que nos sentir seguros também com quem somos, com a nossa
identidade. Então, não é demais dizer que este comportamento tribal que as praxes
representam, mesmo que de uma forma simplista, está na base de tudo o que
também acaba por levar às guerras, à intolerância e a comportamentos como o racismo e a xenofobia. Porque todos eles têm na sua origem este medo de nos
sentirmos ameaçados por aquilo que é diferente.
Uma pessoa
madura, adulta e segura de si não tem tanta necessidade de entrar em tribalismos
porque também não se sente tão ameaçada pela diferença. Isto não quer dizer que
não tenha necessidade de pertencer a um grupo, já que somos seres sociais e
sabe-se que essa pertença a um grupo pode estar também na base da nossa
satisfação com a vida mas é preciso distinguir entre os grupos que anulam a
nossa identidade e autonomia, como as seitas e as praxes que funcionam de
formas muito semelhantes, e aqueles onde nos é permitido estar realmente com as
pessoas, em relações autênticas, em que não precisamos de nos perder de nós
próprios.
Então
precisamos de olhar para este fenómeno das praxes e compreender que é apenas um
sintoma de uma falta grande no desenvolvimento destes jovens e tentar
compreender de que forma é que poderemos preenchê-la no futuro. E isso começa
com a capacidade de criarmos ligações seguras e de não termos medo de estar
presentes, disponíveis e de coração verdadeiramente aberto para os nossos
filhos ao longo de toda a sua vida. E de não termos medo de assumir e reclamar esse papel de guias e de orientadores também com os adolescentes que tiverem um papel importante nas nossas vidas.
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